segunda-feira, 31 de agosto de 2015

O Livro do Entardecer (6) a casa onde vi a infância ruiu

Edvard Munch - Casa à luz da Lua (1895)

6. a casa onde vi a infância ruiu

a casa onde vi a infância ruiu
levou-a o tempo
na sua mão de seda
num gesto de luz e vento

nada sei dos dias magoados
do terror das noites
das ervas em teus olhos
– esqueci e é tudo

resta-me a espada de âmbar
a cabeça do centauro
e um fulgor de aço
na lâmina que me cortou

(averomundo, 2009/12/23)

domingo, 30 de agosto de 2015

Quatro máximas de Thomas Merton

Thomas Merton

Esperar é arriscar ser decepcionado. Decidam-se a correr esse risco.

Um escritor de tal modo prudente que nunca escreve nada de criticável, nunca escreverá nada de lisível. Se desejam ajudar os outros, decidam-se a escrever coisas que certos condenarão.

Se não sabem duvidar, não podem ser homens de fé. Não podem ser homens de Deus se não são capazes de contestar o valor de um preconceito, seja um preconceito religioso. A fé não é uma aceitação cega e sem reserva, um juízo de facto. É uma decisão, um juízo aceite deliberadamente e inteiramente, à luz de uma verdade que não pode ser provada, e não a simples aceitação de uma decisão tomada por outrem.

O poeta entra em si mesmo para criar. O contemplativo entra em Deus para ser criado. [Thomas Merton, Semences de Contemplation]

Estes pequenos textos interessam-me por dois motivos. Por um lado, pela fina intuição do acto literário que este monge trapista possuía. Em Semences de Contemplation (New Seeds of Contemplation, no original) há um conjunto relativamente largo de reflexões sobre o acto poético, a criatividade e a radical singularidade que deve ter o poeta, a qual é posta em paralelo com a radical singularidade que deve possuir o monge.

Por outro, os textos de Merton – que leio há longos anos – abrem perspectivas de diálogo com o mundo moderno que não se encontram em muitos textos e tomadas de posição da Igreja Católica. Quando Merton diz que quem não sabe duvidar não pode ser um homem de fé, abre o caminho para o diálogo com a tradição da modernidade inaugurada por diferentes formas de cepticismo. Mas, fundamentalmente, abre as portas à conversação com um mundo em que a indiferença se traveste de dúvida. O que Merton mostra é que o cristianismo católico tem recursos suficientes para falar com o mundo actual, mesmo nas sociedades pós-modernas e hedonistas como são as nossas. Tem lhe faltado, porventura, a inteligência ou a vontade. (averomundo, 2009/04/14)

Nota: o texto é de 2009 e relativamente ao diálogo da Igreja Católica com a sociedade contemporânea alguma coisa mudou de então para cá. Esse diálogo precisa de ser intensificado e é fundamental para a Europa, num contexto em que muitos dos seus valores são abertamente contestados e postos de lado, inclusive pelas elites políticas e económicas europeias.

sábado, 29 de agosto de 2015

A Roda da Fortuna

Edward Burne Jones - A Roda da Fortuna (1883)

Abel tornou-se pastor e Caim lavrador. Passado algum tempo, Caim ofereceu frutos da terra em oblação ao Senhor. Abel, por seu lado, ofereceu dos primogénitos do seu rebanho e das gorduras dele; e o Senhor olhou com agrado para Abel e para sua oblação, mas não olhou para Caim, nem para os seus dons. Caim ficou extremamente irritado com isso, e o seu semblante tornou-se abatido. (Gen. 4:2-5)

Segundo o Público, licenciados e doutorados estão a concorrer para lugares de assistentes operacionais (a designação actual do que antigamente se denominava como contínuos, depois auxiliares de acção educativa). Interroguei-me sobre o que sentem estas pessoas perante uma desigualdade tão grande de destinos, desigualdade que se deve não ao mérito ou à falta dele, mas a uma questão de se ter nascido antes ou depois. Imagine-se, por exemplo, a situação em que professores e dirigentes escolares são licenciados e dois ou três assistentes operacionais são doutorados. O que sentirão os assistentes operacionais doutorados ou mesmo os licenciados? Ontem pensei que escreveria hoje sobre o assunto, sobre duas paixões presentes no homem e que se manifestam a partir da fortuna de cada um. Por um daqueles acasos em que a blogosfera se tornou fértil, também o José Ricardo Costa tratou do caso, numa perspectiva muito diferente da minha, no seu blogue Ponteiros Parados.

Uma das paixões mais arcaicas da humanidade é a paixão pela igualdade. Costumo comentar que as comunistas mais consistentes que conheço são as minhas netas, irmãs com 4 e 6 anos. Não se pense que elas têm uma educação nesse sentido ou que sabem o que é o comunismo. Não, pelo contrário, frequentam um colégio católico, apostólico e romano. O meu comentário deve-se ao facto de quererem sempre coisas iguais, de chegarem a desistir de alguma coisa que desejam para escolherem outra exactamente igual à da irmã. Têm – ainda têm – uma genuína paixão pela igualdade. Paul Ricoeur escreveu que entramos na problemática da justiça através da injustiça, dessa injustiça sentida, na infância, quando se recebe uma fatia de bolo menor do que a de um irmão. A exclamação isso não é justo! é a expressão genuína da paixão pela igualdade.

Aquilo que se passa ao nível dos indivíduos reproduz o vivido e sentido ao nível da espécie. Medite-se o texto do Génesis citado em epígrafe. O que abateu Caim e o levou à ira e, posteriormente, à violência homicida foi o sentimento de injustiça que nasceu nele pelo facto de Deus não ter olhado com agrado a sua oblação, ao contrário do que fizera com Abel. O sentimento de injustiçado nasce da percepção de um tratamento desigual. A narrativa do texto bíblico é a codificação de uma experiência arcaica da nossa espécie e é, ao mesmo tempo, uma eloquente expressão da paixão pela igualdade, paixão presente em todos nós. Qual é o problema que está presente no sentimento de Caim ou do irmão que recebe uma fatia menor do bolo? É o do reconhecimento. Caim não se sentiu reconhecido. O irmão que recebe a menor parte não se sente reconhecido como filho na sua plenitude. A paixão pela igualdade não deriva de nenhuma teorização abstracta nem foi invenção dos comunistas para aborrecerem os mercados. Está ligada à nossa ânsia de reconhecimento. Aqui retorno à questão: O que sentirão os assistentes operacionais doutorados ou mesmo os licenciados? Inveja? Ira? Resignação por uma ordem que os condena? Seja o que for, a paixão pela igualdade falará, nesta hora, muito alto dentro da sua consciência. A deusa Fortuna não lhes foi propícia.

