quinta-feira, 9 de outubro de 2014

A questão é entrar

Antonio Tápies - Porta Roja (1995)

- Escute, homem! Você quer entrar na Politica? Quer. Então, pelos Historicos ou pelos Regeneradores, pouco importa. Ambos são constitucionaes, ambos são christãos... A questão é entrar, é furar. Ora você, agora, inesperadamente, encontra uma porta aberta. O que o póde embaraçar? As suas inimisades particulares com o Cavalleiro? Tolices! [Eça de Queirós, A Ilustre Casa de Ramires; ortografia segundo a regra da época.]

Não estamos no século XXI. Eça retrata o constitucionalismo monárquico do século XIX. O problema reside no simples facto de não haver qualquer diferença entre o oportunismo político da altura e o actual. Para além de uma vaga reverência ao constitucionalismo e aos valores cristãos, uma espécie de senso comum da época ou, para usar uma infeliz expressão em voga nos dias de hoje, o politicamente correcto de então, qualquer convicção é dispensável às elites políticas portuguesas em períodos de constitucionalismo normal.

Nas sociedades pós-modernas em que se vive a indiferenciação programática dos partidos políticos deve-se à erosão de alternativas. Pode haver diferentes formas de gerir a coisa pública, diferentes memórias histórico-partidárias, diferentes famílias políticas internacionais, mas todas elas coincidem no essencial, como os últimos governos não se cansam de confirmar. A indiferenciação político-partidária portuguesa, porém, não se inscreve apenas nesta perspectiva de ausência de alternativa das sociedades ocidentais actuais, das sociedades tardo-capitalistas, para usar uma expressão cunhada por Werner Sombart e mais tarde adoptada pela Escola de Frankfurt. Ela é uma tradição profunda de ausência de valores políticos sólidos, de convicções sobre o bem comum, de falta de carácter dos protagonistas.

Na verdade, e apesar de uma guerra civil no século XIX entre liberais e tradicionalistas (miguelistas), Portugal, para além das convicções atávicas da velha Monarquia que se foram desfazendo, nunca foi lugar de enraizamento de valores políticos modernos, talvez com a excepção da área dominada pelo Partido Comunista. De certa forma, Portugal foi pós-moderno mesmo antes de chegar a ser moderno, se é que alguma vez o foi efectivamente. Para as elites nacionais a questão é só uma, a questão é entrar, furar. A monarquia constitucional é um repositório dessas virtudes pátrias. A República mudou o regime mas não os hábitos. O Estado Novo dispensou a liberdade, mas manteve as velhas virtudes do constitucionalismo e da República. O actual regime nunca encontrou motivação para tornar o país num sítio um pouco mais asseado e o Estado num lugar mais imparcial. Há que encontrar a porta e entrar. (averomundo, 2010/02/22, revisto)

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