segunda-feira, 30 de abril de 2012

Escutar a palavra de José Matoso


Vale a pena ler cada palavra desta entrevista de José Mattoso ao Público. Percebe-se aquilo que socialmente se perde com a erosão do cristianismo nas sociedades modernas, percebe-se como a vida fica mais desumana, mais sem sentido, percebe-se como o pior de nós tem um espaço mais amplo para se manifestar. Entrevista mostra também que à Igreja Católica seriam necessários, no activo, mais e mais homens ou mulheres como José Mattoso. Inteligência e cultura nunca fizeram mal. Mas também não sãp inúteis a capacidade crítica e o exercício da razão. Homens como José Mattoso sempre podem contribuir para que a Igreja Católica estabeleça, nos dias de hoje, uma ponte firme entre o princípio de obediência que impõe aos crentes e o princípio crítico que os tempos modernos erigiram como ideia central da vida. 

Se a relação entre obediência e crítica, entre Tradição e Modernidade, é uma questão fundamental, há uma outra que o historiador aborda quando diz pretender "dedicar-me a descobrir o valor da palavra, o autêntico significado da palavra, no sentido de linguagem, de expressão da realidade, no sentido de logos. Encontra-me na meditação da palavra como expressão do mundo, da existência, da história, e descobrir-lhe um sentido". Esta necessidade de meditação da palavra é o sintoma de uma inclinação contemplativa, a qual, fora dos mosteiros, parece não ter lugar ou aceitação. No entanto, há no Ocidente, apesar de toda a sociedade estar infestada pela doença do activismo, inúmeras pessoas que estão disponíveis ou necessitam desta escuta da palavra, deste exercício de contemplação, mesmo se as suas vidas decorrem no mundo e são, em grande medida, vidas entregues à acção. Este espaço não é o dos grupos de leigos que partilham a fé, mas de aqueles que - para além da fé que possuem ou não - sentem o apelo do mistério do ser, sentem o apelo à sua meditação, desejam escutar o que a palavra lhe traz sobre esse mistério. Nunca como hoje, o mundo precisou, no seu seio e presentes na vida quotidiana, de contemplativos.

domingo, 29 de abril de 2012

Missa Pro Defunctis (III)


3. Graduale

Adormeceram os pássaros no jardim
e os rebanhos perdidos sussurram entre oliveiras.
A queda de água secou
na paisagem descolorida do inverno.

Destruída, a memória voltará,
com os seus grandes olhos mortais,
para devorar a voz vinda do abandono
a que votaram as pequenas coisas
que um dia iluminaram o amor.

O coração aberto pela sede contrai-se,
pulsa inquieto sob o peso da eternidade:
fora um gerânio ou frágil violeta
e tudo brilharia na perpétua luz do instante.

------------
Missa Pro Defunctis é um ciclo de poemas escrito em Setembro e Outubro de 2011. É constituído por 21 poemas e pretende ser uma meditação poética sobre a nossa situação actual, meditação que acompanha a estrutura de um Requiem na tradição religiosa católica. Será publicado integralmente neste blogue nos próximos tempos, embora sem periodicidade diária ou qualquer outra.

sábado, 28 de abril de 2012

Paul Cadden, o retorno da mimesis?

Paul Cadden - India

Serão estes desenhos a lápis o sintoma do regresso da arte à imitação da natureza? Há muito que não se pode falar de arte como uma unidade que se move, inteira e completamente, em direcção a uma mesma finalidade. A essa fragmentação do topos artístico deve aliar-se a complexidade do conceito de mimesis (imitação).  Só equivocadamente se pode ler o conceito aristotélico como mera reprodução da natureza. A imitação sempre foi uma forma de intensificar o real. E é isto que, segundo o Público, pretende Paul Cadden. A expressão utilizada não é intensificar o real, mas uma outra bastante interessante: intensificar o normal. Para o autor, isso significa carregar o impacto emocional.

