sábado, 31 de dezembro de 2011

Um péssimo ano propício


Como a minha vizinha da frente (espero que esteja melhor da dor de cabeça), também eu professo um pessimismo escurecido, com a diferença de ser uma fé com longos anos. Pessimismo e cepticismo que se iniciaram nos meus dias de faculdade, apesar de, nesses tempos, estar muito ligado ao idealismo alemão e ao optimismo subjacente a este, devido às excelentes aulas do Prof. Manuel do Carmo Ferreira (a quem devo muito do que sei de filosofia). Sempre descortinei, todavia, uma ameaça latente na racionalidade e no projecto da razão. Hoje que vivemos a ressaca do pós-iluminismo, parece impossível encontrar um princípio que oriente a Europa, que lhe dê sentido e lhe permita ter um papel no mundo, a partir da tradição iniciada pelo cruzamento de Atenas e de Jerusalém. Sim, a democracia a 27 é uma aposta que merece admiração, mas não basta. É preciso que as forças do cepticismo e do pessimismo, aquelas que animaram a emergência da filosofia e da tragédia gregas, façam o seu trabalho de limpeza da ganga que a História depositou na Europa. Talvez o verdadeiro sentido de ser europeu seja o de viver em plena krisis, a qual nasce desses mesmos pessimismo e cepticismo. Ora, nos últimos tempos, não há ano mais propício à crise, ao cepticismo e ao pessimismo que este que vai entrar. Talvez seja um ponto de partida para a Europa e para os europeus redescobrirem o seu lugar e o seu papel no mundo.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Poema 7 - Quando a noite caiu sobre a terra


Quando a noite caiu sobre a terra,
esquecera a infância,
o rumor das ervas à luz do vento,
o grito silencioso do animal ao morrer.

Se o dia um dia voltar,
de nada servirá a memória das trevas,
nem a voz dos deuses
trará a esperança da noite
para sempre vencida.

Se o dia um dia chegar,
às primeiras horas, tudo clareia,
aparelha o barco, remos e velas,
e sobre as águas espera o naufrágio.
Não há quem te possa acolher.

A racionalidade chinesa


Como o artigo de Ivan Krastev, no Público, sublinha, a conduta política chinesa é marcada por uma enorme racionalidade. Não parte de uma idealização a priori, nem se propõe ao proselitismo político, pecados americanos. Digamos que é uma racionalidade empírica, partindo da análise das condições concretas do mundo e formulando estratégias adequadas aos interesses chineses. Enquanto europeu, submetido durante muito tempo à retórica do fim dos Estado-Nação e da malevolência dos nacionalismos, tenho a sensação nítida de ter sido enganado. A racionalidade chinesa é o instrumento do nacionalismo chinês, de um nacionalismo que, sem a agressividade americana, vai submetendo a realidade internacional aos seus desígnios. O problema europeu não é, porém, o de não existir um nacionalismo europeu, ou dos velhos nacionalismos estarem mortos. O problema é que a Europa não tem nada para substituir o nacionalismo. Por isso, a sua política é tão errática e o seu destino parece tão negro. A racionalidade política chinesa é orientada pelo nacionalismo, a Europa tem-se mostrado incapaz de produzir um princípio orientador que confira forma e fim à acção política racional. A verdade é que os europeus substituíram o nacionalismo por coisa nenhuma. E isto merece ser pensado, até para que os nacionalismos arcaicos não acordem por aí e nos assediem como fantasmas.

Ironias da História

Ironias da História, a minha crónica no Jornal Torrejano.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Poema 6 - Esqueço a terra, o céu, a cinza da minha aldeia


Esqueço a terra, o céu, a cinza da minha aldeia.
Esqueço os pequenos delitos da infância
e entro nos teus domínios
pela porta que abriste ao dizer o meu nome.
Tantas são as coisas que guardo:
os gestos com que chegavas,
o olhar que desbravava a selva do coração,
a palavra hesitante da tua boca.

A mais pura pobreza canta ao amanhecer,
canta se te olho na sombra da memória
ou se um pássaro voa sobre as cerejeiras,
de onde roubo cada cereja
que amanhece na alegria dos teus lábios.

Nunca a vida me convidou para os teus braços,
apenas o terror da morte cresceu
na desmesura dos campos incendiados pela tarde.
As cores formaram um arco-íris
e eu caminhei pela ponte dentro
para a margem das tuas mãos,
brancas como a alma presa nas minhas.