A paixão pela igualdade, apesar de ser arcaica, não é a única que existe no homem. Diria mesmo que ela é passageira, que persiste enquanto alguém se sente negativamente discriminado. Uma outra paixão, nascida ainda da necessidade de reconhecimento, toma o lugar da paixão pela igualdade. É a paixão pela dominação, pela sobreposição ao outro, pela diferenciação assente na hierarquização dentro da comunidade. Não vale a pena sequer dar exemplos, basta olhar e eles estão em todo o lado. A história dos homens não é mais do que a luta entre duas paixões arcaicas, que buscam estratégias racionalizantes não apenas para se legitimarem mas para triunfarem.

Um dos equívocos – o qual faz parte de certas estratégias da paixão pela dominação – é confundir a paixão pela dominação com um amor pela liberdade. Esse equívoco conduz mesmo a opor igualdade e liberdade. A liberdade pouco tem a ver com estas duas paixões. O que nós observamos na história dos homens não é o conflito entre aqueles que tecem terríveis esquemas abstractos para impor o igualitarismo e os amantes da liberdade e da ordem espontânea do mundo. O que nós vemos é o interminável conflito entre duas paixões, que se cobrem com armaduras teóricas para melhor alcançarem os objectivos passionais, para melhor darem sequência às pulsões mais ou menos inconscientes que as alimentam. E, queiramos ou não, todos somos arrastados por esse conflito passional, mesmo que o nosso lugar – como o dos assistentes operacionais doutorados – se deva àquilo a que os romanos chamavam Fortuna e os gregos, Tykhe, pois não escolhemos a hora do nosso nascimento, não escolhemos nenhuma das nossas características, nem a inteligência, nem a coragem, nem a resiliência, nem a força de vontade. 

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Uma pantanosa melancolia

A minha crónica quinzenal no Jornal Torrejano.

As férias de Verão – ainda fará sentido falar assim? – estão a acabar. Setembro devolver-nos-á, aos que estamos de férias, ao mundo profano dos negócios quotidianos e preparar-nos-á para as eleições de 4 de Outubro. O que pode espantar, na actual situação política, é a impotência da esquerda para responder à coligação governamental. Essa impotência é tanto mais significativa quanto o próprio país tem uma visão negativa da acção – uma acção altamente destrutiva, diga-se – dos actuais detentores do poder. Vale a pena olhar para esta falta de capacidade, para esta impotência.

Comecemos pela clara limitação da área política que vai do BE ao PCP. Valerá, neste momento, 15% do eleitorado. Talvez um pouco mais, mas não muito. Mesmo que, por milagre, crescesse para 20% isso seria pouco significativo. Para além das limitações tradicionais (um eleitorado historicamente pouco sensível aos projectos políticos destes partidos), há, contemporaneamente, três experiências históricas que funcionam contra esta esquerda. Em primeiro lugar, o desvario da Venezuela. Em segundo, o trágico destino do lulismo no Brasil. Por fim, a rendição de Tsipras na Grécia. Três experiências de alternativas ao liberalismo dominante desfeitas em cacos.

Quanto aos socialistas, o problema parece ainda mais delicado. Com a substituição de Seguro por Costa, parecia possível uma vitória estrondosa. Hoje em dia mesmo uma vitória medíocre parece discutível. Por outro lado, as governações da esquerda democrática na União Europeia – Matteo Renzi, em Itália, e François Hollande, em França – parecem tudo menos inspiradoras. Também o fantasma insistente de José Sócrates não ajuda os socialistas. O problema, contudo, é outro. Os socialistas europeus assinaram tudo o que a direita europeia pôs diante deles, eliminaram a tradição social-democrata, que era a sua, e, hoje em dia, o seu programa – com excepção de um ou outro pormenor – é igual ao da direita, isto é, não existe esquerda social-democrática na Europa.

Em resumo, à esquerda resta um programa (o do PCP e do BE) que pouca gente quer e outro que é quase igual ao da direita. Esta situação arrasta-se há anos e não parece ter solução à vista. Entre a fé numa apocalíptica implosão do sistema e a pura capitulação perante o mesmo sistema, as esquerdas arrastam-se sem encontrar um rumo que, nas actuais circunstâncias globais, lhes permita defender os valores centrais que são os seus (os da liberdade, os da igualdade e os da comunidade). As próximas eleições serão, tudo o leva a crer, para as esquerdas nacionais o espelho dessa pantanosa melancolia.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

O Livro do Entardecer (5) nada sei dos céus

Georgia O'keeffe - Sky above clouds II (1963)


5. nada sei dos céus

nada sei dos céus
da terra de cristal
onde sonhei
nuvens e astros
anjos e princesas
ao deus-dará

caminho órfão
e sem destino
respiro o pó
no lugar onde ouvi
o último bêbado
louvar-te

sob a vastidão azul
dos céus
sento-me e oiço
o canto da cotovia
a voz pura
um deus que virá

(averomundo, 2009/12/22)

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Entre dois mundos

Yasuo Kuniyoshi - Between two worlds (1939)

É esta a nossa pobre condição: estar entre dois mundos. Entre o mundo da realidade e o mundo do desejo, ou, para usar uma linguagem freudiana, estar espartilhado entre o princípio da realidade e o princípio do prazer. Pode-se sempre fazer da realidade possível o objecto do desejo. Pode-se, se houver força para isso, tornar a realidade adequada ao desejo. O mais das vezes, porém, a vida não é senão um constante vai-vem entre dois mundos. Um vai-vem onde a energia se dissipa e o tempo se esvai.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Causar poucos danos

William Blake - Job´s evil dreams

E graças sejam dadas a Deus, Johnny - disse o Sr. Dedalus -, por termos vivido tanto e causado tão poucos danos. (James Joyce, Retrato do Artista Quando Jovem)

Esta frase de Joyce, há quarenta, trinta, vinte ou mesmo há dez anos, talvez não me  dissesse nada. Pelo menos não a retive. Agora, que a idade se acumulou perigosamente em cima de mim, faz todo o sentido. Não tanto pela ideia de ter vivido muito, mas por causa do mal. Quando se é novo, pretende-se distribuir o bem pelo universo. Uns pensam fazê-lo de forma mais abstracta, através da acção política, por exemplo; outros, de forma mais concreta através de práticas de solidariedade. Quando se chega a certa idade, o que se deseja, e não é por medo de uma condenação eterna, é ter feito pouco mal, ter causado poucos danos. E este desejo não é de fácil concretização, pois estar vivo traz sempre consigo um agir sobre os outros, e neste agir há, muitas vezes, um dano efectuado, um mal praticado. Quantas vezes irreflectidamente, quantas vezes irreversivelmente. Por isso, se percebe bem a acção de graças do pai de Stephen Dedalus por ter causado tão pouco dano. Mas terá ele causado assim tão pouco? O melhor será ler o romance de Joyce.

