sábado, 31 de março de 2018

Cânticos pascais 3. Sábado de Aleluia

Hans Holbein the Younger, The Body of the Dead Christ in the Tomb (c. 1521)

3. Sábado de Aleluia

O espírito desce e descansa na pedra porosa do túmulo.
Longas e negras as horas para que as chagas cirzam
e da terra, ressurecta, a giesta cresça para a Primavera.

O dia corre, arrasta consigo a espuma da misericórdia,
promete a grande tempestade, folhas bravas caídas
da árvore tecida pelas lâmpadas do bem e do mal.

Sinos silenciam-se no temor da tarde, estremece o lódão,
abre os ramos nus para a respiração divina e espera
que as alfaias da vida sulquem a terra dura da morte.

O sono arde na escuridão das pálpebras e o pneuma
desliza nos meandros das trevas, esgueira-se na morada
do fogo e escuta na artéria do silêncio o gemido da dor.

Folhas de púrpura elevam-se, são diamantes no céu,
nuvens a sibilar sobre a fortaleza cercada pelo vendaval.
Absorto no jardim, o anjo da história canta hallelu Yah.

Março, 2018

sexta-feira, 30 de março de 2018

Cânticos pascais 2. Sexta-feira de Paixão

Pierre-Paul Prud'hon, Christ on the Cross, 1822

2. Sexta-feira de Paixão

Talvez nos possas salvar da sombra feita de sombras
e haja ainda no rumor da paixão um ritmo de vida,
a música que nos abra para a sedição do sofrimento.

Nas linhas desenhadas na pele, o corisco do chicote
cresce para a noite de luar em que o corpo se enrola
e reverbera, mistério após mistério, glória após glória.

Transparência da tarde, a mais escura das tardes,
o sangue a gorgolejar na garganta e a força a deslizar
na flagelação dos braços, a cair no planalto da agonia.

A lança abre no flanco a fonte de água e sangue, uma luz
rompe a terra e o espírito abre-se à cizânia da escuridão.
Lacerado e sôfrego, o corpo bebe o vinagre da morte.

A cabeça derruída, a coroa de espinhos, a cruz nas
mandíbulas do silêncio. Por que abandonou o pai o filho
à ferocidade das trevas, ao trémulo tumulto do terror?

Março, 2018

quinta-feira, 29 de março de 2018

Cânticos pascais 1. Quinta-feira de Endoenças

André Louis Derain, Last Supper, 1911

Quinta-feira de Endoenças

O lívido lençol da morte tece-se de silvas e sangue,
rumoreja na sombra como um anjo ávido de luz
preso a uma geometria de água e crepúsculos.

Eis que sobre o mundo desce a voz primitiva
e trauteia na proximidade do grande momento,
a época de maturação do fruto ferido da figueira.

Os convidados da última ceia dançam e cantam,
em sono e alucinação imersos, e distante
se turvará o tilintar das trinta moedas da traição.

As crinas do cavalo da morte avistam-se ao longe,
oscilam ao vento, enquanto na páscoa dos judeus
o filho do homem espera o pão ázimo do incêndio.

Vejo na vigília da verdade a rosa do vale de Cédron.
O horto das oliveiras, sangue e suor, lágrimas de
luz como pétalas de âmbar sombreadas na solidão.

Março, 2018

quarta-feira, 28 de março de 2018

Seguro de saúde

Marc Chagall, A revolução, 1937

O artigo de David Dinis sobre as alianças à esquerda refere o óbvio. No entanto, aquilo que é óbvio perde muitas vezes o essencial. O texto diz “ O PCP é diferente (do BE): já só espera a oportunidade para saltar para as ruas, que é onde está a alma do comité central — e a razão da sua subsistência.” Não é que o PCP não goste de rua, mas, muito provavelmente, o PCP conseguiria melhores resultados eleitorais se estivesse no governo do que estando apenas na rua. Duvido que o PCP precise para subsistir de estar sempre na oposição, mas o regime democrático, tal como foi desenhado, em 25 de Novembro de 1975, precisa do PCP na oposição. Um PCP na rua, com as suas bandeiras, manifestações e greves, é um seguro de saúde do regime.

