Jorge Carreira Maia - Black & White Dreams. Luso. (2008)
Querem saber como começa o "Ferdydurke" do Witold Gombrowicz,
romance que tanto entusiasmo despertou em escritores como Milan Kundera ou
Susan Sontag? Eu sei que ninguém me perguntou, mas, mesmo assim, vou ser
bondoso e transcrever as seis primeiras linhas...
«Na terça-feira acordei àquela
hora mortiça e difusa, quando a noite já se acabou e o dia mal amanheceu. Ao
acordar estremunhado, tive o ímpeto de arrancar num táxi para a estação, pois
fui invadido pela sensação de que estava de partida - só no minuto seguinte me
dei conta, com grande pesar, de que não havia nenhum comboio à minha espera na
estação e que nenhuma hora havia ainda soado.»
Em seis míseras linhas quantas questões? Por que motivo acordou ele àquela hora? E a
que se deve a sensação de que pensava estar de partida? E que razão funda o
pesar por não haver qualquer comboio à espera? E para onde iria esse comboio,
se existisse nessa hora? E quando deveriam soar as horas que não soaram e por
que não soaram? A questão que se me põe como leitor é se o romance responde ou
não a estas questões, se elas são de facto decisivas. São elas que me irão
guiar na leitura. São uma espécie de bússola. O que é que eu quero dizer com
todas esta conversa? Quero dizer várias coisas, porventura desencontradas.
Ler não é um mero divertissement. Recordo o conceito
pascaliano. Não se trata de, através da leitura, encontrar uma porta por onde o
leitor se esquive de pensar, por onde entre e evite confrontar-se com a infelicidade
inerente à própria existência humana. Ler não é um acto de entretenimento, para
usar uma expressão agora corrente, não é um passaporte para a alienação. Ler é
um acto de confrontação. A obra, se for digna de apreço, confronta-nos, põe-nos
em causa, questiona, com o seu mundo, o nosso mundo, que é sempre humano,
demasiado humano.
Pelo facto de a obra literária nos confrontar, a leitura acaba por ser
um combate corpo a corpo. Isto porque não é só a obra que confronta o leitor.
Este também a confronta, a interroga, a põe em causa, questiona as opções,
confronta a solidez das personagens, a estrutura da narrativa, o génio (no
sentido de este ter mau ou bom génio) do narrador. Se me perguntarem quais as
vantagens dos livros de papel sobre os eReaders,
eu direi: nenhuma (não me comovem o cheiro a papel e outras perversões sensuais
que os amantes de livros em papel gostam de sublinhar). Nenhuma, excepto o
facto de, se eu estiver a ler alguém de que gosto particularmente, mas que tem
o poder, pelo excesso da sua escrita, de me humilhar e irritar – por exemplo, a
Agustina Bessa-Luís –, ser muito mais barato atirar um livro de papel à parede
do que um eReader. Ler é assim um
acto visceral, nada açucarado ou adamado. Quem não gosta de boxe, o melhor é não
pegar num livro.
Voltemos agora à sensualidade do livro, mas não àquelas perversões que
entusiasmam os cultores dos livros em papel. O jogo que a obra entretém com o
leitor é um jogo de sedução. Um jogo sério de sedução e não um mero divertissement donjuanesco. A obra
pretenda tornar o leitor num amante fiel e persistente, um amante que não a
abandone no meio da noite, que não a troque por umas horas de sono ou outra
mais sedutora. A sedução não visa apenas o prazer sensorial, mas a criação de
vínculos, talvez mesmo um casamento mais indissolúvel do que o matrimónio católico.
A sedução nasce nesse acto de confrontação, de corpo a corpo, de batalha entre
o espírito e o corpo do leitor com o espírito o mundo da obra. E é essa sedução
que leva à célebre suspensão da descrença vista por Coleridge como a razão pela
qual o leitor persiste na leitura de uma obra ficcionalizada.
Apesar de tudo isto, e assim como Kant exigia que a religião, pela sua
santidade, e o poder, pela sua majestade, respondessem no tribunal da crítica,
também um romance, como qualquer outra obra literária, terá de responder no
tribunal instaurado pelo leitor. A este é-lhe pedido não apenas o corpo a corpo
com a obra, não apenas o jogo erótico com o conteúdo, mas também a imparcialidade
do juiz, uma imparcialidade que não se deve deixar enganar pelo fulgor da
batalha ou pelo ardor do amplexo. E para que o leitor seja esse juiz nada
melhor do que estar atento ao início, não porque este seja deslumbrante, mas
porque nele está contido uma promessa. E o juiz deve determinar que promessa
ali está e se o promitente a cumpre. E na literatura, como na arte, não há mais
moral que esta.
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