Bill Jacklin - The Benches, Towards the Rape of Reason (1992)
O problema social colocado pelo surto de sarampo e a manifestação
de uma contra-cultura de saúde baseada na recusa da medicina científica e da
vacinação como profilaxia da doença é a face, agora mais visível, de uma
crescente desvalorização do papel da razão na vida dos homens. Se há um sector
que tem sido extraordinariamente enriquecido e protegido pelo avanço da razão
científica é o da saúde e da esperança de vida das pessoas. Quanto mais as
práticas médicas assentam as suas raízes na ciência moderna maior é a eficácia
na luta contra a doença. Curiosamente, o espectacular êxito da medicina
científica tem tido a capacidade de suscitar estranhas oposições baseadas em
crenças sem qualquer fundamento ou controlo racional.
Isto não significa dizer que a medicina seja infalível, que
a ciência possua a verdade ou que a razão não tenha os seus limites. Os médicos
e a medicina são falíveis, os conhecimentos científicos, em busca da verdade,
vão sendo revistos, reformados ou abandonados e substituídos por outros mais de
acordo com a realidade, a razão humana tem os limites inerentes à própria
humanidade. Dito isto, convém sublinhar o seguinte: a ciência – e a filosofia
numa outra perspectiva – é o campo de produção de crenças mais fiável, mais
controlado e mais avaliado criticamente.
Os conhecimentos e práticas derivados da ciência são
falíveis, mas o seu grau de fiabilidade é desmedidamente superior às crenças
que contestam a pertinência da vacinação ou que põem em causa a medicina
científica ou a própria ciência. A medicina científica – por vezes, designada
com intenção pejorativa como medicina ocidental – é muito mais segura e capaz
de enfrentar a doença do que as putativas medicinas não científicas e as crenças
obscuras de uma opinião sem qualquer fundamento, que as redes sociais – esse território
onde todos os devaneios pretendem aparentar-se à verdade – têm ajudado a
espalhar.
Esta situação – que do ponto de vista da saúde, está ainda
longe de ser catastrófica – torna patente que alguma coisa não está a funcionar
nos sistemas de educação pública. Não se trata de uma falência do ensino das
ciências. Elas estão bem representadas no currículo nacional e a sua
aprendizagem tem registado claras melhorias. O problema é outro. Pode ser
formulado da seguinte maneira: o facto de se ensinar, cada vez melhor, os
saberes científicos não assegura uma educação racional e o desenvolvimento de
atitudes críticas perante a realidade e as crenças do senso comum. Há uma
dificuldade de transitar da transmissão de conhecimentos para o desenvolvimento
de uma capacidade crítica e racional.
Todas estas crenças new
age que proliferam um pouco por todo o lado são fruto de uma atitude que é
incapaz de avaliar criticamente a razoabilidade das crenças. Os sistemas de
ensino modernos e democráticos foram erigidos em nome da razão, transmitem
crenças racionais e razoáveis, estruturadas nos currículos nacionais, mas têm
tido pouca capacidade de fomentar nos indivíduos uma atitude e comportamento razoáveis.
Daí que qualquer disparate, sem fundamento, propagado pelas redes
sociais encontrar um sem número de adeptos que o põem em prática, muitas vezes
com resultados trágicos. A racionalidade crítica tem limites, mas está longe de
poder ser dispensada. Pelo contrário, é necessário que ela seja cultivada e
transformada em atitude avaliadora das opções existenciais. Só ela, apesar da
sua fragilidade, pode evitar tragédias que a opinião acrítica tem a capacidade de
atear. O desprezo pela ciência só nos pode conduzir a lugares inabitáveis pelo homem.
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