segunda-feira, 23 de junho de 2014

A duplicidade do olhar

Diane Arbus - Two ladies at the automat, NY (1966)

Eu percebo que a política esteja ligada a interesses e desencadeie paixões que enviesam - mais que o próprio futebol - a percepção de qualquer um. Pessoas que são objectivas e comprometidas com o exame rigoroso da realidade ou dos seus objectos particulares de investigação soçobram perante o teste da política. Isto vem a propósito do artigo de hoje no Público online da historiadora Maria de Fátima Bonifácio, com o título O que sobrará de Portugal?. Em jogo estão as políticas do governo consideradas inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional (TC). A historiadora não acusa o TC de fazer política. Acusa a Constituição de não deixar o governo governar. E não podendo o governo governar como lhe aprouver - neste caso, tornar a fazer incidir nos pensionistas e nos funcionários públicos o ónus da dívida pública - parece que a única coisa que pode acontecer é uma catástrofe que o título profetiza. 

O que está em jogo neste tipo de comentários é aquilo que se oculta. Oculta-se a captura do Estado não pelos salários dos seus funcionários ou pelas pensões que terá de pagar, mas pelos interesses privados que - em cumplicidade com o arco da governação - submeteram o Estado a compromissos que o afogam. Esconde ainda a própria teia de interesses partidários que, com a mão deste governo, coloniza o Estado e contribui para o descalabro financeiro. Há em todo este tipo de comentadores uma visão sacrificial de uma parte da sociedade para que outra - aliás, bem minoritária - continue com as suas rendas, continue a viver - apesar de falar à boca cheia de iniciativa privada e de empreendedorismo - à custa do dinheiro do Estado, isto é, dos contribuintes. Seria justo equacionar os salários da função pública, se todo o resto que onera as contas públicas tivesse igual tratamento. Mas isso é aquilo que estes militantes da saúde das finanças públicas não gostam de falar. Preocupam-se até à exaltação com as gripes, mas acham o cancro uma doença salutar, senão mesmo salvífica.

2 comentários:

  1. Gripes versus cancro. Uma expressão duplamente aplicável na prática destes curandeiros que nos dão cabo da saúde.

    Um abraço

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