O governo de Passos Coelho, por exemplo, deve muito ao PCP. Este canalizou, de forma legal, ordeira e disciplinada, a contestação às tropelias da troika e do governo. Essa contestação não teve nenhum impacto na diminuição das tropelias mas evitou que emergissem formas de contestação erráticas, anarquizantes, imprevisíveis e, por isso mesmo, perigosas. Aquilo que se passou nos anos da troika já se tinha passado anteriormente. Não será tanto o PCP que precisa da rua, embora goste muito dela. São os partidos do regime que precisam do PCP na rua. Quando tudo corre bem, o PCP parece não ter papel algum na democracia, mas quando chega o tempo das vacas magras, o que é recorrente neste país, o regime inteiro precisa do PCP para que as energias negativas sejam canalizadas ordeiramente. Veja-se a confusão que aconteceu em Espanha, França e, sobretudo, Itália com o desaparecimento dos velhos Partidos Comunistas. Perderam o seguro de saúde com as consequências que todos conhecemos.

terça-feira, 27 de março de 2018

Um anacronismo


A recente prisão de Carles Puigdemont veio tornar ainda mais patente a incomodidade que a questão catalã coloca. A perseguição aos independentistas é legal. No entanto, nem tudo o que é legal é moral. A posição do governo espanhol, da justiça espanhola e do Rei de Espanha é imoral, isto independentemente do que se possa pensar de Puigdemont. E é imoral não porque a Catalunha tenha de ser independente, mas porque a constituição espanhola impede, através da violência legítima, que as diversas nacionalidades se possam exprimir livremente se querem ou não permanecer unidas a Madrid.

O mais provável é que se aos habitantes da Catalunha fosse permitido escolher, os independentistas teriam uma derrota, como aliás aconteceria noutras regiões espanholas onde o espírito nacionalista é vivo. Aquilo que na Grã Bretanha, com as pretensões escocesas à independência, foi resolvido sem qualquer drama, pois os escoceses escolheram o que entenderam, em Espanha dá origem ao triste espectáculo a que assistimos, com acusações segundo leis anacrónicas numa democracia. Não interessa aqui se se é favorável à independência da Catalunha ou não. Isso é um problema dos catalães. Enquanto a constituição espanhola não permitir a estes pronunciarem-se directa e livremente, Espanha estará sempre mais próxima da Turquia, onde os curdos estão subjugados pelo poder de Ancara, do que da Inglaterra. Um anacronismo da ordenação jurídica espanhola tão grande quanto o nacionalismo catalão.

segunda-feira, 26 de março de 2018

Uma ameaça



O caso da resistência à vacinação, que pode estar na origem dos actuais surtos de sarampo e no reaparecimento de certos doenças que se pensavam erradicadas, é apenas um exemplo de um problema mais fundamental. As sociedades modernas atingiram um elevado nível de vida pela conjugação do desenvolvimento do conhecimento científico e da produção tecnológica dele derivada. Nesse elevado nível de vida, encontra-se a comodidade da existência e o prolongamento da esperança de vida.

A resistência ao conhecimento científico não é coisa de agora. Por vezes, torna-se virulenta e tem um poder destruidor do conhecimento e do progresso científico e tecnológico. O que estamos a assistir, em várias frentes onde se inclui a da saúde, é a um ataque de vários tipos de fundamentalismos – uns mais de cariz religioso, outros de natureza mais social – ao pensamento crítico que fundamenta o trabalho científico e tecnológico. O uso da razão crítica por parte dos homens não tem por objectivo criar verdades dogmáticas e resolver problemas com uma varinha mágica. A ciência é um projecto de aproximação progressiva à verdade. Também a tecnologia, por desenvolvida que seja, tem os seus limites de intervenção no mundo.

Assistimos, aproveitando o carácter limitado e aproximativo da ciência e da tecnologia, à pretensão de formas de acção e pensamento mágicos as substituírem. Reivindicam um pensamento e um tipo de acção alternativos. Efectivamente, o que se passa é que esse tipo de pensamento dito alternativo não se confronta com o rigor da testagem científica. É constituído por um conjunto de crenças que ou não podem ser testadas ou que, caso o fossem, não resistiriam aos testes empíricos. Se há crenças que, apesar da sua limitação sempre reconhecida, são submetidas às mais duras testagens para determinar a sua verosimilhança, essas são as crenças científicas, das quais depende a tecnologia que usamos e o nosso modo de existência.

