Evaristo Valle - Bernard Shaw (1950)
Muitas
vezes a minha memória é assediada pelo título de um livro que nunca li.
Trata-se do romance de Bernard Shaw, publicado em 1887, Um Socialista Insociável (An Unsocial
Socialist). É um título que me acompanha há quarenta anos. Foi nessa
longínqua juventude onde uma inevitável confluência entre ingenuidade,
desarranjo hormonal, generosidade e pouco exercício dos neurónios, entre outras
infelicidades, me levou à militância política em prol do socialismo. Foi nessa
altura que o título do livro de Bernard Shaw se cravou, misteriosamente, na minha memória e nunca
mais me largou. O que eu não sabia – e hoje isso parece-me muito claro – é que
ele era uma cifra do meu próprio destino. Não que fosse naquela altura um
socialista insociável, não o era, ou que, com o decorrer do tempo, me tenha
tornado em tal. Não tornei. A verdade é outra. Naquela altura acreditava
piamente no socialismo – melhor, no socialismo científico, seja lá o que isso
for –, com o passar dos anos a crença no socialismo, mesmo no científico,
perdeu-se e, em paralelo, foi crescendo a minha insociabilidade.
Não me tornei misantropo, mas não consigo pertencer a grupos,
partilhar gostos, conjugar os meus esforços em prol do que quer que seja. Não é
por comodismo ou por crer que a vida privada seja o núcleo central da vida
humana. É por uma questão de respeito pelas sociabilidades dos outros. Se
pertencesse a qualquer grupo acabaria por me rir dos seus objectivos, das suas
actividades, da sua organização. Talvez dos seus membros, a começar por mim. Por isso, não faço parte de nada, nem de
clubes recreativos ou culturais ou desportivos, nem de um partido ou de uma
paróquia, nem de um círculo de leitura ou de uma confraria. Nada. Cada vez mais o que
é humano se me torna estranho. Penso-me activo num qualquer grupo e só consigo
ver o desconcerto da melancolia. A sociabilidade onde o meu pobre socialismo
juvenil floresceu vacinou-me. Mas sem dar por isso, essa vacina era já o vírus
da insociabilidade que se me inoculava. Terríveis são os presságios
que só descobrimos que o são quando o vaticínio está consumado.
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