segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Contra a privatização do ensino

Stanley Spencer - Christ Overturning the money changers' table (1921)

Não podia estar mais de acordo com este artigo de Paulo Guinote, no Público. Está a preparar-se, a coberta de um relatório encomendado pelo governo e mal feito pelo FMI, uma nova revolução na educação. Esta revolução, porém, não visa a melhoria do sistema de ensino, mas pura e simplesmente transformá-lo em mercadoria e aos seus agentes, isto é, aos professores, em mera mão-de-obra descartável. Não se trata de outra coisa, pois os estudos internacionais têm mostrado que o sistema público português - apesar das intervenções disparatadas dos ministros da Educação, digo eu - tem, considerando a sua evolução, um desempenho acima do expectável. Isto, para além de preparar melhor para o ensino superior que as escolas privadas, como o veio demonstrar um estudo da Universidade do Porto (estudo que deve ter feito muita azia). Só quero referir dois argumentos contra a privatização do ensino. Diria, para usar o jargão da filosofia, que é um argumento ontológico e outro de filosofia política.

Argumento ontológico. O bem fornecido pela educação não é uma mercadoria que possa estar sujeita às leis do mercado. Imaginemos que nenhum pai queria que os seus filhos frequentassem a escola. Isto significaria que, pelas leis do mercado, elas deveriam fechar. Sabemos que isso não é possível, pois a educação é compulsiva, uma obrigação determinada politicamente. Mas este é apenas um argumento secundário. Tanto o saber - e a verdade que o orienta - como as relações de transmissão e aquisição desse saber não se podem regular pelas trocas comerciais. As escolas não podem vender diferentes físicas ou diferentes matemáticas como os stands de automóveis vendem diferentes carros. Por outro lado, a relação entre um professor e os alunos não é a relação entre um fornecedor de conhecimento e os seus clientes. O estudo da Universidade do Porto é muito interessante porque deixa compreender algumas coisas que são invisíveis. Ele mostra que as escolas privadas preparam melhor para a realização de um teste de papel e lápis (o exame). É uma preparação para o curto prazo. Mas o estudo mostra que esses alunos são pouco competitivos quando chegam ao ensino superior. A escola pública, pelo contrário, desenvolve um conjunto de capacidades a longo prazo, um trabalho invisível, mas que torna os seus alunos melhores nas universidade e, por certo, na vida activa. O trabalho de um professor tem componentes invisíveis, que não se compaginam com uma visão mercantil do ensino. É mais rentável para os alunos e para o país um certo, embora aparente, desperdício do que a eficência mercantil das escolas privadas. Esse aparente desperdício, que na verdade é investimento, deve ser uma preocupação da comunidade e como tal suportado e controlado politicamente por ela. Só as escolas públicas podem ser controladas politicamente pela comunidade.

Argumento político. Embora não seja reconhecida, a instrução e a educação públicas têm uma função de soberania. São um pilar mesmo da soberania, ao lado do corpo político, judicial e militar. O grande trabalho da escola pública é, através da transmissão de um conjunto de conhecimentos seleccionados politicamente, criar continuamente a comunidade política. A escola pública, ao formar os estudantes, está a formar também os cidadãos que permitirão que a comunidade política persista no tempo. Mais, devido ao carácter transclassista da escola pública, ela fomenta a amizade cívica, a vontade de pertencermos a uma mesma comunidade política e partilharmos um conjunto de valores em que reconhecemos a nossa identidade. Como as outras tarefas de soberania, esta também não deve ser privatizada.

Era bom que os vendilhões do templo pensassem no que querem fazer e na destruição que estão a preparar.

2 comentários:

  1. Caríssimo! Não sei se não serás o único «filósofo continental» que continuo a ler (e, claro, aceito que aches este elogio tenha uma pitada de provocação, mas é elogio na mesma), e textos como este são a razão para isso. Só dois reparos: por um lado, acho que o teu argumento depende em excesso do estudo da univ do Porto (tens de arranjar mais :); por outro lado, acho que para quem desespera tanto dos argumentos, razões e afins, te sais muito bem, diria demasiado bem para o teu gosto, pelo que deverias rever... o teu gosto. Enfim, espero que com mais dois ou três elogios, estranhos e suspeitos ou não, mantenhas o desejo de pensar e publicar. Abraço.

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    1. Ora viva. Platão não era continental ou anglo-saxónico. No entanto, deixou a coisa clara no Fédon (não tenho tempo para ir procurar o "lugar" da citação). Os poetas fazem ficções e os filósofos argumentos. Por outro lado, nos anglo-saxónicos estimo a clareza da exposição e a probidade com que dizem o que dizem. Quanto ao limite do argumento baseado no estudo da Universidade do Porto, é verdade, mas não estava com tempo para mais e o texto do Guinote começava já a ficar para trás no tempo.

      Abraço

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