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

O cristianismo e a desilusão

Giacomo Balla - Abstract Speed - The Car has Passed (1913)

Pergunto-me por que motivo e apesar de tudo não posso deixar de ser cristão. Encontro nas últimas palavras de Mircea Eliade, em O Mito do Eterno Retorno, a resposta: «Neste aspecto, o cristianismo revela-se incontestavelmente a religião do homem “desiludido”: e isto na medida em que o homem moderno está irremediavelmente integrado na história e no progresso e em que a história e o progresso constituem uma queda que implica, em ambos os casos, o abandono definitivo do paraíso dos arquétipos e da repetição.”

Vivo na história e tenho consciência disso e vejo o progresso empurrar-me sei lá para onde. Isso que me iludiu durante um instante na juventude causa-me, agora, um enorme desprezo. Não há ninguém mais desprezível do que os homens vitoriosos do progresso. Erguem aos céus, em sinal de triunfo, as mãos fechadas, mas dentro delas não têm nada. Cada palavra que proferem, cada acção que praticam, cada gesto que executam, apenas indicam uma coisa: nada.

Ser um homem histórico comprometido com o progresso é o ideal de qualquer autarca de província. Em nome dos ideais de cada autarca que habita nos homens de progresso cresce, à nossa volta, um vazio cada vez mais ruidoso e sombrio, que a tudo coloniza e a tudo destrói. É por esta desilusão que encontro o cristianismo, mas mesmo aí já só avisto homens de progresso e autarcas cheios de futuro. Trocaram o crucificado pelo homem da regisconta. (averomundo,  2008/09/09)

domingo, 23 de agosto de 2015

Estranha fotografia esta

Eduardo Gageiro - Álvaro Cunhal

Descobri esta fotografia de Álvaro Cunhal, atribuída a Eduardo Gageiro, no Aventar. Há dias que ela me assombra, como se nela houvesse alguma coisa de fantasmático. Melhor, como se nela estivesse inscrita uma incongruência. A fotografia, segundo notícia de o Sol, consta de uma Fotobiografia - que não conheço - de Álvaro Cunhal lançada pelas Edições Avante, julgo que pela altura do centésimo aniversário do nascimento do líder histórico dos comunistas portugueses. A fotografia é, ao mesmo tempo, fascinante e perturbante, como disse. Compreende-se a intenção dos editores: glorificar o antigo chefe e humanizá-lo. A foto faria parte deste processo de humanização, de torná-lo menos angelical e mais próximo do homem comum. A mensagem seria esta: Cunhal, apesar da sua superioridade política e moral, não deixava de ser um homem como os outros, até bowling jogava. Mas a fotografia atingirá esses objectivos. Melhor: se ela atinge esses objectivos, não trará danos irremediáveis?

Olho a foto e o que vejo é bem diferente de uma mera humanização da personagem. O impulso é para relacionar a experiência à ideia de inquietante estranheza (das Unheimliche). Não tanto porque daquilo que é familiar surja aquilo que aterroriza, mas porque dessa familiaridade com uma certa imagem de Álvaro Cunhal se solta, através da ritualização presente na foto, uma outra realidade, a qual contamina por completo o que, na vida política portuguesa, se consolidou como a presença pública do antigo dirigente comunista. Na foto está toda a seriedade que, na sociedade portuguesa e no combate político, caracterizou Cunhal. Esta seriedade, porém, está concentrada na irrelevância de um jogo de bowling, de um divertissement, tomando este o sentido dado por Pascal, de uma prática de esquiva à realidade. Em vez de uma suposta humanização glorificadora, a qual serviria para reforçar as opções políticas de Cunhal, a foto contamina a actividade e as opções que foram as suas. E contamina-as levando o espectador a questionar-se se elas não foram, em última análise e em analogia com a fotografia, um divertissement, o seu divertissement privado. A sua prática de esquiva à realidade do mundo. Estranha fotografia esta. Talvez Cunhal gostasse que ela nunca tivesse sido publicada. Talvez.

sábado, 22 de agosto de 2015

O Livro do Entardecer (4) entardece

Jean-Baptiste-Camille Corot - A noiva

4. entardece

entardece
passam carros na avenida
e ao longe avisto a noiva
que um dia abandonei no altar

traz um vestido branco 
seda e organdi
na mão o ramo de flor de laranjeira
e uma sombra pela face anuncia
a noite que não chegará

olho as mãos vazias
de onde fugiu a noiva que esqueci
tenho medo que a tarde acabe
e uma súbita presença de pedra
me abra a porta pela qual nunca saí

(averomundo, 2009/12/21)

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Lições políticas: Tsipras e Le Pen

(imagem daqui)


A ideia popular, muito corrente nos dias de hoje, de que todos os políticos são iguais é falsa. Contudo, como a generalidade das ideias falsas, ela contém um fundo de verdade. É falso que todos os políticos sejam corruptos. É falso que todos os políticos sejam moralmente abjectos. É falso que todos os políticos sejam compulsivamente mentirosos. Então, perguntará o leitor, qual é fundo de verdade que existe na ideia de que todos eles são iguais? A resposta é menos misteriosa do que pode parecer: todos eles, como ensinou há muito Maquiavel, se movem pela conquista e manutenção do poder. Dois exemplos, mas que poderíamos universalizar sem medo de cometer a falácia da generalização precipitada.

Comecemos por um drama familiar. A Front National, o partido da direita radical francesa, expulsou ontem, 20 de Agosto, o seu fundador, Jean-Marie Le Pen. As motivações invocadas são irrelevantes. A única razão efectiva é que o velho Le Pen se tornou incómodo para a actual líder da organização. Com a actual liderança, a Front National aspira a ser mais do que um partido de contestação, aspira à vitória eleitoral e ao exercício do poder. O que pode parecer estranho é que a líder é Marine Le Pen, a filha do próprio Jean-Marie. Quando se trata de política o que conta é o poder. Os próprios laços familiares são um pormenor que será posto de lado se ameaçarem o único objectivo da acção dos políticos.

Passemos agora a uma tragédia grega. Também ontem, 20 de Agosto, o primeiro-ministro grego, Alexis Tsipras, demitiu-se do cargo para provocar eleições e ter oportunidade para consolidar o seu poder. Desde que assumiu funções, Alexis Tsipras, com surpreendente habilidade política, já disse e desdisse o seu programa eleitoral, já assinou acordos em que diz não acreditar, já votou ao lado da direita e contra os seus camaradas de partido. Assim como os laços familiares, também os laços ideológicos são insuficientes para conduzir a uma renúncia ao poder. Tsipras, que tem fortes possibilidades de ser reeleito, fez aquilo que, há muitos anos, o dr. Soares fez em Portugal: meteu o programa na gaveta.

