sexta-feira, 23 de março de 2018

Um cortejo fúnebre

Henri Cartier-Bresson, Rue de Vaugirard, 1968

Esta famosa fotografia de Cartier-Bresson tem no seu centro narrativo, digamos assim, o slogan do Maio de 68 Jouissez sans entraves. O slogan dizia, na sua totalidade, Jouissez sans entraves, vivez sans temps morts (Gozai sem entraves, vivei sem tempos mortos). Visto como resumo da grande explosão social dos estudantes franceses da época, tem sido interpretado de diversas maneiras, mas por norma como uma afirmação da vida enquanto exercício contínuo de prazer, como uma libertação do desejo e consumação deste. Na verdade, a palavra de ordem de 68 é muito mais tétrica do que aparenta. Basta conjugar os dois mandamentos que a constituem. 

O prazer libertado e sem entraves exigirá, é essa a condição humana, tempos mortos, tempos esses onde o desejo se reconstitui para buscar novos prazeres. Os tempos mortos são uma condição necessária à vida, incluindo à vida de prazer. Não há sibarita que não precise de horas mortas, de longas horas mortas. Conceber a vida como uma empreitada contínua (sem tempos mortos) de gozos sem entraves não é outra coisa senão uma afirmação da morte. Os homens não são máquinas desejantes, mas animais dotados de desejo. E a condição animal não está programada, seja qual for o âmbito que se considere, para um movimento perpétuo. O que pulsa no coração do Maio de 68 não é, então, a afirmação exuberante da vida, mas um convite à morte pela exaustão de um corpo agora submetido ao imperativo do prazer contínuo. O Maio de 68 não foi nem uma grande afirmação da vida nem um festival lúbrico. Foi, na verdade, um grande cortejo fúnebre.

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