Uma questão de viabilidade nacional


A emigração de portugueses para o Brasil, como para outros lados, é o sintoma do principal problema político português. Reduzido à sua dimensão peninsular, Portugal dificilmente encontra forma de alimentar condignamente a sua população. Depois de duas décadas de equívocos, onde a adesão à Europa, com as políticas subsequentes que todos conhecemos, e a imigração ocultaram o problema, ele voltou, com as crises do subprime e da dívida soberana, de forma acintosa. Com efeito, aquilo que está em jogo é própria viabilidade do país. Portugal anda há muito a discutir a questão do défice externo e da dívida soberana, mas isso são apenas aspectos particulares da questão mais geral da viabilidade da nação. Era sobre a forma de a tornar viável que deveríamos estar a discutir. Arriscamo-nos a ficar presos aos sintomas, como a emigração, sem conseguir perceber a doença.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Homem novo


Como foi possível que, nos séculos XIX e XX, a retórica da construção social do homem novo tivesse tanto sucesso? Como fomos capazes de nos enganarmos ao ponto de crer na possibilidade de um paraíso terrestre, do qual estariam eliminados todos os safados? A humanidade é um depósito inesgotável de safados e de safadezas. A ideia do homem novo não é propriamente comunista, como muita gente pensa, mas cristã. Veja-se como se portam estes pobres padres à volta da sua pequena propriedade na Basílica da Natividade, em Belém. Se nem do espírito nasceu um homem novo, como seria possível fazê-lo emergir das manigâncias e arranjos sociais? Por detrás de um sorriso simpático e afável, esconde-se sempre o velho macaco.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

A maravilhosa morte de Kim Jong-il


Tudo o que rodeia a vida, morte e honras fúnebres de Kim Jong-il parece-nos estranho e, do ponto de vista da razão, absolutamente destituído de sentido. Mas uma inspecção menos enviesada dos regimes políticos depressa nos ensina que aquilo que se passa na Coreia do Norte, com todo o arsenal de propaganda e de milagres, não é muito diferente do que ocorre nas democracias ocidentais. O recurso ao maravilhoso é um elemento estrutural da operação de legitimação do poder político. Olhar para o que se passa em regimes como o norte-coreano ensina-nos muito sobre os nossos próprios regimes, onde estes artifícios existem, mas de forma a que sejamos manipulados sem dar por isso. O regime da Coreia do Norte é uma caricatura? Mas as caricaturas têm a vantagem de exagerar certos traços para que eles se tornem visíveis. Só isso.

Pobres


“Nunca deixará de haver pobre na terra (Dt. 15:11).” Chegou o tempo de pensar a pobreza não apenas do mero ponto de vista social, mas como uma condição ontológica da humanidade. Poder-se-á sempre dizer que é a perversão social de alguns que torna os outros pobres, mas este “nunca” vetero-testamentário remete muito para além do social e da sua produção. Remete para uma área obscura que exige que se pense. A pobreza antes de ser uma condição social é um mistério que desafia a razão. A caridade cristã, a solidariedade humana ou as políticas socialistas foram respostas a uma condição social, mas não tocam na essência do mistério da pobreza.

sábado, 24 de dezembro de 2011

Natal - credo quia absurdum


Tudo na história do Natal é inverosímil, ficção, devaneio da razão. Mas quem disse que a verdade dos símbolos reside na verosimilhança? De facto, é menos inverosímil que um menino, filho de Deus, tenha nascido, num estábulo de Belém, de uma virgem, que qualquer das asserções, onde se incluem as científicas, que nós, inúteis mortais, fazemos sobre aquilo que, sem vergonha, chamamos realidade. A essência de qualquer fé reside na máxima atribuída a Tertuliano: credo quia absurdum. Creio porque é absurdo. Mas se nós aceitarmos que todo o conhecimento é crença, então mesmo o conhecimento racional, mesmo a própria ciência, se funda num absurdo. Mas o absurdo do pensamento científico-racional é um absurdo que não se reconhece como tal, e por isso ainda mais absurdo que o absurdo da fé religiosa. A ficção natalícia é menos inverosímil que a lei da gravidade. Repita-se com Tertuliano: credo quia absurdum. Um Bom Natal para quem por aqui passar, e para todos os outros, também.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Poema 5 - São assim os dias de Natal


São assim os dias de Natal,
pequenas figuras em terra de musgo,
segredo a desvendar ao cair da noite,
as mãos abertas para o que há-de vir.

Podem levar-nos a casa
e incendiar o que mais amámos.
Podem trazer a noite
quando o sol brilha ao meio-dia.
Podem silenciar o coração
se ele canta no furor da manhã.

