Henri Rousseau - Jogadores de futebol (1908)
Há uma tentação, em certos sectores, para ver o futebol como uma forma
de alienação da realidade. Uma notícia como esta (a
selecção belga é uma das poucas coisas que une flamengos e valões) torna de
imediato manifesto o papel político central que o desporto de alta competição –
nomeadamente, o futebol – possui. Por norma, diz-se que o futebol é um factor
de estranhamento (alienação) dos sujeitos perante a realidade. Contudo, podemos
ver o futebol como um meio de construção de identidades e de geração de
consensos que nos permitem viver em comum. O futebol, em grande parte do mundo,
é um poderoso meio de construção da própria realidade social. Vale a pena olhar
para duas razões que justificam essa ideia.
A realidade social e política não é um conjunto amorfo de factos
captados empiricamente pelos sujeitos. A factualidade é enquadrada por
dimensões simbólicas que se dirigem a áreas do ser que não são a razão pura. Os
domínios do sentimento, da memória e da imaginação são importantes factores que
intervêm na ordem política e na construção de uma identidade política. Esses
domínios são mobilizados pela dimensão simbólica que o futebol arrasta consigo,
nomeadamente quando se trata da representação nacional. As cores, as bandeiras,
os estados de ânimo provocados pelas derrotas e vitórias são, nos tempos em que
os símbolos mais fortes das identidades desapareceram, um importante dispositivo
de construção identitária.
Uma segunda razão prende-se com o papel do futebol na produção do
consenso social. As nossas sociedades vivem do equilíbrio entre o conflito de
interesses e o consenso que nos permite viver uns com os outros, apesar da
divergência acerca da repartição dos bens na sociedade. O que significa, do
ponto de vista político, este consenso? Significa a transformação da relação de
inimizade política (as partes vêem-se como inimigos que há que exterminar) em
relações adversariais (as partes têm interesses diferentes, pretendem ganhar,
mas precisam umas das outras e não desistem da aniquilação do outro). O futebol
tem aqui um papel central, fornecendo à imaginação um ponto de apoio para o
consenso (somos todos a favor dos nossos) e uma imagem perceptível dos limites
do conflito político (derrotar o outro mas não o suprimir).
Ver o mundial, que agora dá os primeiros passos, não é apenas a
manifestação de um gosto pessoal relativo a uma modalidade desportiva. É um
acto político fundamental. Não por nos obrigar a tomar uma posição política
sobre os conflitos na nossa sociedade, mas porque tem uma função instrutiva
sobre como viver em sociedades onde o conflito de interesses se pode manifestar
dentro da ordem previamente estabelecida.
O futebol é uma transcendência, quer se queira quer não. Atravessa transversalmente a realidade política, social e cultural dos países.
ResponderEliminarO exemplo que deu da Bélgica é paradigmático.
Como disse Brel: Aquele país é um terreno baldio onde as minorias se guerreiam em nome de duas culturas que não existem.
O futebol é a excepção.
Abraço
Isso, o futebol - ou outros desportos de grande divulgação - é uma transcendência que toca e aglutina as diversas realidades sociais.
EliminarAbraço