Há todavia aí um jogo muito complexo que ultrapassa a dimensão da afectividade. Esta estratégia hiper-realista conduz a uma dupla mimesis. Uma imitação da natureza e uma imitação da fotografia. Se toda a mimesis é já uma refiguração e transfiguração daquilo que percebemos como realidade (veja a mimesis da acção na tragédia, segundo Aristóteles), esta dupla mimesis do percebido como real e fotografado como tal obriga o espectador e repensar o que considera real. Cadden propõe o conceito de normal. Intensificar o normal significa, para além da questão afectiva, um questionar ontológico e epistemológico das coisas. Que coisas se dão à nossa observação? Realidades ou normalidades? A afirmação kantiana de que nós não temos acesso às coisas-em-si mas apenas aos fenómenos recebe aqui uma nova confirmação. O normal é apenas aquilo que é corrente ou vulgar observar, mas isso não significa que esse normal seja a expressão da realidade em si. Intensificar, de forma hiper-realista, o normal é mostrar que ele é um campo dado à metamorfose do olhar, significa que cada imagem sensorial possui uma indefinição e uma plasticidade que a torna aberta. Este aparente retorno à mimesis só pode ser compreendido no âmbito desta consciência de que o normal não é o real, mas apenas uma definição estatística da forma como nós olhamos, na vida quotidiana, para as coisas.

Cormac McCarthy, A Estrada


As pessoas estavam sempre a preparar-se para o futuro. Eu não acreditava nisso. O futuro não se estava a preparar para elas. O futuro nem sabia que elas existiam (p. 112).

Há uma estreita relação entre o acto de narrar e a compreensão da temporalidade. Tempo e narrativa são duas formas de discurso, e a narrativa romanesca é um discurso que capta, inscreve e cartografa o decurso - i e, o discurso - do tempo. A Estrada (The Road), um romance de Cormac McCarthy publicado em 2006, é uma estranha experiência devido ao espaço tomar o lugar do tempo como elemento articulado pela  narrativa. Se o tempo é enigma que a actividade romanesca tenta estruturar, para dele se ter consciência, o espaço, mesmo se desconhecido, é objecto de uma descrição como se ele estivesse articulado a priori, restando à arte o papel de o descrever. Ora A Estrada modifica esta situação. O tempo pura e simplesmente passa a um pano de fundo quase residual - como se depreende da citação que torna claro o divórcio do tempo com as pessoas -, onde uma ou outra analepse o manifesta, enquanto o espaço, tornado enigmático pelos acontecimentos, precisa agora de articulação narrativa para se tornar presença à consciência.

Após uma catástrofe que devastou a terra, pai e filho, ainda criança, fazem-se à estrada em busca do sul. A mãe desiste, a dada altura, perante a aparente inutilidade da viagem e suicida-se. A vida civilizada desaparecera e a vida, no sentido biológico, também. Restavam alguns homens e as ruínas das cidades que o fogo não tinha reduzido a cinza. Cormac McCarthy descreve aquilo que as teorias contratualistas do século XVII, nomeadamente a de Thomas Hobbes, chamavam estado de natureza. Um estado natureza que não é um imaginário estado anterior ao contrato social e à constituição de sociedades, mas uma irónica e trágica situação posterior à vida civilizada e à existência de sociedades. O que restava de seres humanos sobre a terra não formava uma sociedade, mas a encarnação dos princípios da guerra de todos contra todos e do homem como lobo do homem. No romance de McCarthy, esta ideia não é uma mera metáfora mas descrição literal da nova situação sobre a terra. Finda a vida biológica nesta, desaparecidos plantas e animais, restava para alimentar os homens remanescentes da catástrofe a comida conservada e outros homens, em especial crianças. O espaço é cartografado a partir desta nova realidade. Pai e filho viajam para sul, mas o importante é evitar o contacto com outros seres humanos, procurar lugares onde se ocultem, onde possam fazer fogo sem serem avistados. A escrita espacializa-se para reconstruir o topos que a catástrofe desfizera, para reconfigurar sentido às cidades e campos devastados, sentido sempre ligado à sobrevivência e à busca de comida.

Se o espaço é fundamental, já o tempo perdeu sentido. O calendário desapareceu, desapareceram as divisões da temporalidade. Não sabem, pai e filho, o dia da semana, o mês ou o ano. Escrito numa altura em que ainda se ouviam ecos da tese do fim da história, de que Francis Fukuyama foi a última voz, este romance representa um efectivo ensaio no pós-história. A tese de Fukuyama tem, aparentemente, pouco a ver com isto. Refere-se à ausência, depois da morte do fascismo e do socialismo, de uma alternativa civilizacional ao liberalismo. O que Cormac McCarthy mostra é que a pós-história é uma distopia, um espaço privado de tempo, uma quase impossibilidade de vida, muito longe dos devaneios utópicos de uma sociedade liberal consumada. Não quer dizer que alguns traços do liberalismo não permaneçam na nova situação. A concorrência pela possibilidade de viver torna-se drástica e o espaço para a solidariedade entre os homens, para o espírito de comunidade e do seu bem, é nulo.