Estes comportamentos não são especialmente censuráveis, desde que nós, cidadãos, não tenhamos ilusões sobre o que é a política. Se acharmos que através da política se vai realizar uma ordem moral do mundo superior (isto é, se julgarmos que através da política se realizarão os nossos desejos, sonhos e fantasias), então seremos continuamente decepcionados, e estaremos, sempre, a ver traições e traidores a toda a hora e em todo o lado. Se olharmos para aquilo que é efectivamente a política – a luta pela conquista e manutenção do poder – então tudo se torna compreensível. E são os próprios cidadãos, que vituperam os políticos pelas suas acrobacias, que as reforçam, pois não há ninguém mais desprezível para o cidadão do que o político derrotado, o político destituído de poder.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Simples ocorrências

Vincent Van Gogh - Praia de Scheveningen com tempestade (1882)

Deu-se, então, uma ocorrência: a avó dele morreu antes de tempo. As ocorrências não são outra coisa senão tempos e lugares impróprios: é-se colocado no lugar errado, ou cai-se no esquecimento e a impotência é tão grande como a de uma coisa que ninguém vai buscar. (Robert Musil, "Tonka", in A portuguesa e outras novelas)

Esta ideia de ocorrência proposta pelo narrador da novela de Musil tem um efeito estranho e ambíguo, pois revela e ao mesmo tempo esconde algo que nos diz respeito enquanto seres humanos. Revela-nos que uma ocorrência só é tida como tal pela desadequação do acontecimento ao espaço e ao tempo. Alguém que faz alguma coisa antes ou depois da hora aprazada, como por exemplo aquela avó que morreu antes de tempo. Alguém que ri, outro exemplo, dentro de uma Igreja, num espaço que não está destinado ao rir. Só é registado como ocorrência aquilo que não está adequado à norma social espácio-temporal em vigor.

Esta revelação tem contudo o efeito de esconder o carácter mais geral das ocorrências. Explico-me: mesmo aquilo que acontece dentro da norma social espácio-temporal é uma ocorrência. O que nos conduz a uma outra coisa. Cada um de nós é uma ocorrência que se manifesta num contínuo de ocorrências. Isto permite suspeitar que, enquanto ocorrências, nós estamos constantemente num tempo e num lugar errados. A norma social espácio-temporal visa esconder, através de um conjunto de regras comportamentais, a nossa condição de contínua e inultrapassável desadequação aos lugares e aos tempos. No fundo, suspeitamos, não sem fundamento, que nunca estamos no lugar que é o nosso e que pertencemos a um outro tempo que não o que nos foi dado a viver. Não passamos de simples ocorrências, de acontecimentos deslocados, de estranhos fora do seu espaço e do seu tempo.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Tempo de profetas

Ernst Barlach - Prophet Writing (1919)

Cantor da Personalidade, esboçando o que está por vir,
Eu projecto a história do futuro.
(Walt Whitman, "A Um Historiador", in Folhas de Erva)

Se para a poesia já me parece completamente destituída de interesse a ambição profética (Eu projecto a história do futuro), então para a política ela é completamente descabida. Mas isso é o que eu penso e não os políticos. A tentação profética de António Costa ganha corpo fundada nos novos dispositivos proféticos. Nada de sonhos, visões e comunicações de anjos. Agora a profecia utiliza cenários macro-económicos, projecções e simulações (ver aqui ou aqui). A tentação profética não é uma especial prerrogativa do actual líder dos socialistas. Candidatos de hoje e de ontem ao poder, de múltiplas e variadas colorações, nunca deixam de exercer o dom da profecia. Parece que as eleições são sempre um momento propício para a descoberta deste tipo de vocação, a qual, e tanto quanto me lembro, o futuro que depois chegou nunca teve a amabilidade de confirmar.

Em tudo isto há, no entanto, um significativo equívoco. O profeta antigo não era, por norma, detentor do poder político ou candidato a esse mesmo poder eu sei que o caso do Islão é diferente). Muitas vezes os profetas tomavam a voz para pôr na ordem, além do povo tresmalhado, os seus dirigentes. A profecia não era um instrumento de poder mas uma forma de limitação desse mesmo poder. Não deixa de ser surpreendente a actual apropriação da função profética pelos políticos (e os economistas, é preciso não esquecer estas personagens chaves das novas teologias). Nos nossos tempos, o exercício do dom da profecia não serve para limitar, através da ameaça de um fulminante castigo divino, as loucura do poder. Tornou-se, pelo contrário, uma arma para a conquista e a manutenção do poder, de um poder que tem a contínua particularidade de nos fulminar. Até 4 de Outubro, não faltarão profetas por esse país fora.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

As virtudes da estupidez

Giotto - A Estupidez (1302-05)

A estupidez tem duas virtudes: desconhece-se enquanto tal e propaga-se a grande velocidade. Não há coisa estúpida que os estúpidos não desejem ardentemente imitar. A estupidez é uma virtude mimética e no acto de mimar põem os estúpidos todo o fervor que lhes ateia a alma, sem quebranto. (averomundo, 2008/08/10)

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

O Livro do Entardecer (3) que venha o tempo

Frédéric Bazille - Reclining Nude (1864)

3. que venha o tempo

que venha o tempo
e com ele a noite
a tempestade
no corpo quebrado
na alma inclinada

espero os teus dedos
presos no horizonte
a árvore de marfim
onde ausente
logo te encontro

estrela nocturna
pétalas de luz
na crosta da terra
no rio incendiado
rua da madrugada

(averomundo, 2009/12/19)

domingo, 16 de agosto de 2015

O pesadelo da história

Maximilien Luce - Uma rua de Paris em Maio de 1871 (1903-05)

- A história - disse Stephen - é um pesadelo do qual estou tentando despertar.
(...)
- Os caminhos de Deus não são os nossos - disse o Sr. Deasy. - Toda a história da humanidade se move em direcção a um grande alvo, a manifestação de Deus. (James Joyce, Ulysses)

Por volta dos dezasseis ou dezassete anos, prolongando-se por mais um ou dois anos, a história exerceu sobre mim um grande fascínio. O espanto nascia de ver nela não o caminho para a manifestação de Deus, tal como a via o Sr. Deasy, personagem de Ulysses, de James Joyce, mas de pressentir nela o instrumento de salvação e de distribuição da justiça sobre um planeta a extravasar de injustiças. Também para mim, naqueles dias, a história tinha um desígnio, mas um desígnio que a ciência histórica (era isso que eu julgava que era essa coisa equívoca que dá pelo nome de materialismo histórico) desocultava e, através dessa desocultação, oferecia aos homens como imperativo a ser realizado pela sua acção. Esse desígnio, como o leitor já percebeu, era o mais melancólico dos desígnios, o da construção de uma sociedade justa, da qual fossem abolidas as desigualdades. Na imaturidade e na arrogância que eram então as minhas, não compreendia como o esquema mental que eu, na minha enorme e desavergonhada ignorância, adoptara para interpretar o mundo - e para não naufragar completamente na vida - era semelhante ao do Sr. Deasy.

