domingo, 22 de março de 2015

Meditações Taoistas (23)

Theodore Gericault - An Officer of the Imperial Horse Guards Charging (1814)

As corridas e a caça extraviam o coração do homem.
Os bens dispendiosos impedem a acção do homem.
Assim, o Sábio ocupa-se do ventre e não do olho.
É por isso que ele rejeita o além e escolhe o aqui.
Lao Tse, Tao Te King, XII

Depois de um tempo de desmedida e sem direcção, o guerreiro experimentado e maduro abandonou aquilo que era tido como digno de ser vivido. Travara duras batalhas e estivera frente a frente com a morte infinitas vezes. Perdeu a conta aos amigos que viu morrer. A guerra era a sua condição e não um acidente. Nos tempos de paz, ele que prosperara na guerra, entregava-se aos jogos que a caça e as batidas lhe proporcionavam ou aos prazeres que a fortuna ganha em combate lhe trouxera. Talvez o convívio com a morte o tenha obrigado a aprender a desviar os olhos e a concentrá-los no além, nesse lugar luminoso que fascina os sentidos de quem não suporta o sofrimento trazido por tanta perda.

Quando o tempo de paz cobriu o vasto império, percebeu que os seus serviços eram dispensáveis. Restava-lhe a dissipação dos dias e o esquecimento da sua condição. Lentamente, uma estranha força começou a germinar nos seus pensamentos, uma angústia sobre qualquer coisa que havia perdido. Não era a excitação da guerra, o ruído dos campos de batalha, o cheiro dos corpos. Não era sequer a vertigem perante a morte, pelo menos com a vertigem que rodeia aquele que, pela perícia com que maneja o tempo, decide se vai matar ou morrer. Havia nessa vertigem, porém, uma luz que se abria, na insignificância do instante, e era como uma planície tranquila onde reinava a serenidade, uma planície que chamava por ele e que ele sempre recusara escutar.

Despediu-se da família e dos amigos, e atravessou uma vasta região. Quando chegou ao cimo da montanha, onde possuía uma propriedade, procurou um casebre que tinha visto por ali em tempos de guerra. Instalou-se, esperançado que o inóspito do lugar afastasse curiosos ou algum viajante perdido. Na solidão do eremitério, iria confrontar-se com a serenidade que o chamava naquele instante em que a morte e a vida se decidiam.

Naquilo que mais tarde narrou, não consta qualquer nota sobre a família ou amigos deixados tão longe, não há vestígio de alguma nostalgia pelo tempo em que era um dos mais temidos senhores da guerra. A generalidade das páginas eram preenchidas com notas sobre os seus pensamentos. Durante muito tempo, o além, aquela planície serena que o chamava, parecia ser o grande motivo de onde nascia a meditação. Subitamente, porém, os temas, escritos com uma caligrafia mais serena e firme, passaram a ser mais prosaicos e ligavam-se à materialidade da vida, à fome que sentia, ao cansaço trazido pelas caminhadas, ao correr do sangue nas veias, como se, com o passar do tempo, fosse descobrindo que apenas o aqui lhe importava. Ao ler as duas últimas notas, o leitor não vê a descrição, que nelas constam, do bater do coração durante a noite. Sente apenas o seu coração a bater na noite, mesmo que seja meio-dia. Quando, volvidos dez anos, voltou a casa, os dias foram passados com os netos. Ensinou-os a atirar com o arco e a cavalgar como se cavalo e cavaleiro fossem um único ser sobre o solo que pisavam.

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