Jorge Carreira Maia - Heimat VI, TN (ESAG) (2014)
Um murmúrio infecta a tarde, cresce, zoa nos ouvidos, toma conta de
casas e pessoas, abre uma brecha na textura do mundo. Se o silêncio viesse
cobrir de paz estas horas, tudo se tornaria mais fácil. Alguém vai ao terraço e
rega as plantas, cobre cada vaso com uma fina película de água e depois
recolhe-se, como se toda a vida ganhasse sentido no acto de se acoitar na
inviolabilidade do casulo. Sentado noutro terraço, um homem olha o horizonte.
Conta os carros que passam e boceja, depois retoma a contagem e torna a
bocejar. O murmúrio cresce enquanto ele conta, cresce indiferente às contagens
humanas. É um zumbido de carvão, lasso, o rufar de uma nódoa na claridade que
se ergue da terra. Penso nas infinitas contagens a que os homens dedicam a
vida. Quantos dias faltam para o fim-de-semana? Quantas horas para embarcar?
Quantos instantes até que a morte venha e tudo seja já nada? O discreto
bocejador desapareceu engolido pela vida doméstica. Não há carros na linha do
horizonte, apenas a zoada infinita a crescer como uma mancha cheia de nada que
se derrama dentro de mim. (averomundo,
2008/05/22, revisto)
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