Giorgio de Chirico - O duo (1915)
A ilusão do progresso foi, algumas vezes, benigna. Inspirou alguns
avanços sociais genuínos, como a abolição da tortura nos processos judiciais.
(Ironicamente, como refiro no Capítulo 15, alguns liberais americanos
argumentam, agora, a favor da sua reintrodução.) Mesmo assim, acredito que ela
[a ilusão do progresso] se tornou perniciosa. Qualquer que tenha sido o seu
papel no passado, a crença no progresso tornou-se num mecanismo de
auto-decepção que apenas serve para bloquear a percepção dos males que vêm com
o crescimento do conhecimento. Em contraste, os mitos da religião são cifras
que contém a verdade da condição humana. [John Gray (2004). Heresies Against Progress and Other
Illusions. London: Granta Books, pp. 5]
Como o próprio Gray esclarece, a questão da ilusão na crença do
progresso refere-se ao progresso ético e político da humanidade. A ciência e a
técnica progridem efectivamente. Há um acumular de conhecimentos científicos e
um acréscimo do poder técnico da humanidade. Não há, concomitantemente a este
progresso do conhecimento da natureza e dos mecanismos sociais, uma
transformação da natureza humana. A realidade humana mantém-se inalterada bem
como a sua conduta moral e política. A grande ilusão dos séculos XIX e XX
residiu na ideia de uma transformação política da qualidade moral dos homens.
Tanto o marxismo como o liberalismo, esses dois irmãos inimigos nascidos das
entranhas do Iluminismo, propagaram essa fé, com os resultados que se
conhecem.
Parece-me, no entanto, que está a emergir, de forma insidiosa mas nem
por isso menos ameaçadora, uma nova abordagem do problema. Gray refere que a
crença no progresso [moral e político] bloqueia a percepção dos males
que provêm do acréscimo do conhecimento científico, com o poder desmesurado que
esse conhecimento confere à capacidade de violência da humanidade. Mas o que se
está a passar é algo mais perigoso. O próprio mal moral, e posteriormente o mal
político, irão ser colonizados pela ciência. Não uma ciência do mal, mas uma
ciência dos comportamentos patológicos. O mal não derivará da liberdade humana
e da responsabilidade do agente (uma perspectiva de claro pendor cristão, coisa
fora de moda, como tudo o que tenha a ver com a liberdade), mas de uma falta de
sanidade.
Ao transformar o mal numa questão de saúde pública, está a
legitimar-se a intervenção da ciência. Isso começou já há muito, nomeadamente
nas áreas da psicologia e da psiquiatria. A psicanálise, por exemplo, é um
momento singularmente importante na escalada da transformação do mal moral em
problema de saúde mental ou comportamental. Mas como já se está a descobrir,
este tipo de intervenção é apenas o prenúncio de uma intervenção mais radical e
decisiva. A lobotomia, que valeu o único prémio Nobel a um cientista português,
é uma antepassada remota do que se prepara. A chave reside no domínio do código
genético. Mais tarde ou mais cedo, emergirão projectos de manipulação da
estrutura genética que, por exemplo, molda comportamentos violentos ou
comportamentos socialmente reprováveis.
A tentação subliminar é então a seguinte: fazer com a ciência aquilo
que a política não conseguiu, gerar por intervenção científica um progresso
moral e político da humanidade. Isso já pode ser pensado e aquilo que é
pensado, mais tarde ou mais cedo, é tentado. Por muito rudimentar que ainda
seja o saber genético, é já possível surpreender no Zeitgeist a ideia de uma metamorfose da espécie humana. Esta
metamorfose não é, nem de perto nem de longe, semelhante àquela que as
doutrinas místicas, ou mesmo a filosofia platónica, propõem. Estas são
conversões pessoais radicadas na autodescoberta e num processo
de libertação pessoal do egoísmo. Aquilo que está em jogo, porém,
não tem este carácter benigno. Visa uma intervenção na própria natureza humana
para a alterar radicalmente, visa o desenho efectivo de uma pós-humanidade,
numa espécie que se liberta definitivamente do mito da criação, e dos que lhe
estão associados, para se tornar numa espécie autoconcebida, isto é, autoproduzida,
autocriada. (averomundo, 2009/12/09)
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