A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.
A Igreja Católica está, com o Sínodo dos Bispos sobre os problemas da
família, a confrontar-se com um problema de difícil solução, problema que a assombra
desde a Reforma protestante e o posterior surgimento do que se convencionou
chamar Modernidade. O problema é o da
conciliação entre a autonomia da pessoa – a conquista central da Modernidade – e a tradição que se funda,
para além das Escrituras, na autoridade da hierarquia eclesial. É esta autoridade,
detentora do poder doutrinal, que muitas vezes choca com a autonomia da pessoa,
nomeadamente em questões de moral sexual, tendendo a limitar a liberdade dos crentes.
O conflito entre autonomia do indivíduo e autoridade religiosa acabou,
nos países ocidentais onde a Igreja Católica possui influência, por conduzir a
um afastamento entre os princípios doutrinais da Igreja e as práticas sociais e
individuais das pessoas, incluindo as dos crentes. Este fenómeno foi potenciado
por dois outros. O primeiro foi a transformação das narrativas bíblicas, de
carácter simbólico e mítico, em narrativas históricas e o confronto dessa
suposta verdade histórica com os dados das ciências. O segundo é o da separação
entre o Estado e a Igreja com o fim da autoridade política desta. A autoridade
social e moral, mas também espiritual da Igreja foi assim diminuindo até chegar
à actual situação de vazio religioso. Neste momento, e esse parece ser o grande
problema, esse vazio começa a ser preenchido, seja pela penetração do Islão,
seja pelo advento e afirmação das seitas pentecostais.
A estratégia seguida pelo actual Papa tem a sua âncora na virtude da
misericórdia. Misericórdia social, com a crítica à deriva ultraliberal da economia
e o apelo a um mundo mais solidário, e misericórdia moral relativa às condutas
ditas desordenadas no âmbito da sexualidade e das emergentes formas de família.
O problema é se este apelo à misericórdia, ao perdão e à compreensão do outro,
chegará para fazer a quadratura do círculo e conciliar tradição e modernidade,
autoridade da Igreja e liberdade individual. A liberdade do indivíduo não
necessita de misericórdia, precisa de ser completamente reconhecida em todas as
suas dimensões, incluindo a da sexualidade. Reconhecida esta liberdade, talvez
a Igreja possa perceber que o seu grande problema é de dimensão espiritual e
não moral, é o de abrir caminhos, no mundo moderno, para que indivíduos livres
e autónomos possam realizar a transformação do homem velho no homem novo, do
velho Adão no novo Cristo, para utilizar a simbólica neotestamentária. Não foi
para isto que foi criada? Ou terá sido para julgar a mulher adúltera?
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