Se por uma infelicidade, as nossas sociedades valorizarem do mesmo modo o pseudo-conhecimento dos saberes ditos alternativos e o conhecimento científico, então estaremos a dar passos para uma regressão civilizacional a todos os níveis. O que está em jogo não é apenas a saúde das pessoas e o seu bem-estar, mas o próprio pensamento crítico. Se este for equiparado ao dogma de uma qualquer crendice, temos razões para temer que, num surto de um súbito fundamentalismo, o seu exercício se torne impossível. O que se está a passar é um sintoma preocupante para o uso saudável da razão crítica, na verdade uma ameaça real ao nosso modo de vida.

domingo, 25 de março de 2018

No Limiar da Porta 3. Nenúfares e nuvens

Claude Monet, Water Lilies, 1906

3. Nenúfares e nuvens

Nenúfares e nuvens
eram
lagos de erva,
um anel de cristal
em dedo de vidro,
a noite
                nocturna
que te amanhecia.

sábado, 24 de março de 2018

Ensaio sobre a luz (32)

JCM, Convento de Cristo, Tomar, 2018

Dos céus, a luz desce e poisa sobre as pedras, e elas então levitam e são água e fogo, vento que, na escuridão da terra, sopra um segredo no silêncio dos claustros.

sexta-feira, 23 de março de 2018

Um cortejo fúnebre

Henri Cartier-Bresson, Rue de Vaugirard, 1968

Esta famosa fotografia de Cartier-Bresson tem no seu centro narrativo, digamos assim, o slogan do Maio de 68 Jouissez sans entraves. O slogan dizia, na sua totalidade, Jouissez sans entraves, vivez sans temps morts (Gozai sem entraves, vivei sem tempos mortos). Visto como resumo da grande explosão social dos estudantes franceses da época, tem sido interpretado de diversas maneiras, mas por norma como uma afirmação da vida enquanto exercício contínuo de prazer, como uma libertação do desejo e consumação deste. Na verdade, a palavra de ordem de 68 é muito mais tétrica do que aparenta. Basta conjugar os dois mandamentos que a constituem. 

O prazer libertado e sem entraves exigirá, é essa a condição humana, tempos mortos, tempos esses onde o desejo se reconstitui para buscar novos prazeres. Os tempos mortos são uma condição necessária à vida, incluindo à vida de prazer. Não há sibarita que não precise de horas mortas, de longas horas mortas. Conceber a vida como uma empreitada contínua (sem tempos mortos) de gozos sem entraves não é outra coisa senão uma afirmação da morte. Os homens não são máquinas desejantes, mas animais dotados de desejo. E a condição animal não está programada, seja qual for o âmbito que se considere, para um movimento perpétuo. O que pulsa no coração do Maio de 68 não é, então, a afirmação exuberante da vida, mas um convite à morte pela exaustão de um corpo agora submetido ao imperativo do prazer contínuo. O Maio de 68 não foi nem uma grande afirmação da vida nem um festival lúbrico. Foi, na verdade, um grande cortejo fúnebre.

quinta-feira, 22 de março de 2018

Ensaio sobre a luz (31)

K Matsuki, Sunlight in the morning, 1926

A luz da manhã desce piedosa sobre a terra, ilumina com raios de orvalho um resto de névoa e a sombra daquele que passa e traz em si o secreto sinal da noite.

quarta-feira, 21 de março de 2018

Alma Pátria - 21: Luís Cília - Canto do Desertor



A pátria, in illo tempore, tinha uma alma oculta, uma alma que não podia manifestar-se na rádio e na televisão portuguesas, mas manifestava-se, por exemplo, na televisão francesa. Era uma alma recalcada. A voz de Luís Cília - não é uma voz extraordinária, mas é uma voz de que gosto bastante pelo seu timbre nostálgico e, diria, quase sebastianista - era uma das vozes dessa alma abscôndita, que atravessava o país pelo silêncio da noite. Aqui canta uma canção contra a guerra colonial. O tema, a deserção, ainda gera incómodo – a palavra traidor aflora então com facilidade – em alguns sectores mais nostálgicos do antigo regime ou menos conformados com os que, perante a guerra, decidiram refugiar-se no estrangeiro. A generalidade do país não tem, todavia, qualquer ressentimento perante os que desertaram. O original em disco é de 1964 e a gravação que se apresenta é de 1973. Pelo que se percebe da imagem da capa, no canto superior direito, o disco foi editado pela célebre Le Chant du Monde, uma editora discográfica francesa claramente engagée.

terça-feira, 20 de março de 2018

No Limiar da Porta 2. Ardia-te nos olhos

Jean Dieuzaide, Nazaré, Portugal, 1954

2. Ardia-te nos olhos

Ardia-te nos olhos
uma ânsia
ávida de aurora.