O que não podem
é roubar a memória da estrela no céu,
o ciciar do anjo sobre a areia do deserto,
o esplendor de um presépio
nascido para a desmedida do teu olhar.

Verdade e mentira


Exigem a veracidade das minhas palavras, mas poderei ser verdadeiro naquilo que digo? Se tudo o que penso e sinto é habitado por contradições tão dilacerantes, se tudo toma uma coloração e, de imediato, uma outra tão oposta, se tudo, nesse pensar e sentir, se move e transforma, para logo retornar ao que era e, mais uma vez, se negar, como poderá a minha palavra apresentar a estabilidade que a tornaria digna de crédito? Tivesse Deus ou a natureza dado ao meu sentir e pensar a imutabilidade, seria ainda possível que as minhas palavras fossem verazes. Assim, criado para a inconstância e a volubilidade, toda a verdade que digo é, mal proclamada, a mais acintosa das mentiras, e em cada mentira oculto a luz da pura verdade. Já era tempo de sabermos que a verdade e a mentira são assuntos que pertencem aos deuses. Que cruel destino o de ter de suportar as querelas divinas.

domingo, 18 de dezembro de 2011

O grau zero da política


Um primeiro-ministro é nomeado para manter a comunidade coesa e defender os interesses dessa comunidade, conciliando as partes que a compõem. Como referiu Michel Foucault, o governante é como o bom pastor, aquele que não perde qualquer das suas ovelhas, e a todas conduz com zelo, e com todas se preocupa. Ora, quando Passos Coelho manda os professores excedentários emigrar, qualquer coisa de inédito se está a passar. Em vez de encontrar soluções políticas para os cidadãos que lhe cabe governar, manda-os desistir da sua pátria. Outros que se ocupem deles e os governem. O pensamento de Passos Coelho roça a pura indigência, o grau zero da política.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Poema 4 - Se perderes metade de ti


Se perderes metade de ti
ou os goivos do jardim secarem,
ainda te resta o silêncio e a tarde
para murmurares o nome
que arde no cego coração.

As constelações continuam firmes
e nenhum sofrimento bastará
para alterar a rota dos planetas.

De tudo o que alguém significa para alguém,
talvez nada chegue para um poema:
uma flor, o olhar vazio,
a taça da vida no chão despedaçada.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

A Igreja e a sexualidade

Esta notícia traz uma novidade. Esta não reside no facto de padres e leigos católicos holandeses abusarem de menores. Ela reside no reconhecimento que as práticas de abuso de crianças serem correntes na Holanda, independentemente da orientação das instituições e da fé dos abusadores. Seja como for, não é o facto da prática ser generalizada na Holanda que iliba os católicos. O caso holandês é apenas mais um a juntar a uma lista já considerável. Apesar dos notáveis esforços levados a cabo por Bento XVI para enfrentar o problema, a Igreja precisa de meditar até que ponto a moral sexual que tem defendido não tem servido de ponto de apoio para este tipo de predação. 

O manifestante

O manifestante, a minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Fim de um exercício pueril


Os americanos abandonaram o Iraque. Cansaram-se de um exercício pueril e equívoco, cujo resultado foi o de fragilizar o Ocidente. Do ponto de vista político, a gravidade da intervenção americana não reside no embuste gigantesco que justificou a intervenção, mas na ilusão ideológica que toldou os cérebros que rodearam George W. Bush e o empurraram para a guerra. A suspensão da razão nunca foi um trunfo nos negócios do mundo.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

O jogo da exclusão


Jovens inglesas prostituem-se para pagar estudos superiores. As ilusões sobre a natureza do mundo social estão a cair uma a uma. O que está em causa não é tanto o facto de haver quem se prostitua, mas o do acesso à universidade se tornar num bem cada vez mais caro e reservado. Durante muito tempo vivemos na convicção de que a virtude social residia nas estratégias de inclusão, daí a retórica da universidade para todos. Isso tirou-nos o discernimento para perceber que toda a vida social, até nas sociedades comunistas, se regula pela diferenciação e pela exclusão. A inclusão deriva da necessidade do outro imposta pela fragilidade humana. A exclusão, porém, é a assinatura da minha liberdade e do meu poder. Não há quem não a faça.