A Estrada pode ser lida assim como uma terrível alegoria das sociedades liberais, certamente sobre a vida nos Estados Unidos. Esta alegoria tem por referente metafórico a devastação comunitária. Os centros de poder legítimos são substituídos pela força de grupos nómadas que pura e simplesmente se unem para caçar outros homens como fonte de alimento. Há um estranho paralelismo entre estes grupos do romance distópico de McCarthy e os novos poderes mundiais, poderes sem rosto, nómadas, evanescentes, que administram a vida planetária através do espaço virtual. Poderes que actuam como caçadores furtivos e cujo objecto de caça são os próprios homens, os seus rendimentos e os seus parcos haveres. A Estrada manifesta-nos, ou profetiza, o significado de viver quando a comunidade é destruída e devastada. A catástrofe que destruiu a civilização na Terra nunca é identificada pelo autor. Foi um acontecimento. Foi o acontecimento que deu origem ao novo mundo, mas ele fica sempre impreciso. Catástrofe nuclear? Não há uma única referência ao medo de radiações. A catástrofe inicial e o fogo que, posteriormente, reduz parte substancial do planeta a cinzas podem ainda ser lidas como metáforas do fogo interior, da razão que o homem transporta em si, mas de um fogo interior e de uma razão pervertidos. A perversão desse fogo doado por Prometeu aos homens talvez seja a verdadeira causa que gerou a situação descrita. Não é a perversão da razão o princípio de devastação das comunidades humanas?

A Estrada é o romance de uma viagem. Quando na cultura ocidental a literatura toca a temática da viagem, o modelo prototípico que de imediato nos ocorre é o retorno de Ulisses a Ítaca. Contudo, há uma outra viagem que tem um papel central na cultura do Ocidente. Esta é narrada em Mateus 2: 13-23. Trata-se da fuga da sagrada família para o Egipto, depois da adoração dos magos e perante a ameaça de Herodes matar o Menino. Não é a de um retorno à pátria como a de Ulisses, mas uma viagem, dentro da economia e da história da salvação, de protecção do princípio de esperança representado pelo filho da Virgem Maria. Também a deslocação para o sul narrada por Cormac McCarthy tem esse sentido. É uma variação desse modelo, estranha variação onde a mãe, em desespero, escolhe a morte em vez de prosseguir caminho, e abandona o cuidar da criança ao pai e a esperança ao próprio filho. O rapaz é levado para um sítio onde talvez fosse possível fugir ao cruel destino de ser devorado por outros homens. Isso não seria apenas a salvação da criança, mas permitiria a preservação do fogo, pois ela era o transportador do fogo - fogo da razão e fogo do bem - oferecido aos homens por Prometeu, um fogo novamente puro e inocente, não pervertido pelo uso egoísta e solipsista das sociedades contemporâneas. Que o pai morra à chegada a esse sul mítico, mas também devastado, e o rapaz encontre casualmente uma família de acolhimento representa um princípio de esperança para os homens, apesar da devastação cruel que sobre eles caiu. A viagem é, sem que alguma vez tal se refira, um exercício sobre as virtudes teologais. O amor do pai pelo filho alimentou a fé que permitiu preservar a esperança.

Cormac McCarthy (2007). A Estrada. Lisboa: Relógio d'Água. Tradução de Paulo Faria.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Origens do ateísmo


Este estudo divulgado pelo Público levanta uma hipótese interessante. A crença religiosa decresce à medida que se afirma o pensamento analítico. A investigação está na linha de outras que mostram a crença religiosa ligada ao pensamento dito intuitivo. O jornal titula, como se fosse uma conclusão, que as raízes do ateísmo estariam no uso analítico da razão. Porventura, isso pode ser verdade. O uso do entendimento na análise tem o condão de dissecar a realidade, cindindo o todo em partes, construindo particularidades. Isso choca, claro, com a crença religiosa que é de carácter holístico.

