segunda-feira, 26 de março de 2018

Uma ameaça



O caso da resistência à vacinação, que pode estar na origem dos actuais surtos de sarampo e no reaparecimento de certos doenças que se pensavam erradicadas, é apenas um exemplo de um problema mais fundamental. As sociedades modernas atingiram um elevado nível de vida pela conjugação do desenvolvimento do conhecimento científico e da produção tecnológica dele derivada. Nesse elevado nível de vida, encontra-se a comodidade da existência e o prolongamento da esperança de vida.

A resistência ao conhecimento científico não é coisa de agora. Por vezes, torna-se virulenta e tem um poder destruidor do conhecimento e do progresso científico e tecnológico. O que estamos a assistir, em várias frentes onde se inclui a da saúde, é a um ataque de vários tipos de fundamentalismos – uns mais de cariz religioso, outros de natureza mais social – ao pensamento crítico que fundamenta o trabalho científico e tecnológico. O uso da razão crítica por parte dos homens não tem por objectivo criar verdades dogmáticas e resolver problemas com uma varinha mágica. A ciência é um projecto de aproximação progressiva à verdade. Também a tecnologia, por desenvolvida que seja, tem os seus limites de intervenção no mundo.

Assistimos, aproveitando o carácter limitado e aproximativo da ciência e da tecnologia, à pretensão de formas de acção e pensamento mágicos as substituírem. Reivindicam um pensamento e um tipo de acção alternativos. Efectivamente, o que se passa é que esse tipo de pensamento dito alternativo não se confronta com o rigor da testagem científica. É constituído por um conjunto de crenças que ou não podem ser testadas ou que, caso o fossem, não resistiriam aos testes empíricos. Se há crenças que, apesar da sua limitação sempre reconhecida, são submetidas às mais duras testagens para determinar a sua verosimilhança, essas são as crenças científicas, das quais depende a tecnologia que usamos e o nosso modo de existência.

Se por uma infelicidade, as nossas sociedades valorizarem do mesmo modo o pseudo-conhecimento dos saberes ditos alternativos e o conhecimento científico, então estaremos a dar passos para uma regressão civilizacional a todos os níveis. O que está em jogo não é apenas a saúde das pessoas e o seu bem-estar, mas o próprio pensamento crítico. Se este for equiparado ao dogma de uma qualquer crendice, temos razões para temer que, num surto de um súbito fundamentalismo, o seu exercício se torne impossível. O que se está a passar é um sintoma preocupante para o uso saudável da razão crítica, na verdade uma ameaça real ao nosso modo de vida.

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