Moral


A moral é uma invenção masculina. Pretende sujeitar a realidade – i. e., a mulher – à norma. A mulher, porém, despreza a norma, e segue aquilo que lhe dita o coração. A mulher segue a ética do sentimento, o seu é um ethos amoroso; o homem, em desespero de causa, aplica a norma dos contratos, a distinção entre bem e mal, à tentativa de reter, se interessado, a mulher. A moral é a forma como os homens transformam o amor num contrato, e submetem a inconstância do coração à continuidade da lei. Aos homens é difícil compreender que onde estiver o sentimento da mulher, é aí que está a sua lei. Uma lei sempre particular, o que não deixa de escandalizar a pobre razão.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Nostalgia


Toda a nostalgia supõe a ideia de um exílio e, como consequência, manifesta-se como a dor daquele que anseia o regresso. Esse exílio, porém, não é mais que o afastamento que vai de si a si. Dói o estranhamento que se abre em nós e nos torna estrangeiros no nosso próprio ser. A nostalgia não é outra coisa que o apelo que sentimos por nós mesmos.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Poema 3 - A cidade adormece ferida de luz


A cidade adormece ferida de luz
e nos recantos ociosos
sussurram os corações.

Nas palavras ditas,
há uma ameaça vazia,
suspensa dos lábios,
um gesto fortuito,
a canção perdida no matagal.

Se te sentas à mesa,
esperas que venha a tempestade,
e entre coisas perdidas
vês crescer o vendaval.

Lars von Trier, Melancholia


O último filme de Lars von Trier pode ser visto como uma alegoria excessiva à experiência da modernidade ocidental. A inevitabilidade da catástrofe, o choque da Terra com o planeta Melancholia, e a vida comum, são os temas literais do filme. Este oferece, contudo, um elevado número de leituras possíveis que, longe de se contradizerem, devem ser vistas como um dispositivo de mútuo reforço. Ensaiemos duas leituras.

Numa leitura fraca, poderíamos ver na aproximação e choque do planeta Melancholia com a Terra uma metáfora sobre a vida no nosso planeta. A melancolia, essa falta de entusiasmo e de indiferença pela acção, coloniza a vida da espécie humana. No momento de maior azáfama dos homens (veja-se como o trabalho e a acção são tão valorizados), von Trier mostra-nos que todo o trabalho humano, todo o excesso produtivo que cobre a terra, é um sintoma de um estado depressivo. Não há um sentido para o casamento de Justine, não há um sentido para as preocupações de Claire. Contrariamente ao romantismo, onde a melancolia era uma experiência enriquecedora da alma, no filme de von Trier ela é uma catástrofe apocalíptica. O mundo morre de melancolia, morre de falta de sentido. Não há cerimónia, ou ciência ou gruta mágica que nos forneça um sentido salvador do munto perante a invasão da melancolia.

Numa leitura forte, podemos observar o choque entre a crença iluminista na liberdade e a fatalidade trágica dos gregos. Deste ponto de vista, Melancholia é uma alegoria sobre a crença europeia em fundar a vida e a acção na liberdade. A colisão entre a Terra e o estranho planeta Melancholia é marcada pela estrita necessidade que as leis da física mecânica explicam. Perante essa inevitabilidade, nem a inconstância de Justine, nem a crença na ciência de John e do filho, nem o temor de Claire (irmã de Justine, mulher de John e mãe do respectivo filho), nem a gruta mágica, que Justine cria para o sobrinho, são elementos de salvação. A vida comum, com a sua crença inquestionada no livre-arbítrio, vida na qual se deve incluir a própria ciência, é impotente perante a inevitabilidade. A desmesura entre as forças da liberdade e as da necessidade mostra que não há lugar para qualquer salvação. Não é por acaso que Justine diz, a determinado momento, quando a colisão se aproxima, que a vida é má. A passagem de von Trier pelo romantismo permite lançar uma ponte para a tragédia grega e para a inelutabilidade do destino do herói trágico. Em linguagem nietzschiana, von Trier explora o conflito entre o optimismo da modernidade ocidental e o pessimismo presente no pensamento trágico, para captar dessa forma uma imagem desoladora da aventura europeia desde o Renascimento.

Melancholia é tudo isso, a primeira e a segunda leituras, um estado depressivo e o reconhecimento da inelutabilidade, do fado, na vida, para além de um exercício estético provocador pela sua beleza e pelo kitsch que está presente nessa mesma beleza.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Esperança

O que podemos esperar? Assim formulava Kant a questão que animou o princípio de esperança da tradição iluminista europeia. Durante uma parte substancial do século XX, o problema da esperança tinha uma tonalidade social e política. Hoje em dia, a esperança apenas toca as vidas individualizadas, o poder de realizar os projectos próprios. Mas as questões que nos devem atormentar são outras: precisamos da esperança para quê? Que medo toca o espírito para este reclamar da espera um princípio de salvação? Não será a esperança o sintoma de uma doença?

