A minha crónica em A Barca.
Um dos sintomas do carácter incipiente da nossa cultura
democrática reside na má disposição com que membros de uma certa organização de
natureza pública recebem artigos de opinião sobre as organizações a que pertencem.
Se se escreve sobre um partido político, sobre o seu funcionamento, sobre
problemas que enfrenta internamente, haverá sempre quem ache que as pessoas que
não lhe pertencem não têm direito de emitir opinião. O mesmo se passa com as
Igrejas. Se, por exemplo, se fala da vida interna da Igreja Católica ou das
opiniões dos seus membros, haverá sempre quem ache que não há direito, não
pertencendo à Igreja, de falar sobre esses assuntos.
Isto é, contudo, um equívoco. Pior, é uma incompreensão
profunda do tipo de sociedade em que vivemos e da liberdade de expressão.
Partidos políticos, Igrejas, clubes recreativos ou desportivos são organizações
públicas e recebem, enquanto tal, protecção pública. As suas actividades não
são secretas – ou não deverão sê-lo – e elas influenciam a sociedade no seu
todo. Por isso, elas não se podem eximir ao escrutínio público daqueles que não
lhes pertencem. Nunca é demais lembrar uma célebre nota de rodapé aposta por
Kant ao primeiro prefácio da Crítica da Razão Pura: “A nossa época é a época da
crítica, à qual tudo tem que submeter-se. A religião,
pela sua santidade, e a legislação, pela sua majestade, querem igualmente subtrair-se
a ela. Mas então suscitam contra elas justificadas suspeitas e não podem
aspirar ao sincero respeito, que a razão só concede a quem pode sustentar o seu
livre e público exame.”
A ideia de que a vida interna de um partido político, com os
seus dramas e tragédias, ou as questões doutrinais de uma Igreja, não menos
dramáticas, só interessam aos seus membros é esquecer que essas organizações
têm um poder de intervenção na sociedade e que esse poder interfere tanto com
quem pertence como com quem não pertence. E é por isso que, numa democracia
liberal, tudo deve estar submetido à crítica pública e ser matéria de discussão
pública, na qual todos poderão participar. Isso não significa que quem não
pertença tenha direito algum de tentar sequer intervir, através da acção, no
funcionamento interno dessas organizações. O Estado existe também para as
proteger contra tentativas desse género. No entanto, o uso da liberdade de
expressão, a possibilidade de argumentar sobre essas organizações é uma questão
fundamental para o funcionamento livre das nossas sociedades. E, além disso,
esse exame público é benéfico para essas organizações, que desse modo “podem
aspirar ao sincero respeito, que a razão só concede a quem pode sustentar o seu
livre e público exame”.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.