Ardia-te na boca
a voz,
a voz velada do vento.

segunda-feira, 19 de março de 2018

Um retrato

Jean Dieuzaide, Vieira de Leiria, Portugal, 1950

Pode-se olhar para a fotografia e ler nela o atraso de Portugal. A mulher vestida de negro, a criança enrolada no xaile da mãe, a água transportada à cabeça, isto no final da década de quarenta do século passado. Não seria uma visão despropositada. Contudo, seria uma visão que, ao prender-se a eventuais comparações com outros países, não apreenderia o essencial. A mulher que ali se vê é, na verdade, uma metáfora do país. Como ela, Portugal vive desde sempre um difícil equilíbrio entre a sua demografia e pobreza da vida material. A coerência e o comedimento que, no fundo, nos habitam devem-se a este prolongado - quase com 900 anos - jogo de concertação, de procura de um peso e de uma medida que não nos façam cair. Por vezes, o país escorrega, mas logo leva a mão à carga que transporta, puxa para si a criança que carrega num dos braço e levanta a cabeça para olhar em frente. Isto não faz de nós melhores que os outros, mas faz de nós aquilo que somos. E aquilo que somos resulta desse contínuo superar de desequilíbrios que poderiam ser mortais.

domingo, 18 de março de 2018

Ensaio sobre a luz (30)

Jean Dieuzaide, Portugal, Portinho d'Arrabida, 1954

A cal canta nas paredes puras do convento. Canção de luz que levita na sombra dos telhados ou nas janelas cerradas do silêncio.

sábado, 17 de março de 2018

Ensaio sobre a luz (29)

Willy Ronis, Paris, 1940s.

A luz nublada da manhã desliza, fria e frívola, pelas mãos do tocador de violino, pela cegueira que se desprende dos seus olhos e se ilumina no rumor furtivo de um pássaro poisado na rua.

sexta-feira, 16 de março de 2018

Paixões políticas

Francis Bacon, Self Portrait with Injured Eye, 1972

Talvez o problema resida no facto da identidade política ser um dos elementos estruturantes da identidade pessoal, como alguns estudos parecem apontar. A verdade é que as pessoas com algum interesse pelos destinos da comunidade, perante um político de uma orientação ideológica adversa, conseguem a proeza de, ao mesmo tempo, vê-lo bem de mais e de não o conseguir ver. Conseguem, de uma forma absolutamente penetrante, no seu entendimento, ver no actor político a pessoal moral – por norma, o mais rematado filho da mãe – que elas supõem que ele é. Ao mesmo tempo são incapazes de encontrar nele qualquer virtude política e sendo tanto mais incapazes quanto mais virtuoso ele é.

Percebe-se facilmente a cegueira para a virtude política. Ela contraria o desejo da pessoa de ver os seus no lugar do poder. Reconhecer essa virtude significaria admitir que não se tem uma razão absoluta, que as suas crenças são frágeis e que há soluções exequíveis para além daquelas com que se identifica. O seu sistema de crenças sobre o destino da sociedade ficaria abalado. Interessante, porém, é observar aquilo que se exige, do ponto de vista moral, a um político adversário. Pessoas absolutamente venais ou de relativa perfeição moral, e estas são a esmagadora maioria, avaliam moralmente, com a sua supervisão, um político adversário por uma bitola moral que nem os santos, aqueles que conquistam a glória dos altares, conseguiriam satisfazer. Chegam mesmo a dizer que não conhecem o indivíduo, mas o seu carácter é abjecto e a sua pessoa, no mínimo, nojenta.

