Joan Miró - Diálogo de insectos (1925)
Novalis também pensa,
como August Wilhelm Schlegel – fundador, com o irmão Friedrich, do romantismo –,
que «a poesia dos antigos era a da possessão, a nossa é a da nostalgia».
(Claudio
Magris, Alfabetos, pp. 90-91)
Se a poesia dos antigos era o delírio provocado pela possessão divina
e a dos românticos a da nostalgia por essa possessão, o que será a nossa? A
nostalgia romântica dissolveu-se, pois esses antigos afastaram-se de tal maneira
de nós que nem para a nostalgia há, nos dias de hoje, um objecto que a preencha. Houve um momento
em que até os poetas sentiram nostalgia do futuro e fizeram parte dos fiéis
dessa igreja. Hoje, porém, com a exclusão dos homens de negócios – e esses só
no que diz respeito ao seu métier – ninguém se interessa pelo futuro. Nem a experiência divina dos antigos, nem a nostalgia
dos românticos, nem a expectativa dos modernistas. Qual o território do poeta?
Esta pergunta interpela-me uma e outra vez. Nunca se deverá ter escrito tanta
poesia no mundo como hoje, mas isso parece-me mais o sintoma de uma ausência do
que a afirmação de uma vitalidade. Há dias que chego a pensar que tudo o que é
poeticamente permitido está condensado em Gregor Samsa, esse infeliz
caixeiro-viajante que, por uma estranha metamorfose, se torna num horrível
insecto.
Não haverá símbolo maior do mundo moderno do que o caixeiro-viajante. Ele é o
mediador por excelência, mas um mediador que não está fixo no território, que
se desloca para estabelecer pontes entre aqueles que querem vender e aqueles
que querem comprar. Ele constrói com o seu labor o mercado. De súbito e
inexplicavelmente, Gregor Samsa transforma-se,como se fosse possuído agora não pela mania vinda dos deuses mas por algo que
vem dos fundos do ser, e que o arrasta para a sua nova situação. Se em O Castelo e em O Processo Kafka torna patente o significado da racionalização da
vida, desiderato ordenador da modernidade, em A Metamorfose joga-se algo mais fundamental para a condição humana.
Num mundo onde, idealmente, todos devem ser mediadores e instituir, pelo seu
labor, o mercado universal, a poesia possível é a da epopeia negativa onde o
homem se vê lançado num nível inferior de animalidade. Não há lugar para a
possessão divina dos antigos poetas, nem para a nostalgia romântica, nem para
os sonhos futurista ou realistas. Há a gesta do presente, e esta não é mais do
que a transformação do homem num insecto.
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