Depois a história foi perdendo, para mim, o prestígio desses primeiros tempos. A promessa que ela tinha aos meus olhos foi-se revelando uma falsa promessa. Não apenas porque as tentativas de realização da sociedade justa se mostraram tenebrosas, mas porque, tendo em conta a espécie que é a nossa e os indivíduos que a compõem, o objectivo é completamente destituído de efectivo conteúdo. Foi assim que abandonei - outros dirão que traí, uma classificação tão boa quanto qualquer outra - os meus devaneios de juventude. Contrariamente a muitos que, como eu, foram adeptos desses devaneios, não me converti a um devaneio de sentido contrário. Não troquei o devaneio da sociedade justa pelo devaneio do mercado neutro e eficaz como desígnio último da história dos homens. Poderia meditar sobre se o Sr. Deasy terá ou não razão, mas sobre isso, na verdade, nada posso dizer. É uma questão de fé. O que me restou foi a conversão à posição de Stephen Dedalus. E como neo-converso tornei-me mais radical: A história é um pesadelo do qual nunca podemos despertar.

sábado, 15 de agosto de 2015

Questões de família

Paul Gauguin - La familia Schuffenecker (1889)

Uma das marcas dos países do sul é o seu funcionamento em família e a importância que esta tem para os indivíduos. São as famílias propriamente ditas, mesmo se disfuncionais, são as famílias políticas, as famílias desportivas, são os grupos de amigos que rapidamente se transformam em famílias. Uma família é uma aliança. Não há maior valor moral do que a preocupação com a família. Por que razão não deveríamos festejar a bondade dos vínculos familiares e o amor abrasador que deles brota?

Este amor tão ardente gerado no seio dos diversos tipos de família, porém, extravasa as suas fronteiras e invade o espaço cívico reservado aos indivíduos e à concorrência entre eles. Nas sociedades frias, onde o amor familiar é menos escaldante, as instituições esforçam-se por seleccionar as pessoas pelo mérito, aferido segundo um padrão racionalmente determinado. Escolhem os melhores, independentemente da família a que pertencem. Se, por uma irreflexão, alguém se lembra de evidenciar, numa instituição pública, um excessivo amor familiar, a palavra nepotismo soa logo em tom acusador, e as autoridades não sentem particular zelo por quem tanto ama os seus.

Nós por cá, europeus do sul, somos pessoas de amor profundo e não há gente melhor e mais capaz que os nossos, os da nossa família, seja biológica, seja política, seja a construída em torno de um interesse qualquer. No lugar do mérito, nós colocamos o amor. Será repreensível que alguém, para um cargo importante, escolha outro por amor? Não é este o mais enternecedor dos sentimentos? As nossas instituições públicas, até privadas, são teias onde o amor transborda, onde as famílias nunca estão em crise.

O pater familias – numa linguagem mais cristã e de matiz levemente siciliano, o padrinho – recebe o amor zeloso da família, enquanto vai cuidando dela, com bonomia e ternura. Isto tem um efeito. As instituições, como não seleccionam segundo o frio critério do mérito mas por amor, tornam-se lânguidas, e uma leve sensualidade amorosa coloniza a vida pública e privada. O amor de certas famílias é tão intenso que a tudo toca, a tudo ocupa, a tudo, o que não seja esse amor, consome.

Os frios nórdicos, fanatizados pela ideia de mérito, dizem que as nossas instituições são pouco competitivas, alguns sugerem que são de uma incompetência inaudita. Mas é gente que tem o coração seco e frio. Seremos pobres, seremos incompetentes, mas ninguém nos pode acusar de falta de amor e de não colocar, seja onde for, instituição pública ou privada, o sagrado vínculo familiar à frente de tudo, à frente mesmo da estapafúrdia ideia de que o mérito deve ser a base da selecção. (Jornal Torrejano, 2011/09/23)

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

A lei do gatilho


Depois de aqui ter escrito sobre as colecções Cow-Boy, 6 Balas e Fúria de Bravos, termino a série com a colecção Gatilho, também ela editada pela Agência Portuguesa de Revista e com o mesmo formato das outras três. Tomemos a própria designação da colecção. Gatilho é ao mesmo tempo uma metonímia (ou sinédoque) e uma metáfora. Metonímia pois toma o todo, a pistola, pela parte, o gatilho. Metáfora porque o dispositivo do objecto material está no lugar de um outro dispositivo, o da lei justa.

Comecemos, então, pelo gatilho. Este desencadeia o processo pelo qual a arma dispara a bala. A metonímia (ou sinédoque), ao tomar a parte pelo todo, acaba por sublinhar o elemento activo do objecto. A acção que é desencadeada é uma acção violenta, na qual se supõe como objectivo a morte de alguém. Estamos num universo onde a violência tem um lugar central na vida de uma comunidade. O que está em jogo, tanto quanto me lembro, neste tipo de historietas que eu li nos anos sessenta do século passado, não é uma apologia da violência, da desordem e do caos. Pelo contrário.

Isso torna-se compreensível se se considerar o carácter metafórico do gatilho. Ele representa a lei, uma lei moral que luta para se impor e fazer respeitar. O cenário comunitário destas histórias tem, por norma, uma de duas características. Ou se está numa comunidade onde a lei e o direito ainda não chegou e onde a única lei é a da violência, de uma violência consubstanciada na destreza do uso da pistola, ou se está numa comunidade onde existe formalmente um estrutura legal e instituições policiais e jurídicas, mas estas estão sob o domínio de interesses particulares que submetem o bem comum ao interesse privado de um grupo de malfeitores.

O pistoleiro - aquele que possui a destreza no manejo da arma - bom, perante a ausência de lei ou a sua corrupção, vê-se obrigado a repor a justiça e com ela a legalidade e a ordem jurídica neutra e universal. A violência que está simbolizada no gatilho nunca é gratuita. Opõe à violência do mal a violência que procura repor a justiça e o bem. Este tipo de narrativas, por ingénuas que sejam, têm o condão de tornar claro que toda a ordem repousa na violência. Tomam uma comunidade, numa situação extrema, para desocultar os processos de violência com que ela é tecida e que são necessários para a manter dentro da ordem e da justiça.

Todas estas historias, onde a lei do gatilho faz triunfar a moral, assentam em duas crenças básicas. A primeira diz-nos que a imposição - ou a reposição - da ordem moral do mundo se deve à acção singular e não a uma revolução colectiva. A ordem vem pela mão de um herói - o pistoleiro bom - e não pela acção de uma comunidade consciente e activa. O leitor precipitar-se-á se pensar que isto é uma apologia do individualismo burguês das sociedade capitalistas. Precipitar-se-á se pensar que este tipo de histórias são uma defesa da iniciativa privada tal como é concebida pelo liberalismo moderno. A singularidade do herói é uma estrutura arcaica muito anterior ao advento do liberalismo. De certa maneira, todos estes pistoleiros bons são reencarnações de Ulisses, o herói de Homero que chega a casa e mata os pretendentes da mulher, repondo a justa ordem do mundo.