O que é interessante nisto não é a confirmação da tese de Jason Brennan de que as pessoas que se interessam por política, na sua esmagadora maioria, são hooligans. A expressão não precisa de explicação adicional. Interessante é compreender o potencial de intolerância que habita as pessoas, mesmo gente cordata e inofensiva noutras circunstâncias. A cegueira para a virtude política de alguém que não pertence ao nosso lado é uma negação da realidade. Contudo, essa cegueira precisa de um imaginário excesso de visão. E é este que mostra a abjecção – uma abjecção construída, claro – moral daquele que se despreza. O ataque ao carácter é a expressão de um desejo profundo de aniquilamento do político inimigo (inimigo, no coração; adversário, nas palavras). Na verdade, é um assassinato simbólico o que se pretende realizar. As paixões políticas não são inocentes e, caso não haja duras regras de contenção, elas têm um potencial de violência desmedido.

quinta-feira, 15 de março de 2018

No Limiar da Porta 1. Pulsa um sopro

Arnold Genthe, Margaret Severn dancing at the water’s edge, Scarf dance, 1923


1. Pulsa um sopro

Pulsa um sopro
de água
no coração.

Um medo de mar,
uma onda.

A maresia da morte
no sal da solidão.

quarta-feira, 14 de março de 2018

A Solidão dos Aeroportos

Leonard Freed, Waiting at the airport, Amsterdam, 1964

A Solidão dos Aeroportos. Este poderia ser o título de um romance sobre o drama do sujeito perdido de viagem em viagem. O mundo inteiro à sua disposição, mas ele espera sentado que chegue a hora do embarque. A sua vida torna-se então uma colecção de esperas em todos os aeroportos do mundo. A única coisa que o viajante retém é o estar sentado, a fazer horas para uma ligação que o há-de levar a outro lugar, para aí esperar de novo. Assim enriquece o passaporte e desenvolve toda uma geografia, fundada na observação e em misteriosos critérios classificativos. Com o passar dos anos consegue mesmo elevar-se das taxionomias à formulação de conjecturas. Dias há que tenta refutar as teorias que forma. A suprema sabedoria, porém, descobriu-a ele talvez demasiado tarde. Sentar-se solitário e esperar que o seu avião parta sem ele. Então levanta-se e volta para a casa.

terça-feira, 13 de março de 2018

Ensaio sobre a luz (28)

József Németh, Athenaeum, Budapeste, 1944

As folhas mortas da nostalgia arrastam-se pelo chão e, sopradas pelo vento, esperam a luz de sombra que as rapte da clareira e as devolva ao paraíso do esquecimento.

segunda-feira, 12 de março de 2018

A razão e o sentimento

A minha crónica no Jornal Torrejano.

Os resultados eleitorais em Itália, a dificuldade de formação de governo na Alemanha e o tremor – ou terror – que cada novo acto eleitoral provoca Europa fora, tudo isso se enraíza num conflito surdo, que durante muito tempo foi disfarçado, entre as elites europeias e as camadas populares dessa Europa. O conflito tem a raiz na cultura iluminista das elites e na estranheza das camadas populares relativamente a essa cultura. Enquanto o sistema de crenças das elites se foi transferindo da religião para um culto da razão e da sua eficácia, as camadas populares viram a religião, que dava sentido à sua existência, perder capacidade explicativa e integradora, não tendo elas, agora, nenhuma narrativa que lhes explique o mundo e nele as integre.

O conflito foi disfarçado durante uns tempos pelas ideologias políticas que funcionaram como um sucedâneo do cristianismo. Também uma certa expectativa de ascensão social e de capacidade de aceder ao consumo mitigaram a ruptura que atravessava já as sociedades europeias. O que terá acontecido para que esse disfarce tenha caído e para que, cada vez que a vontade popular se expressa nas urnas, as elites europeias tremam perante o avanço do populismo? Podemos pensar que isso se deve ao fim da expectativa de ascensão social, à vilania de um capitalismo voraz apostado em destruir os direitos sociais e à corrupção dos actores políticos. Isso terá algum peso. O problema, porém, está noutro lado, está na presença do estranho, do outro, dos imigrantes e dos refugiados provenientes, antes de mais, do mundo muçulmano.