Parece-me, no entanto, que o problema não está muito bem posto. Coloca a fé religiosa fundada em formas de pensamento, a forma analítica versus a forma intuitiva ou sintética. Nem vale a pena ir às várias tradições místicas e sapienciais da humanidade para contestar este ponto de vista. Basta recorrer a Kierkegaard, à sua concepção de fé como compromisso existencial com o Absoluto. A questão religiosa não está ligada, em primeiro lugar, ao pensamento, mas à existência, a um compromisso radical com uma dada forma de viver a vida e não tanto de a conceber intelectualmente. A raiz do ateísmo encontra-se nesse momento em que a fé religiosa deixa de ser um compromisso com a vida e o Absoluto e passa a ser uma questão de pensamento. De certa forma, as teologias - com as suas metodologias analíticas - já são formas de ateísmo ou, pelo menos, preparam o ateísmo. 

Um caso exemplar



A escola da Fontinha, no Porto, abandonada há anos, foi ocupada o ano passado por um grupo de cidadãos para desenvolver o projecto Es.Col.A. Os dinamizadores tentaram chegar a acordo com o município, cumpriram a parte que este lhes exigiu, mas a câmara portuense, no lugar de cumprir a sua, decidiu despejar o projecto e fechar as instalações. Que fazia esse gente numa escola abandonada? Além de a recuperar, dedicava-se a uma séria de malvadezas: apoiava o estudo das crianças daquela zona deprimida do Porto, organizava actividades que iam do xadrez à música, passando pela leitura, artes marciais, etc., em conformidade com as necessidades da população local.

Faziam tudo isso sem subsídios do Estado ou do município. Criavam riqueza social, contribuíam para integrar as novas gerações na sociedade e evitar a queda na delinquência, e permitiam aos mais velhos o sentimento de pertença à cidade e a uma comunidade viva. Faziam ainda outra coisa horrorosa: mostravam que ter iniciativa era coisa boa, evidenciavam que trabalho e iniciativa geram riqueza, e sublinhavam que os cidadãos podem dirigir a sua vida sem estarem sempre dependentes do Estado.

A resposta da câmara portuense tornou claro o que as elites políticas entendem por liberalismo. A via liberal assenta toda ela na iniciativa dos indivíduos, na independência perante o Estado, no valor do trabalho. As elites políticas portuguesas, mesmo aquelas, como as do PSD, que se dizem liberais, não acreditam em nada disso. Acreditam que alguns podem ter iniciativa – e até são protegidos pelo poder da concorrência que o liberalismo defende – e que os outros, a turbamulta e a ralé, têm a função de estar à disposição de forma quase gratuita daqueles a quem o poder dá o direito à iniciativa. Quem não gosta, que imigre.

Não há presidente de câmara ou governante que tolere princípios liberais. É insuportável que as pessoas não dependam dos poderes, que sejam autónomas e ajam por si mesmas. O poder político, local ou nacional, mata tudo o que não controla e de onde não pode tirar apoio para os seus fins. Numa perspectiva liberal, não interesse se a iniciativa é privada ou comunitária, o que interessa é que essa iniciativa seja independente do poder, que seja livre. A nossa direita – para não falar da esquerda – odeia a iniciativa, odeia a independência, odeia a liberdade cívica, odeia o liberalismo. De súbito, o projecto Es.Col.A e o seu fim iluminam as raízes da nossa miséria: as elites políticas não suportam nem permitem a independência das pessoas. Um caso exemplar.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Ser espectadores


Julgo que esta fotografia é de Alfredo Cunha, mas não consegui confirmar e, por isso, não tenho a certeza, apesar de ele ter uma fotografia, deste mesmo acontecimento, tirada do mesmo ângulo. Estamos em pleno Chiado, no dia 25 de Abril de 1974. Quando digo estamos refiro-me ao simples facto que o que somos enquanto comunidade está ali na mais crua exposição. Os militares estão em posição de combate, parece iminente um confronto. Mas alguém acredita no que está a acontecer? Alguém se mostra comprometido com a situação? Sei que vou ser desagradável com o que vou dizer, pelo menos para as crenças de muitos. As fotografias que mostram o envolvimento de multidões com os soldados ou que multiplicam a iconografia do cravo no cano da espingarda não são falsas, mas são inautênticas.