A segunda crença destas histórias assenta na convicção de que o pistoleiro bom, a reencarnação popular de Ulisses, vencerá os pistoleiros maus, que a ordem justa e boa triunfará sobre a desordem ou a ordem pervertida pelo interesse privado. No fundo, são uma reprodução da cosmovisão cristã, na qual o bem, o Cristo triunfante, esmagará o mal, apesar deste parecer dominar devido à acção do príncipe deste mundo. Dito de outra maneira, a crença no triunfo da ordem justa sobre a desordem e a ordem perversa é uma questão de fé.

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

O Livro do Entardecer (2) rufam rufam os tambores

Josep Cusachs i Cusachs - Tambor

2. rufam rufam os tambores

rufam rufam os tambores
na casa da solidão 
no reino da sombra
e o dia enegrece
na orla da terra
nas gruas do anoitecer

vermelhos de excitação
os tamborileiros
marcham tamborilam
corpos de  pedra
a quem pelas costas
roubaram o coração

(averomundo, 2009/12/18)

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

A deslimitação geral

Alberto Magnelli - Limits ordenats (1937)

São múltiplas as denominações que se atribuem aos nossos dias, todas elas destacando um dos traços que compõem a figura difusa sob a qual este tempo histórico insiste em apresentar-se. Não seria errado, tendo em conta a crescente lista de denominações, dizer que a nossa época é uma era da deslimitação. Inerente aos nossos dias é a perda de contornos em todas as áreas da existência. Desde o afrouxar da diferença entre o masculino e o feminino até à actual porosidade das fronteiras políticas, os nossos dias são um processo contínuo de desclassificação, desordenamento e destruição de limites. Fica por decidir, porém, se essa deslimitação é um processo de reconfiguração de novos limites ou se é o início - talvez a continuação - de um processo geral de contínua destruição de todos os limites, de uma gaseificação (mais até do que uma liquefacção, de que fala Zygmunt Bauman) geral da existência dos homens, de uma completa perda de contornos, de uma deslimitação generalizada.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Mobilização e tranquilidade

Agnes Martin - Sem título n.º 11 (1977)

Os Japoneses não devem a sua admirável capacidade para preservar a tranquilidade interior nem ao serem naturalmente "pele-dura", nem a um qualquer carácter fleumático, nem mesmo a uma natureza originariamente harmoniosa. Devem-no a um treino espiritual. (Karlfried Dürckheim, The Japanese Cult of Tranquillity)

Não há, na cultura ocidental, período do ano mais equívoco do que as férias. A sua equivocidade nasce de elas não serem uma coisa qualitativamente diferente do tempo de trabalho. É verdade que as pessoas, em férias, suspendem as suas actividades laborais, as suas preocupações com a evolução das empresas e instituições onde exercem as suas funções. O que acontece, porém, é que transferem a intranquilidade da vida profissional para as horas de lazer. Enquanto nos meses de actividade profissional estão mobilizadas para produzir bens e serviços, nas férias estão mobilizadas para consumir: os sítios onde têm de ir, as coisas que têm de ver, as múltiplas experiências que têm de fazer, o descanso que têm de ter. Apesar de estarem de férias, continuam mobilizadas, tomadas pelo frenesim que essa mobilização implica.

Não utilizei o conceito de mobilização por acaso. Ele é um conceito central nas sociedades modernas. Como os soldados em tempos de guerra, também as pessoas devem estar mobilizadas e prontas para o combate. Toda a vida é vivida como uma guerra pela sobrevivência. É este estado de guerra generalizado que não apenas exige a mobilização como torna as pessoas incapazes de tranquilidade. Se há alguma coisa que podemos aprender, segundo Karlfried Dürckheim, com os japoneses não será certamente fugir da vida de mobilização em que nos encontramos mergulhados. Sem ela, o nosso mundo, para o pior e para o melhor, ruiria de imediato. O que podemos aprender é que a tranquilidade poderá nascer de uma atitude deliberada, de um treino sistemático que nos permitirá viver de uma outra forma na seio da mobilização geral. Para além das férias, e também por causa delas, os ocidentais necessitam, para poderem sobreviver, desse treino, dessa disciplina de abandono de si mesmos que, só ela, permitirá, no mundo em convulsão, chegar à tranquilidade.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Como Palomar

Zao Wou-Ki - 10-2-76

Talvez porque o mundo que existe à sua volta se move de uma forma desarmónica e ele continua a esperar descobrir nele um desígnio, uma constante. Talvez porque ele próprio sente que avança levado por impulsos não coordenados da mente, que parecem não ter nada que ver uns com os outros e que são cada vez mais difíceis de fazer enquadrar num qualquer modelo de harmonia interior. (Italo Calvino, "Palomar no jardim zoológico - A corrida das girafas")

Há dias em que nos sentimos como Palomar, a personagem de Calvino, e os nossos pensamentos não são muito diferentes daqueles que ele sente perante a deselegante corrida das girafas encerradas no jardim zoológico. A nossa perplexidade não é, nessas horas, idêntica à do prisioneiro da caverna platónica que, ao soltar-se do cativeiro, descobre um outro mundo harmonizado pela presença benfazeja da Ideia de Bem. O homem que sai da caverna descobre que aquilo que ele via não era mais que uma projecção sombria de uma princípio de harmonia. As sombras que, enquanto prisioneiro tomava por realidade, não passavam da aparência de uma realidade efectiva.

Quando somos tomados pelo complexo de Palomar, chamemos-lhe assim, a nossa descoberta é bem outra. Para lá das sombras, aquilo que tomamos por real na vida quotidiana, não há qualquer princípio ordenador benfazejo e propiciador de harmonia, um princípio que nos iluminaria se o descobríssemos. O que há é uma desarmonia cada vez mais intensa, um caos sem qualquer constância, desígnio ou ordem. Tanto o mundo como nós, os sujeitos racionais, não passamos de sombras, mas essas sombras não ocultam a luz e a ordem, mas as trevas e a desordem. Este complexo, contudo, não implica a conclusão de que tudo é absurdo e que o desespero é a única saída para o ser racional. Esta desordem e este caos solicitam-nos o esforço contínuo de dar sentido e ordem ao que não tem sentido nem ordem. E essa tarefa tem o condão de nos ocupar desde que nascemos até à hora da nossa morte. E essa não é a menor das vantagens de tal exercício.

domingo, 9 de agosto de 2015

O Livro do Entardecer (1) - sou árvore perdida

Gustav Klimt - Pear Tree (1903)

1. sou árvore perdida

sou árvore perdida
na distância
luz que dói
o ramo solto
pelo vento

espero o fim
do inverno
e na agonia da flor
o augúrio
de um fruto

(averomundo, 2009/12/17)

sábado, 8 de agosto de 2015

A superstição do esforço

Charles Rennie Mackintosh - The tree of personal effort (1895)

Como poderemos nós, homens educados no espírito moderno, compreender os versos do velho poeta grego Teógnis?

Nenhum homem é próspero ou pobre,
ou vil ou nobre, sem a sanção divina.

