domingo, 16 de abril de 2017

Viragens antropológicas

Caspar David Friedrich - Easter Mornig (1833)

Há na Páscoa dos cristãos uma orientação que tem nítidas semelhanças com a viragem antropológica operada por Sócrates e Platão, séculos antes, na filosofia. Quando esta emergiu, a sua preocupação centrava-se na compreensão da natureza. O magistério socrático e a reflexão platónica dirigiram o olhar para o homem, para a sua vida na cidade e, inclusive, para a sua vida no além. O que tem esta revolução especulativa a ver com os acontecimentos pascais?

Há, por vezes, uma tendência para olhar para as festividades do cristianismo e compreendê-las como um decalque e, por vezes, mera cópia das festividades pagãs. Contudo, falha-se o essencial. Falha-se a viragem antropológica que estando já desenhada no judaísmo se consumou no cristianismo. Na Páscoa cristã não se vive a ressurreição da natureza, esse acontecimento cíclico que fascinou os homens durante milénio, mas a ressurreição do próprio homem. Não é só a natureza que pela sua renovação anual que triunfa sobre a morte. Também o homem, a quem foi negada a renovação anual, pode triunfar da morte.

Primeiro com Platão e Sócrates e depois com Cristo, o homem dirige o olhar e a razão para si mesmo, interroga-se sobre a sua natureza, a sua conduta e o seu destino. Estes dois momentos da história ocidental são aqueles que possuem, ainda hoje, o maior potencial simbólico e o maior dos perigos. O perigo reside em poderem tornar-se num exercício de auto-contemplação narcísica da espécie humana. Contudo, este perigo extremo é compensado pelo conteúdo simbólica que tem permitido - e continua a permitir - encontrar aí um sentido que, estando para além do narcisismo específico, abra as possibilidades da aventura humana sobre este planeta.

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