A explicação é feia? Bastante, mas a realidade não tem de ser bela nem agradável. As elites, com a sua cultura racional e os seus interesses, aceitam facilmente a presença do estranho no seu território. Ao nível popular, contudo, a percepção do outro não é feita segundo princípios racionais derivados do Iluminismo. É feita de suspeita, de desconfiança e, acima de tudo, de medo. Na ausência de uma narrativa – religiosa ou outra – que permita integrar o que é estranho, existem múltiplas anedotas que, ao serem costuradas umas com as outras, fornecem o combustível que alimenta sentimentos negativos e que se traduz em xenofobia e na eleição de partidos e actores políticos que apregoam haver razões para ter medo do outro. As tradicionais elites políticas europeias, em nome da razão, podem continuar a fingir que não há aqui um problema, mas depois não se lamentem que a política tradicional e sensata esteja a morrer e que condottieri sem escrúpulos, em nome do sentimento popular, ganhem terreno e se aprestem para tomar conta dos rebanhos.

domingo, 11 de março de 2018

Passos, o catedrático convidado

Joan Ponç, Comença el Gran Ball de les Bruixes, 1951

Estou perplexo com as reacções ao convite dirigido pelo ISCSP da Universidade de Lisboa, uma universidade pública, pormenor não despiciendo, a Passos Coelho para que, com o estatuto ou o vencimento, não sei bem, equiparado a professor catedrático, leccione algumas coisas de que ele supostamente terá experiência para dar e vender.

A minha primeira perplexidade é com as reacções da esquerda. Em vez de vitoriar e alegrar-se com a conversão do antigo campeão político do liberalismo português – havia quem o visse já como uma Thatcher de calças e óculos que só não foi mais longe porque… –, com a conversão de Passos, dizia, ao Estado social, acolhendo-se, em tempo de desdita, num emprego do mesmo Estado. Em vez de protestar contra a contratação do antigo primeiro-ministro, os estudantes e o povo de esquerda deveriam acolhê-lo com cravos, como mais um dos dele, um neoconverso ao papel fulcral do Estado na sociedade. Mais, não só vai trabalhar para uma instituição estatal, como vai ser cúmplice, pelo exemplo e enquanto professor, da reprodução do amor ao Estado entre as novas gerações. Passos Coelho deveria ser visto pela esquerda pelo menos – e é o mínimo – como um compagnon de route.

Não menos perplexo me deixa a imensa mole dos apoiantes de Passos que agora vitupera a esquerda por o não querer como professor no ISCSP. O lógico não seria essa gente – fundamentalmente, a brigada liberal e anti-Estado – vir para as ruas e rasgar as vestes? Não deveria a direita social estar furiosa por um deles, aquele que mais esperança lhe deu na liberalização do país, ir agora acolher-se nos braços amáveis de um salário pago pelo maldito Leviatã? Como é possível que O Observador e os blogues associados não organizem uma manifestação contra a conversão de Passos Coelho ao socialismo? Não deveria essa direita exigir que ele se acolhesse numa instituição privada ou iniciasse um negócio e, assim, mostrasse a sua veia de empreendedor?

O que se passa é que os princípios valem zero em Portugal. A única coisa que conta é se ele é dos nossos ou é dos outros. Todo o burburinho e indignação – de uns porque ele vai e de outros porque os do outro lado protestam por ele ir – a que se assiste na esfera pública não passa de uma espécie de Benfica – Sporting (ou de um Benfica – Porto, se acharem melhor) político. Toda a gente de esquerda sabe que Passos Coelho tem experiência política suficiente para transmitir. Toda a gente de direita sabe que o percurso académico de Passos Coelho é medíocre. Não é isso, porém, que está em questão. O que move os dois bandos, mais os comentadores de plantão, é apenas uma coisa: ele é dos nossos ou é dos outros?

sábado, 10 de março de 2018

Micropoemas - Naufrágios 6

Francis Bacon, Head IV, 1961

6. Claro

Claro,
luminoso e sério;

abria a vida pela porta do tédio.

(Micropoemas, 1977/78 e 89)

sexta-feira, 9 de março de 2018

Alma Pátria - 20: Raul Solnado - A Guerra de 1908



Quantas vezes terá passado esta historieta humorística na rádio portuguesa daqueles tempos? Bem, não é música, mas é como se fosse. É o humor permitido, embora não se possa dizer que, no antigo regime, não havia lugar para o humor. Havia o Teatro de Revista e, por exemplo, no Rádio Clube Português, os Parodiantes de Lisboa animavam as hostes nacionais com um programa chamado Graça com Todos. Raul Solnado, note-se, não era um homem do antigo regime, aliás como muitas outras figuras que passam pelo Alma Pátria. O humor, diga-se, chocava com a sisudez da censura e dos professores Salazar e Caetano, pouco dados à risota. Por isso era ingénuo e inócuo, mesmo quando havia piadas políticas. Voltando a Solnado, um dos apresentadores do inesquecível programa de televisão Zip-Zip, quando o marcelismo era ainda uma primavera, ele foi uma das faces humorísticas da democracia portuguesa, talvez o pai fundador de uma legião de humoristas que vai de Herman José a Ricardo Araújo Pereira. Acima de tudo, Raul Solnado era uma pessoa de bem. Isso é o mais importante. [Julgo que o vídeo é de uma gravação posterior ao 25 de Abril de 1974. O sketch pertence à revista Bate o Pé, estreada em 1961 no Teatro Maria Vitória.]