Ou estes:

Aquele a quem os deuses honram, até o desdenhoso enaltece;
mas de nada vale o esforço de um homem.

Fomos educados segundo uma ética do esforço e na crença na autonomia do indivíduo. Talvez seja apenas naqueles momentos mais negros que o homem moderno, agora também esquecido do papel da Graça, vislumbra, certamente por curtos instantes, esse outro saber que nos diz que essa autonomia é pura vaidade. Sim, seria o que diria Teógnis se aqui chegasse e olhasse para nós, homens contemporâneos, crentes na religião da autonomia e ardentes defensores da superstição do esforço. E também eu finjo pertencer à seita. (averomundo, 2008/08/06)

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

O habitual


Entrámos em período de completo delírio. Faz parte da nossa tradição política em tempo pré-eleitoral. O fogo de artifício e os jogos florais a que as várias partes se entregam tendem a escamotear a dura realidade em que se vive. Temos o problema do défice que, com o actual governo e apesar de uma política drástica de cortes salariais e de aumento de impostos, cresceu cerca de 35% em relação àquele que Sócrates deixou. Há mais vida para além do défice, dir-se-á. O problema é que essa vida não é muito risonha.

Em primeiro lugar, a questão da baixa natalidade, com a inversão da pirâmide demográfica, conduzir-nos-á a uma crise séria nos sistemas de pensões e de solidariedade intergeracional. À crise da natalidade há que juntar, nos últimos anos, o retorno em força da emigração, agora de uma emigração bem qualificada, na formação da qual o país investiu muito, e da qual não obterá um retorno sólido.

De um ponto de vista imaterial, existe um problema estrutural que diz respeito à inexistência de uma cultura de iniciativa e de gestão de riscos. Num mundo globalizado e de intensa concorrência, os portugueses possuem uma cultura onde a iniciativa e a responsabilidade são sempre dos outros. É um problema que não se resolve, obviamente, com a actual retórica, servida por inúmeros cursos, sobre o empreendedorismo. A ausência de capacidade empreendedora (para usar a horrível palavra em voga) é apenas um caso particular do problema geral de ausência de iniciativa, de um povo que foi e é – não nos esqueçamos – sistematicamente educado para obedecer e fazer poucas ondas. Ora não há coisa que faça mais ondas do que ter iniciativa.

Por fim, o drama de um desemprego estrutural que não deriva só da intervenção da troika, mas que se deve ao atraso do país em relação a uma economia que tem no seu núcleo central, mesmo em actividades tradicionais, a digitalização. Muitos dos dramas que se abatem sobre muitas centenas de milhares de pessoas devem-se a uma desadequação das empresas, dos empresários e dos trabalhadores às novas formas de racionalização trazidas pela revolução das tecnologias da informação e da comunicação.

Demografia negativa, cultura social ineficaz e desadequação tecnológica, mais do que o défice público, são os problemas que precisam de ser compreendidos, pensados e enfrentados. Seria interessante ouvir o que os partidos políticos têm a dizer sobre eles, tendo em conta as circunstâncias em que nos encontramos e os limites a que nos submetemos. Todos sabemos, porém, que em vez disso vamos ter direito a fogo de artifício e a jogos florais. O habitual.

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Filhos de Hiroshima


O século XX foi fértil em acontecimentos decisivos. Por exemplo, a ida do homem à Lua como abertura da possibilidade da espécie humana se extra-territorializar. Hiroshima, porém, é o mais decisivo de todos os acontecimentos do século XX. Em Hiroshima, a humanidade provou a si mesma que tem o poder para se auto-destruir. O significado do acontecimento ultrapassa largamente a desmedida dor daqueles que sofreram os efeitos da bomba. O terrível espectáculo trouxe consigo uma nova e perturbante certeza. A sobrevivência da nossa espécie deixou de estar dependente apenas do instinto e da capacidade de adaptação ao meio. Depende, a partir desse dia memorável, horrivelmente memorável, da gestão racional dos nosso impulsos auto-destrutivos. A Guerra Fria foi já uma inquietante aplicação dessa gestão racional do negativo que existe em nós. Por muito que queiramos obscurecer o facto, a verdade é que continuamos a viver sobre esse registo. A sobrevivência da espécie humana depende da gestão racional do seu poder destrutivo, seja o atómico seja outro qualquer. Hiroshima é o símbolo de uma nova era da humanidade. Somos todos filhos de Hiroshima.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Sobre a esperança

Piet Mondrian - Composition in Blue, Grey and Pink (1913)

Talvez a primeira grande tematização filosófica da esperança surja no Fédon, de Platão. Nesta obra, Sócrates, no dia em que vai ser executado, dedica-se a uma argumentação cerrada para justificar a crença na imortalidade da alma e, dessa forma, a vida do filósofo, uma vida de ascese e de desprendimento contínuo das coisas do corpo. Toda esta argumentação é guiada pela bela esperança de que, após a morte, os bons recebam uma justa recompensa, no convívio com os deuses e com outros homens bons, e os maus sofram o castigo que a sua vida na terra acabou por exigir e justificar.

Se se ler a obra de forma pouco atenta, confirmamos o texto de Platão como o fundamento originário de uma filosofia da esperança. Mas será verdade? Há dois pormenores que fazem vacilar e desconfiar de Platão: não seria ele um génio brincalhão? Durante todo o diálogo, onde a personagem Sócrates se esforça para fundamentar racionalmente a crença na imortalidade da alma, esse mesmo Sócrates, em diversos momentos, vai relativizando a sua própria argumentação, colocando-a no condicional, impondo-lhe um império de ses. Mas não é apenas o condicional que merece ser sublinhado. Há um pormenor irónico no texto. Logo no início, Platão escreve que o trabalho do filósofo é argumentar, enquanto o do poeta é fazer ficções. Conhece-se o destino dos poetas na República, de Platão: a expulsão da cidade, visto não se preocuparem com a verdade. Ora, quando no final do Fédon, Platão quer dar corpo à bela esperança escreve como um poeta e não como um filósofo que argumenta. Isto é, faz uma ficção, o chamado mito do Fédon.

