quinta-feira, 6 de abril de 2017

O clube dos escritores traídos

A minha crónica no Jornal Torrejano.

Há umas semanas noticiou-se que a editora de Agustina Bessa-Luís mandara retirar do mercado os livros desta autora. Parece que já não vendia o suficiente. Há claramente um conflito negocial, digamos assim, entre a editora e representantes da escritora. Não é esse assunto que me interessa, mas um que lhe está ligado. Agustina foi durante muitos anos, ao lado de José Saramago e de António Lobo Antunes, uma escritora com um amplo mercado. Como Saramago e Lobo Antunes, a escritora nortenha não escrevia literatura de entretenimento. Estávamos – e estamos, pois ainda é viva – perante uma autora brilhante, provocadora e, literariamente, exigente. Neste episódio, e independentemente da guerra negocial, há qualquer coisa que nos deveria fazer pensar.

Se olharmos para o século XX, há um conjunto de escritores bastante interessantes que entraram num limbo e que parecem estar a apagar-se da memória nacional. Sem ser exaustivo, recordo José Rodrigues Miguéis, Carlos de Oliveira, Vergílio Ferreira, José Cardoso Pires, Augusto Abelaira, Irene Lisboa, Fernanda de Castro, José Régio, Jorge de Sena, Vitorino Nemésio, Ruben A., Maria Judite Carvalho, Nuno Bragança e Fernanda Botelho. Haverá nesta lista esquecimentos imperdoáveis, mas isso é irrelevante. Outros ainda estão bem vivos nas escolhas dos leitores. Alguns dos autores referidos ainda terão o seu público, mas a sensação que se tem é que a memória das suas obras encolhe a cada dia que passa. É esta retracção da sua presença no espaço mental português que nos deveria preocupar.

O século XX foi ontem. E se a História é fundamental para o compreendermos, a literatura que nele se escreveu tem uma importância idêntica. Aquilo que somos – e o que somos é sempre múltiplo e diferenciado – repercute-se nas diferentes obras literárias. A complexidade e a riqueza do ser português do século XX estão plasmadas nessas obras. Ora se elas se forem apagando por falta de leitores, é uma parte – e das mais importantes – de nós que morre ao abandono. Não ler a literatura do século XX – e a dos anteriores, diga-se – significa que deixámos de nos interessar por quem somos. Ler as obras já de nada valerá a muitos dos autores do século XX, pois já morreram. No entanto, pode-nos valer a nós, ajudar-nos a saber quem somos e porque estamos onde estamos. Um povo que deixa – por desinteresse e ignorância galopante – apagar-se a memória da sua literatura é um povo que está doente, muito doente. Não façamos com os escritores do século XX um triste clube dos escritores traídos.

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