sábado, 14 de março de 2015

Da frugalidade islandesa

Eduardo Úrculo Fernández - Algo impossível (1996)

Os islandeses reaprenderam a frugalidade (que é a austeridade voluntária da decisão ética, e não a pobreza imposta pela troika), mas apostaram mais do que nunca na defesa do seu Estado social, que em 2014 absorveu 43% da despesa pública. (Viriato SoromenhoMarques, DN)

É muito curiosa a distinção introduzida por Soromenho Marques entre a austeridade proveniente da decisão ética, a que ele chama frugalidade, e a austeridade imposta por terceiros, por aqueles que surgem como a voz dos credores. Os islandeses, perante a catástrofe trazida pelo sistema bancário, entre outras coisas reaprenderam a frugalidade. Os povos da Europa do sul tiveram de suportar uma austeridade imposta pelos credores, cuja finalidade foi empobrecer as pessoas para salvar os bancos alemães e franceses. Em linhas gerais, estou de acordo com o artigo de Soromenho Marques. No entanto, nele não resulta clara a ligação entre as opções políticas e as decisões éticas dos indivíduos.

Não terá a Islândia tido a possibilidade de resolver o problema da crise, na forma política como o fez, devido à predisposição dos seus cidadãos, num momento muito difícil, para reaprenderem a frugalidade, para viverem, por decisão própria, uma vida mais austera? O facto de a Islândia ser um país luterano é fundamental para explicar esta frugalidade e o importante papel da consciência moral dos indivíduos, inclusive na protecção do estado social. O modelo islandês não é transponível para os países do sul da Europa, onde o peso da subjectividade moral é muito menor e a frugalidade é um elemento estranho à cultura local. Os povos do sul sabem o que é a pobreza, mas não sabem o que é a austeridade como fruto de uma auto-limitação do indivíduo.

No caso das dívidas soberanas do países do sul há dois problemas. O primeiro é o da resposta política que lhe foi dada. Uma resposta idiota e destruidora, como se pode verificar pelos resultados dessa política. Subsiste, porém, um problema cultural. E é esse problema cultural que gerará, ciclicamente, situações difíceis. No sul, as populações vivem ora na pobreza ora na exibição. A ideia de frugalidade, de austeridade pessoal, de sacrifício do prazer imediato para criar riqueza no futuro não existe. O primeiro desejo de alguém que lança uma pequena empresa é comprar um automóvel topo de gama. E esta atitude é transversal à sociedade. O exemplo vem de cima, onde as elites são vorazes e exibicionistas. O princípio de inveja - estrutura central da consciência comum numa sociedade de mercado - gera a disseminação dessa atitude por todo o corpo social. Não vale a pena, por muito jeito político que isso dê, fazer analogias onde não há elementos para analogar. Precisamos de cortar com a política austeritária actual, mas também precisamos de mudar de cultura. Os países católicos do sul e a ortodoxa Grécia deveriam ter a capacidade para continuarem a ser católicos e ortodoxos e, do ponto de vista dos hábitos e da cultura social, tornarem-se luteranos, que é como quem diz fazer a quadratura do círculo. Algo impossível.

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