Há várias explicações sobre o papel dos mitos no pensamento de Platão. Prefiro, contudo, ver aqui uma suprema ironia. No momento em que lança o fundamento de todas as filosofias optimistas e do próprio princípio de esperança, o filósofo ateniense semeia também, através da ironia, um aviso sobre essa mesma esperança: no fundo, não passaria de uma ficção, e de uma ficção fundada numa falsificação da realidade. A esperança, quase nos diz ele – esse Platão poeta trágico que a influência de Sócrates matou –, aquece e alegra o coração dos homens bons, mas, em última análise, aquele que a propaga deve pura e simplesmente ser expulso da cidade. Talvez o optimismo racional do platonismo não seja mais do que o disfarce do pessimismo trágico que o habitaria. (averomundo, 2008/11/08)

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Uma imagem invertida da realidade

Troca de tweets entre Philippe Legrain e Bruno Maçães

O economista inglês Philippe Legrain deu a conhecer um diálogo (ver acima), através do Twitter, com o governante português Bruno Maçães. Este é um dos ideólogos da actual governação, passa, em certos círculos situacionistas, como uma excelência, embora não se saiba muito ao certo em quê. Este diálogo merece ser lido, pois mostra como a actual maioria e os adeptos das políticas de austeridade produzem um fantasia para vender ao desbarato. Não se trata apenas, na estratégia de Maçães, de não apresentar um único facto que justifique a sua argumentação, como sublinha Philippe Legrain. Trata-se de outra coisa. Maçães, completamente mergulhado em ideologia, de tal forma que julga ser desnecessário apresentar factos, ao ser confrontado com a pura factualidade da situação portuguesa, acusa o outro lado de ideologia, numa estratégia muito portuguesa de esperteza saloia: deixa cá acusar o outro de enviesamento ideológico antes que ele me acuse a mim. Este caso é apenas um exemplo daquilo que se tem passado na Europa desde que foi desencadeada a crise das dívidas soberanas. Uma máquina poderosa produz constantemente um véu de fantasias com o qual tapa a realidade e a falência das políticas adoptadas. A estratégia ideológica das governações europeias é de tal maneira fantasiosa que parece ter sido elaborada para justificar a perspectiva marxiana de ideologia: uma imagem invertida da realidade. É isto que sai da boca dos governantes portugueses, uma imagem invertida da realidade.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Só pode acabar mal

Jacob Lawrence - The Migration Series. Panel 10: They were very poor (1940-41)

Esta notícia (aqui), sobre a necessidade da Frontex (Agência Europeia de Fronteiras) recorrer a serviços privados para controlar a rota migratória entre a Líbia e Itália (até Junho, entraram por aí mais de 230 mil imigrantes ilegais), torna evidente a existência de três problemas. Em primeiro lugar, a questão da própria imigração ilegal, as suas causas nos locais de origem e as suas consequências nos locais de chegada. Em segundo lugar, a inexistência de uma política europeia comum para lidar e tentar resolver o problema. Por fim, a recusa dos Estados membros em se envolverem, de um ponto de vista público e institucional, no assunto, transferindo um problema político e de soberania para os serviços prestados por empresas privadas. Eis onde chegou uma Europa que, em nome do neo-liberalismo e do ordo-liberalismo, se transformou num ninho de víboras, do qual foi banido qualquer ideia de comunidade e abriu a porta a todas as inflamações nacionalistas. Só pode acabar mal, muito mal.

domingo, 2 de agosto de 2015

Uma palavra de Lachelier

Jules Lachelier

No início do "Avant-Propos" da sua obra Héritage des Mots, Héritage d'Idées, Léon Brunschvicg escreve: "Conta-se que o grande filósofo, Jules Lachelier, nomeado para o Liceu de Toulouse, começou as suas aulas perguntando: o que é a Filosofia?, e acrescentou imediatamente: não sei. O que provou o divertimento de toda a cidade de Toulouse; o professor de Filosofia que lhe tinham enviado de Paris não sabia o que era a Filosofia." Brunschvicg não data o episódio, mas ele terá ocorrido, certamente, entre 1857 e 1864, anos que marcam a época em que Lachelier ensina em diversos liceus franceses, antes de ensinar na École normale supérieur, uma das instituições universitários mais distintas de França. Portanto, em pleno século XIX.

O que é interessante nesta história não é tanto o aspecto filosófico dela. A Filosofia é essa estranha sabedoria feita do reconhecimento do não saber e, em primeiro lugar, do não saber o que é a própria Filosofia. Aqui não haverá qualquer novidade para quem esteja minimamente ligado ao mundo da Filosofia. Interessante é o aspecto social. Em pleno século XIX, as palavras de um professor de Liceu, ditas perante adolescentes, eram objecto de comentário pelos "círculos que interessavam", numa grande cidade francesa.

Todos se congratularão, hoje em dia, com a democratização (se é que ele existe de facto) do ensino liceal. Essa democratização, porém, trouxe como consequência que nenhuma palavra de um professor liceal será memorável. Todas as palavras que os professores liceais (do secundário, na nossa estúpida e inútil designação) proferem em todas os liceus (escolas secundárias, na abjecta designação que o poder político democrático escolheu para os liceus) deste país serão apenas banalidades que se perdem mal termine a aula. Lachelier fez rir os círculos bem-pensantes de Toulouse, mas fez ao mesmo tempo pensar os seus alunos. Eles sentiram-se chocados e reportaram aos seus pais esse mesmo choque. Que palavra poderei proferir numa aula de Filosofia que choque os meus alunos? Isto é, que os faça pensar? E Lachelier não disse mais do que dizem muitos dos professores de Filosofia por esse país fora.

Talvez, sob a capa deste história anedótica, se esconda uma verdade sobre a democratização do ensino. Na verdade, não houve qualquer tipo de democratização. O ensino liceal (não esqueçamos que cá se designa pelo humilhante nome de ensino secundário) a que se tem direito é apenas uma ténue sombra daquele que as elites tinham no século XIX e em parte do século XX. A democratização do ensino liceal talvez não tenha passado de uma gigantesca manobra de falsificação da realidade. Sendo assim, é muito provável que o nome de ensino secundário seja de facto o mais exacto, devido à mixórdia que o poder político serve nessas escolas a que, em Portugal e sem pudor, se deu o nome de escolas secundárias. Sim, um ensino de segunda ordem. (averomundo, 2009/01/10)

sábado, 1 de agosto de 2015

Da fidelidade e da traição

Stanley Spencer - The Betrayal (first version) (1914)

Uma das coisas que, na vida política, mais me chama a atenção não é que os governantes governem traindo os interesses dos cidadãos. O que me impressiona é a sistemática dissonância cognitiva do cidadão comum. Pensa uma coisa e vota em quem irá executar políticas diametralmente opostas. Olhemos para o exemplo inglês (ver aqui). O apoio à gestão privada da saúde, da energia, dos correios e dos caminhos de ferro é complemente minoritária, sendo no caso da saúde quase nula, mas não é essa a inclinação governamental. 

Esta dissonância cognitiva dos eleitores mostra-nos que na formação da intenção de voto pouco contam os projectos políticos em confronto mas razões de natureza emocional, as quais roçam a consciência identitária presente no espírito de pertença  aos clubes de futebol. Tem mais peso, no momento da decisão, a fidelidade a um partido do que fidelidade ao seu próprio pensamento. Este mecanismo de fidelidade é um dos elementos mais interessantes na vida política. O eleitor debate-se com o terror da traição à sua tradição política e, por norma, vota afirmando uma fidelidade estrita. E é este medo de trair uma tradição e uma identidade que torna possível os governantes eleitos traírem, sem qualquer problema de consciência, os cidadãos. É assim que a fidelidade de uns é a oportunidade para a traição de outros.