A minha crónica no Jornal Torrejano.
Os resultados eleitorais em Itália, a dificuldade de
formação de governo na Alemanha e o tremor – ou terror – que cada novo acto
eleitoral provoca Europa fora, tudo isso se enraíza num conflito surdo, que
durante muito tempo foi disfarçado, entre as elites europeias e as camadas
populares dessa Europa. O conflito tem a raiz na cultura iluminista das elites
e na estranheza das camadas populares relativamente a essa cultura. Enquanto o
sistema de crenças das elites se foi transferindo da religião para um culto da
razão e da sua eficácia, as camadas populares viram a religião, que dava
sentido à sua existência, perder capacidade explicativa e integradora, não
tendo elas, agora, nenhuma narrativa que lhes explique o mundo e nele as
integre.
O conflito foi disfarçado durante uns tempos pelas
ideologias políticas que funcionaram como um sucedâneo do cristianismo. Também
uma certa expectativa de ascensão social e de capacidade de aceder ao consumo mitigaram
a ruptura que atravessava já as sociedades europeias. O que terá acontecido
para que esse disfarce tenha caído e para que, cada vez que a vontade popular
se expressa nas urnas, as elites europeias tremam perante o avanço do
populismo? Podemos pensar que isso se deve ao fim da expectativa de ascensão
social, à vilania de um capitalismo voraz apostado em destruir os direitos
sociais e à corrupção dos actores políticos. Isso terá algum peso. O problema,
porém, está noutro lado, está na presença do estranho, do outro, dos imigrantes
e dos refugiados provenientes, antes de mais, do mundo muçulmano.
A explicação é feia? Bastante, mas a realidade não tem de
ser bela nem agradável. As elites, com a sua cultura racional e os seus
interesses, aceitam facilmente a presença do estranho no seu território. Ao
nível popular, contudo, a percepção do outro não é feita segundo princípios
racionais derivados do Iluminismo. É feita de suspeita, de desconfiança e,
acima de tudo, de medo. Na ausência de uma narrativa – religiosa ou outra – que
permita integrar o que é estranho, existem múltiplas anedotas que, ao serem
costuradas umas com as outras, fornecem o combustível que alimenta sentimentos
negativos e que se traduz em xenofobia e na eleição de partidos e actores
políticos que apregoam haver razões para ter medo do outro. As tradicionais
elites políticas europeias, em nome da razão, podem continuar a fingir que não
há aqui um problema, mas depois não se lamentem que a política tradicional e
sensata esteja a morrer e que condottieri
sem escrúpulos, em nome do sentimento popular, ganhem terreno e se aprestem
para tomar conta dos rebanhos.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.