quinta-feira, 8 de março de 2018

Da divina imobilidade

Deborah Turbeville

Tudo o que a fotografia nos dá a ver, naqueles corpos femininos, obedece a uma rigorosa coreografia. O que se revela ali, de forma completamente inusitada para um trabalho de moda, é a essência da dança. Essa essência não reside no movimento mas na pura imobilidade. A fotografia de Deborah Turbeville (não apenas esta, mas a sua obra em geral) capta o carácter divino dessa imobilidade. Estamos sempre perante uma representação politeísta do motor imóvel, do Deus de Aristóteles, esse Deus que move o mundo pelo desejo. O movimento, que por equívoco pensamos ser a matéria da dança, não é então outra coisa senão o desejo que a imobilidade desencadeia nos corpos até que estes atinjam, ao saciar-se no ritmo, o seu estado de perfeição e se tornem, como estátuas, imóveis.

quarta-feira, 7 de março de 2018

A distopia educativa

Florian Schmidt, Turn The Page

Há muito tempo que perdi qualquer ilusão sobre a melhoria do sistema educativo português. Os motivos são vários. Há uma cultura dos alunos adversa à aprendizagem escolar, há um retrocesso no formação dos professores relativamente às décadas de oitenta e noventa do século passado e há também um problema com as famílias que ora são desatentas ao percurso dos seus filhos, ora são factor de perturbação, devido a uma hipertrofia da sua presença nas escolas, quase sempre de forma enviesada. Estes factores, porém, não são o cerne do problema. 

O problema reside na bipolaridade política (e aqui estou de acordo com Santana Castilho) que tornou o sistema absolutamente ingovernável. Depois de um consenso inicial nos anos noventa, consenso esse gerador de um grande entusiasmo, a ressaca dos aspectos utópicos gerou dois campos antagónicos que colonizam a educação com os seus devaneios ideológicos. Poderíamos dizer que estamos perante duas utopias. Uma utopia de direita baseada na idealização de uma escola do passado e num rigor que nunca existiu. Uma utopia de esquerda fundada numa perfectibilidade de professores e alunos a ser atingida no futuro que nunca virá. 

Ambos os lados fogem do presente, isto é, da realidade. Dos professores que existem, dos alunos que estão nas escolas, das famílias que solicitam os serviços de educação. Eu sei que a mesma realidade pode ter leituras diferentes. No entanto, se ambos os lados olhassem para a realidade talvez houvesse margem de manobra para se chegar a consensos que evitassem a maluquice em que as escolas vivem ano após ano. Muda o governo e tudo tem de mudar no sistema educativo. Já chega. A soma de várias utopias gerou uma escola completamente distópica. É tempo de mudar de página. São precisas mudanças, claro. Mas elas têm de ser consensualizadas, caso contrário o inferno não terá fim.

terça-feira, 6 de março de 2018

Ensaios sobre a luz (27)

Deborah Turbeville, fotografia para a Vogue, 1995

Um corpo separa-se da paisagem sombria que o envolve, incendeia-se como se tivesse fugido de um limbo e deixa que nos olhos tudo o que é obscuro permaneça e resista à avidez da luz.

segunda-feira, 5 de março de 2018

Micropoemas - Naufrágios 5

Jordi Pallarés, Corazón,1990

5. Coração

Coração
sôfrego e inútil;

do corpo, a alma dúctil.

