segunda-feira, 12 de março de 2018

A razão e o sentimento

A minha crónica no Jornal Torrejano.

Os resultados eleitorais em Itália, a dificuldade de formação de governo na Alemanha e o tremor – ou terror – que cada novo acto eleitoral provoca Europa fora, tudo isso se enraíza num conflito surdo, que durante muito tempo foi disfarçado, entre as elites europeias e as camadas populares dessa Europa. O conflito tem a raiz na cultura iluminista das elites e na estranheza das camadas populares relativamente a essa cultura. Enquanto o sistema de crenças das elites se foi transferindo da religião para um culto da razão e da sua eficácia, as camadas populares viram a religião, que dava sentido à sua existência, perder capacidade explicativa e integradora, não tendo elas, agora, nenhuma narrativa que lhes explique o mundo e nele as integre.

O conflito foi disfarçado durante uns tempos pelas ideologias políticas que funcionaram como um sucedâneo do cristianismo. Também uma certa expectativa de ascensão social e de capacidade de aceder ao consumo mitigaram a ruptura que atravessava já as sociedades europeias. O que terá acontecido para que esse disfarce tenha caído e para que, cada vez que a vontade popular se expressa nas urnas, as elites europeias tremam perante o avanço do populismo? Podemos pensar que isso se deve ao fim da expectativa de ascensão social, à vilania de um capitalismo voraz apostado em destruir os direitos sociais e à corrupção dos actores políticos. Isso terá algum peso. O problema, porém, está noutro lado, está na presença do estranho, do outro, dos imigrantes e dos refugiados provenientes, antes de mais, do mundo muçulmano.

A explicação é feia? Bastante, mas a realidade não tem de ser bela nem agradável. As elites, com a sua cultura racional e os seus interesses, aceitam facilmente a presença do estranho no seu território. Ao nível popular, contudo, a percepção do outro não é feita segundo princípios racionais derivados do Iluminismo. É feita de suspeita, de desconfiança e, acima de tudo, de medo. Na ausência de uma narrativa – religiosa ou outra – que permita integrar o que é estranho, existem múltiplas anedotas que, ao serem costuradas umas com as outras, fornecem o combustível que alimenta sentimentos negativos e que se traduz em xenofobia e na eleição de partidos e actores políticos que apregoam haver razões para ter medo do outro. As tradicionais elites políticas europeias, em nome da razão, podem continuar a fingir que não há aqui um problema, mas depois não se lamentem que a política tradicional e sensata esteja a morrer e que condottieri sem escrúpulos, em nome do sentimento popular, ganhem terreno e se aprestem para tomar conta dos rebanhos.

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