Democracia

Corre um grande lamento pela conduta não democrática em que a União Europeia, e alguns dos seus membros, se atolam. Mas aquilo que se esquece é que os regimes políticos são uma questão de conveniência e de oportunidade. A democracia não é o fim moral da política, mas uma mera possibilidade entre outras, que as circunstâncias ditarão a ocorrência ou a morte. Iludir o carácter circunstancial dos regimes democráticos é entrar num estado de negação da realidade.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Política

De que trata a política? A partir de determinada altura, como salienta Michel Foucault, a política trata do pastoreio do rebanho. Um bom político é um bom pastor, aquele que não perde as ovelhas que lhe foram confiadas. Mas que temos nós a ver com isso? Ansiamos ainda o exercício do pastoreio? Não. Há muito tempo que o espírito se deslocou desse estado infantil. A política é um prolongamento da infância, dessa infância campestre onde se sonha conduzir, por montes e vales, o rebanho. Mas o espírito, mesmo se já perdeu todas as ilusões dessa longínqua infância, não deixa de sentir a nostalgia dos começos. Cada vez que no Kyrie Eleison se falar de política, isso deverá ser compreendido como um exercício pueril, um tributo a essa infância perdida. Toda a reflexão política pertence ao âmbito da puericultura.

As lágrimas amargas de Elsa Fornero

As lágrimas amargas de Elsa Fornero, a minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Crucifixão

A experiência da cruz. Viver a experiência da contradição até ao paroxismo. Alguns, bem poucos, experimentam a contradição que os dilacera por dentro, esse combate entre luz e trevas, essa divisão entre acção e pensamento, essa guerra entre vida e morte. Mas todo o seu esforço tende para a cura, para a resolução do conflito e para a pacificação de si. Outros, muito mais raros ainda, têm um destino cruel, o de viver sempre na encruzilhada, impossibilitados de fugirem ao dilaceramento e de resolverem o conflito. São os que fazem a experiência da crucifixão. Não morrem na cruz, vivem crucificados.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Poema 2 - Se alguém a morte em si encerra

Se alguém a morte em si encerra
e deixa longe da vista os jardins
onde se amontoam cardos na terra,
tudo se torna vago e trémulo,
e as comoções que tocam o coração
são uma seara de ervas
onde esquecemos as nossas sentenças.

O arco-íris esbateu-se.
As palavras são pedras de silêncio,
onde canto em cada hora que passa
o salmo breve de um adeus.


Vazio

Há quem seja vazio e há quem tenha dentro de si o vazio. Os que são vazios coincidem consigo mesmos. O ser e a vacuidade são a mesma coisa, e são felizes na passividade de serem nulos. Aqueles, porém, que trazem o vazio dentro de si aspiram à pura plenitude, mas uma força sombria arrasta-os, como uma vertigem, para o puro nada. A tensão entre plenitude desejada e o vazio que cresce é o princípio da própria morte.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Vaidade

A vaidade que se sabe vaidade é já o primeiro passo da pura humildade. Que maior humilhação do que a de saber o ridículo com que se cobre aos olhos dos outros e, ainda assim, persistir no exercício, agora virtuoso, da enfatuada ostentação de si?

Poema 1 - Chegámos aos dias frios

Chegámos aos dias frios,
e não sabemos o que fazer
para o coração não resfriar.
Ainda há pássaros nas árvores
e as ruas são pântanos descoloridos na noite,
mas já não conseguimos escutar as nuvens
e os olhos fecham-se de cansaço.

Nenhum ocaso nos comove,
a nós que ao poente espreitámos,
na fímbria agreste da terra.
Os barcos zarparam
e levaram com eles a água
onde os meus olhos poisavam,
nos gélidos dias em que dos teus partiam.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Abertura

Kyrie Eleison resume tudo o que há para dizer sobre o nosso destino. Que o Senhor tenha piedade de nós. A liberdade que marcou o projecto dos tempos modernos tornou-se agora um fado mais duro e inexorável do que aquele que habitava as tragédias gregas. A liberdade de alguns confiscou a liberdade de milhões e, como por um passe de mágica, petrificou-a em pura necessidade. Entre o que fazemos e o que nos acontece há, mais uma vez, uma desmesura infinita. A vida, que por um momento pareceu brotar da liberdade, tornou-se uma enorme colónia penal, onde cada condenado suporta o peso da irrevogável necessidade. Não tragam rosas pela manhã. O tempo é de crisântemos. Kyrie Eleison, um blogue para os tempos de chumbo, a minha visão da luz e das trevas.