(Micropoemas, 1977/78 e 89)

domingo, 4 de março de 2018

Ensaios sobre a luz (26)

Léon Comerre, Le Papillon, c. 1890

A luz, ao incidir sobre o corpo, desdobra-se para se abrir como uma borboleta que, sob o segredo dos olhos, te poisasse na branca alvura da mão.

sábado, 3 de março de 2018

Um regime pouco parlamentar


Uma parte – uma parte e não todos, note-se – dos problemas que Rui Rio está a enfrentar dentro do seu próprio partido deve-se ao simples facto de não ter assento na Assembleia da República. A sucessão de Passos Coelho à frente do partido português com mais deputados eleitos no actual parlamento foi disputada por dois não deputados. O problema desta situação não é apenas instrumental. Estar na oposição e não ter lugar no parlamento é mau do ponto de vista dos interesses partidários. No entanto, não é o pior.

O facto dos líderes partidários não serem, ao mesmo tempo, deputados eleitos representa, na prática, uma desvalorização do parlamento. Esta desvalorização, porém, está na génese do próprio regime, ao escolher um modelo político semipresidencial. Os constituintes acharam por bem colocar o parlamento - e os deputados - sob a tutela do Presidente da República. Na verdade, o que essa escolha revelou foi uma efectiva falta de confiança no parlamentarismo. E é essa falta de confiança no regime parlamentar que a situação actual do PSD torna patente.

Se os partidos parlamentares acreditassem efectivamente nas virtudes da democracia parlamentar teriam, todos eles, inscrita nos seus estatutos uma cláusula que impossibilitasse um não deputado aspirar à liderança do partido. Tanto quanto sei, nenhum tem. O que torna a situação política completamente incongruente. O chefe da oposição não está no parlamento para confrontar o primeiro-ministro e obrigá-lo a prestar contas. Situações destas empobrecem a vida política, a qual deveria fundar-se no confronto democrático dentro do parlamento. O parlamento como casa da democracia não passa assim de uma figura de retórica. E depois as elites políticas ficam - ou fingem ficar - muito admiradas pela imagem que os deputados têm na opinião pública.

quinta-feira, 1 de março de 2018

O difícil mundo da liberdade de expressão

A minha crónica em A Barca.

Um dos sintomas do carácter incipiente da nossa cultura democrática reside na má disposição com que membros de uma certa organização de natureza pública recebem artigos de opinião sobre as organizações a que pertencem. Se se escreve sobre um partido político, sobre o seu funcionamento, sobre problemas que enfrenta internamente, haverá sempre quem ache que as pessoas que não lhe pertencem não têm direito de emitir opinião. O mesmo se passa com as Igrejas. Se, por exemplo, se fala da vida interna da Igreja Católica ou das opiniões dos seus membros, haverá sempre quem ache que não há direito, não pertencendo à Igreja, de falar sobre esses assuntos.

Isto é, contudo, um equívoco. Pior, é uma incompreensão profunda do tipo de sociedade em que vivemos e da liberdade de expressão. Partidos políticos, Igrejas, clubes recreativos ou desportivos são organizações públicas e recebem, enquanto tal, protecção pública. As suas actividades não são secretas – ou não deverão sê-lo – e elas influenciam a sociedade no seu todo. Por isso, elas não se podem eximir ao escrutínio público daqueles que não lhes pertencem. Nunca é demais lembrar uma célebre nota de rodapé aposta por Kant ao primeiro prefácio da Crítica da Razão Pura: “A nossa época é a época da crítica, à qual tudo tem que submeter-se. A religião, pela sua santidade, e a legislação, pela sua majestade, querem igualmente subtrair-se a ela. Mas então suscitam contra elas justificadas suspeitas e não podem aspirar ao sincero respeito, que a razão só concede a quem pode sustentar o seu livre e público exame.”

A ideia de que a vida interna de um partido político, com os seus dramas e tragédias, ou as questões doutrinais de uma Igreja, não menos dramáticas, só interessam aos seus membros é esquecer que essas organizações têm um poder de intervenção na sociedade e que esse poder interfere tanto com quem pertence como com quem não pertence. E é por isso que, numa democracia liberal, tudo deve estar submetido à crítica pública e ser matéria de discussão pública, na qual todos poderão participar. Isso não significa que quem não pertença tenha direito algum de tentar sequer intervir, através da acção, no funcionamento interno dessas organizações. O Estado existe também para as proteger contra tentativas desse género. No entanto, o uso da liberdade de expressão, a possibilidade de argumentar sobre essas organizações é uma questão fundamental para o funcionamento livre das nossas sociedades. E, além disso, esse exame público é benéfico para essas organizações, que desse modo “podem aspirar ao sincero respeito, que a razão só concede a quem pode sustentar o seu livre e público exame”.