Theodore Gericault - An Officer of the Imperial Horse Guards Charging (1814)
As corridas e a caça
extraviam o coração do homem.
Os bens dispendiosos
impedem a acção do homem.
Assim, o Sábio ocupa-se
do ventre e não do olho.
É por isso que ele
rejeita o além e escolhe o aqui.
Lao
Tse, Tao Te King, XII
Depois
de um tempo de desmedida e sem direcção, o guerreiro experimentado e maduro abandonou
aquilo que era tido como digno de ser vivido. Travara duras batalhas e estivera
frente a frente com a morte infinitas vezes. Perdeu a conta aos amigos que viu
morrer. A guerra era a sua condição e não um acidente. Nos tempos de paz, ele
que prosperara na guerra, entregava-se aos jogos que a caça e as batidas lhe
proporcionavam ou aos prazeres que a fortuna ganha em combate lhe trouxera.
Talvez o convívio com a morte o tenha obrigado a aprender a desviar os olhos e
a concentrá-los no além, nesse lugar luminoso que fascina os sentidos de quem
não suporta o sofrimento trazido por tanta perda.
Quando
o tempo de paz cobriu o vasto império, percebeu que os seus serviços eram
dispensáveis. Restava-lhe a dissipação dos dias e o esquecimento da sua
condição. Lentamente, uma estranha força começou a germinar nos seus
pensamentos, uma angústia sobre qualquer coisa que havia perdido. Não era a
excitação da guerra, o ruído dos campos de batalha, o cheiro dos corpos. Não era
sequer a vertigem perante a morte, pelo menos com a vertigem que rodeia aquele
que, pela perícia com que maneja o tempo, decide se vai matar ou morrer. Havia
nessa vertigem, porém, uma luz que se abria, na insignificância do instante, e
era como uma planície tranquila onde reinava a serenidade, uma planície que
chamava por ele e que ele sempre recusara escutar.
Despediu-se
da família e dos amigos, e atravessou uma vasta região. Quando chegou ao cimo
da montanha, onde possuía uma propriedade, procurou um casebre que tinha visto por
ali em tempos de guerra. Instalou-se, esperançado que o inóspito do lugar
afastasse curiosos ou algum viajante perdido. Na solidão do eremitério, iria
confrontar-se com a serenidade que o chamava naquele instante em que a morte e
a vida se decidiam.
Naquilo
que mais tarde narrou, não consta qualquer nota sobre a
família ou amigos deixados tão longe, não há vestígio de alguma nostalgia pelo
tempo em que era um dos mais temidos senhores da guerra. A generalidade das
páginas eram preenchidas com notas sobre os seus pensamentos. Durante muito
tempo, o além, aquela planície serena que o chamava, parecia ser o grande
motivo de onde nascia a meditação. Subitamente, porém, os temas, escritos com
uma caligrafia mais serena e firme, passaram a ser mais prosaicos e ligavam-se
à materialidade da vida, à fome que sentia, ao cansaço trazido pelas
caminhadas, ao correr do sangue nas veias, como se, com o passar do tempo, fosse descobrindo que apenas o aqui lhe importava. Ao ler as duas últimas
notas, o leitor não vê a descrição, que nelas constam, do bater do coração
durante a noite. Sente apenas o seu coração a bater na noite, mesmo que seja meio-dia. Quando, volvidos dez anos, voltou a casa, os dias foram passados com os
netos. Ensinou-os a atirar com o arco e a cavalgar como se cavalo e cavaleiro
fossem um único ser sobre o solo que pisavam.
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