O caso da resistência à vacinação, que pode estar na origem
dos actuais surtos de sarampo e no reaparecimento de certos doenças que se
pensavam erradicadas, é apenas um exemplo de um problema mais fundamental. As
sociedades modernas atingiram um elevado nível de vida pela conjugação do
desenvolvimento do conhecimento científico e da produção tecnológica dele
derivada. Nesse elevado nível de vida, encontra-se a comodidade da existência e
o prolongamento da esperança de vida.
A resistência ao conhecimento científico não é coisa de
agora. Por vezes, torna-se virulenta e tem um poder destruidor do conhecimento
e do progresso científico e tecnológico. O que estamos a assistir, em várias
frentes onde se inclui a da saúde, é a um ataque de vários tipos de
fundamentalismos – uns mais de cariz religioso, outros de natureza mais social
– ao pensamento crítico que fundamenta o trabalho científico e tecnológico. O
uso da razão crítica por parte dos homens não tem por objectivo criar verdades
dogmáticas e resolver problemas com uma varinha mágica. A ciência é um projecto
de aproximação progressiva à verdade. Também a tecnologia, por desenvolvida que
seja, tem os seus limites de intervenção no mundo.
Assistimos, aproveitando o carácter limitado e aproximativo
da ciência e da tecnologia, à pretensão de formas de acção e pensamento mágicos
as substituírem. Reivindicam um pensamento e um tipo de acção alternativos.
Efectivamente, o que se passa é que esse tipo de pensamento dito alternativo
não se confronta com o rigor da testagem científica. É constituído por um
conjunto de crenças que ou não podem ser testadas ou que, caso o fossem, não
resistiriam aos testes empíricos. Se há crenças que, apesar da sua limitação
sempre reconhecida, são submetidas às mais duras testagens para determinar a
sua verosimilhança, essas são as crenças científicas, das quais depende a
tecnologia que usamos e o nosso modo de existência.
Se por uma infelicidade, as nossas sociedades valorizarem do
mesmo modo o pseudo-conhecimento dos saberes ditos alternativos e o
conhecimento científico, então estaremos a dar passos para uma regressão
civilizacional a todos os níveis. O que está em jogo não é apenas a saúde das
pessoas e o seu bem-estar, mas o próprio pensamento crítico. Se este for
equiparado ao dogma de uma qualquer crendice, temos razões para temer que, num
surto de um súbito fundamentalismo, o seu exercício se torne impossível. O que
se está a passar é um sintoma preocupante para o uso saudável da razão crítica,
na verdade uma ameaça real ao nosso modo de vida.
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