Marlene Dumas - The white disease (1985)
Em vez disso, parte. O melhor é fugir para bem longe da vida que vivemos desde que nascemos. Instala-te em terras bem organizadas onde tudo é possível. Eu fugi, de facto. Apenas para descobrir, nas décadas que vieram, que estava enganada, que havia uma longa cadeia com elos enormes: o bairro estava ligado à cidade, a cidade a Itália, Itália à Europa, a Europa a todo o planeta. É assim que vejo hoje em dia: não é o bairro que está doente, não é Nápoles, é a terra inteira, é o universo ou os universos. A astúcia está em esconder e esconder de si mesmo o verdadeiro estado de coisas. (Elena Ferrante, Those Who Leave and Those Who Stay)
Esta doença que acomete a terra inteira, de que fala Elena Ferrante, e não apenas o lugar onde nasceu, parece conduzir o leitor para uma consideração de ordem social e política. A doença de uma vida que não se pode exprimir na sua plenitude porque a organização - ou a desorganização - social e a injustiça política o impede. Essa consideração, todavia, é muito limitada. Ao dizer que essa ideia atinge o próprio universo ou universos, Ferrante desvia o leitor de uma consideração meramente política e coloca-o perante a dimensão ontológica do mal, de um mal que atinge o mundo e que se manifesta nas relações e acções das pessoas.
Este desvio é significativo de uma coisa que me parece essencial. A arte - e o romance é uma forma de arte, a forma de arte especificamente moderna - está mais próxima da interrogação religiosa do que da moralidade política. A presença do mal no mundo é um assunto que diz respeito à arte, à filosofia e à religião, as três formas que, segundo Hegel, o espírito toma no seu caminho para si mesmo. E isto conduz-me a uma tese que já defendi várias vezes. O romance é a narrativa do homem expulso do paraíso. Com a queda e a expulsão de Adão e Eva do Jardim do Éden, o homem encontrou uma explicação simbólica para a entrada do mal no mundo. O cristianismo afirma o carácter glorioso da queda adâmica, pois ela permitiu a obra da redenção.
De um ponto de vista mais modesto, porém, podemos dizer que não há literatura sem essa queda e sem essa expulsão. O pior desta leitura, da minha leitura, é que ela desfaz todas as utopias sociais e políticas fundadas no desejo de construir um paraíso na terra. A terra está doente, de uma doença que não é possível curar através da política. Esta pode servir de analgésico, pode fornecer cuidados paliativos, mas a doença continuará a fazer o seu trabalho. A arte serve não para nos iludir sobre o verdadeiro estado de coisas com a promessa de um mundo melhor, mas para nos pôr em contacto, um contacto sensível e imagético, com aquilo que é. E aquilo que é, aquilo que nos questiona, aquilo nos põem fora de nós, é em primeiro lugar, antes mesmo do espanto pela grandeza do bem, a iniquidade.
Esta doença que acomete a terra inteira, de que fala Elena Ferrante, e não apenas o lugar onde nasceu, parece conduzir o leitor para uma consideração de ordem social e política. A doença de uma vida que não se pode exprimir na sua plenitude porque a organização - ou a desorganização - social e a injustiça política o impede. Essa consideração, todavia, é muito limitada. Ao dizer que essa ideia atinge o próprio universo ou universos, Ferrante desvia o leitor de uma consideração meramente política e coloca-o perante a dimensão ontológica do mal, de um mal que atinge o mundo e que se manifesta nas relações e acções das pessoas.
Este desvio é significativo de uma coisa que me parece essencial. A arte - e o romance é uma forma de arte, a forma de arte especificamente moderna - está mais próxima da interrogação religiosa do que da moralidade política. A presença do mal no mundo é um assunto que diz respeito à arte, à filosofia e à religião, as três formas que, segundo Hegel, o espírito toma no seu caminho para si mesmo. E isto conduz-me a uma tese que já defendi várias vezes. O romance é a narrativa do homem expulso do paraíso. Com a queda e a expulsão de Adão e Eva do Jardim do Éden, o homem encontrou uma explicação simbólica para a entrada do mal no mundo. O cristianismo afirma o carácter glorioso da queda adâmica, pois ela permitiu a obra da redenção.
De um ponto de vista mais modesto, porém, podemos dizer que não há literatura sem essa queda e sem essa expulsão. O pior desta leitura, da minha leitura, é que ela desfaz todas as utopias sociais e políticas fundadas no desejo de construir um paraíso na terra. A terra está doente, de uma doença que não é possível curar através da política. Esta pode servir de analgésico, pode fornecer cuidados paliativos, mas a doença continuará a fazer o seu trabalho. A arte serve não para nos iludir sobre o verdadeiro estado de coisas com a promessa de um mundo melhor, mas para nos pôr em contacto, um contacto sensível e imagético, com aquilo que é. E aquilo que é, aquilo que nos questiona, aquilo nos põem fora de nós, é em primeiro lugar, antes mesmo do espanto pela grandeza do bem, a iniquidade.
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