A inautenticidade não resulta de as situações retratadas não terem existido, mas da própria existência dessas situações. A exuberância da adesão aos acontecimentos do 25 de Abril é apenas um fenómeno de superfície. Ele acontece a partir do momento em que se pressente a vitória do movimento revoltoso. A inautenticidade também não deriva de as pessoas estarem a falsificar os seus sentimentos. Não estavam. A alegria pelo derrube da ditadura era efectiva. A inautenticidade refere-se antes à falsa relação que as pessoas têm com a res publica. A fotografia tem o mérito de revelar a natureza dessa relação. Homens, mulheres e crianças estão ali, mas não pertencem ao palco. São meros espectadores, estão a ver o que aquilo dá. 

Que se jogue ali o destino da comunidade, da liberdade e do tipo de vida que se quer é algo que não diz respeito aos espectadores. Estão lá para ver e esperam apenas que o espectáculo não os desiluda. Espectáculo? Não se joga ali a vida e a morte dos homens? Não poderá correr, em breve, sangue naquelas ruas? Os espectadores não acreditam nisso, pois se essa fosse a sua crença não estariam ali, não deixariam que as crianças se sentassem no chão ao lado dos soldados prontos para combate. O momento mais decisivo da história do país é percebido como pura representação que ninguém parece considerar uma situação real onde pode perder a vida, quer dizer, onde a vida se joga.

Durante a ditadura, a maioria silenciosa dos portugueses limitou-se a ver o que acontecia e esperar que não lhe acontecesse nada. Passada a efusão sentimental do derrube do regime, tudo começou a voltar ao que era. Os assuntos públicos são-nos estranhos, são problemas deles - dos políticos - mas não nossos. Nós pagamos para ver, não para tomar parte, ter opinião, decidir o rumo das coisas. Esperamos que nos dêem alguma coisa, mas se não derem, paciência. E se tirarem o que deram também isso não nos diz respeito. Viemos para ver, não nos macem. Temos mais que fazer e a vida é outra coisa. O interesse da fotografia reside em ter captado em plena acção revolucionária a natureza geral da relação dos portugueses com os assunto públicos. Está ali tudo.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Chegou tarde


Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
                     
                                    (Sophia de Mello Breyner Andresen)

Chegou tarde. Não apenas pelo facto de nunca ser cedo para o reino da liberdade, mas por um outro motivo. Chegou tarde para as nossas ilusões, para o tempo dilatado que sempre é necessário para cuidar delas e as amar. A história é cruel para quem está na periferia. O tempo que Cronos oferece aos que foram destinados à distância e à lonjura é sempre demasiado escasso. A crueldade da história é sorrateira, manhosa, chocarreira. Há 38 anos, abriu-se o dique e um mar de gente irrompeu pela cena. Esse era apenas o "dia inicial inteiro e limpo". O que vinha depois faz parte das grandes ilusões que estavam à porta desse dia. Duas grandes ilusões, a da revolução socialista e a edificação do socialismo, a da entrada para a Europa e passar a pertencer ao clube do centro rico e culto. Talvez se tenha imaginado que o espaço não existia e que os Pirinéus seriam terraplanados. Não foram e o espaço sempre existe, descobrimos agora.

A crueldade da história está no carácter tardio do dia. Se tivesse sido em 45 ou mesmo em 50, teríamos tido mais tempo para viver nesse mundo - já tão afastado que parece uma miragem - de uma Europa equilibrada, culta, rica e que, para o resto do mundo, representava uma reencenação do paraíso na Terra.  Perdemos quase trinta anos. Chegou tarde e, quando chegou, a história cruel preparava já o fim dessa ilusão que era a Europa (o socialismo só foi ilusão para alguns, mas a Europa foi um sonho largamente partilhado). Faltavam apenas 15 anos - o que são 15 anos? - para a queda do muro de Berlim e, em consequência do acontecimento, para o desmoronar desse paraíso - inadmissível paraíso, sabemos hoje -, para o fim dessa doce ilusão. Hoje mal protestamos, pois o 25 de Abril chegou demasiado tarde e não tivemos tempo para consolidar as nossas ilusões, para as cuidar e para as amar, como se ama um filho. 

Chegou tarde e já estávamos cansados. Faltou-nos o talento e o discernimento de espírito, faltou-nos desconfiar da história - essa puta que se deita com quem mais lhe paga -, faltou-nos, e falta-nos, a desmesura da paixão pela liberdade. Chegou tarde, mas foi "a madrugada que eu esperava / o dia inicial inteiro e limpo". 

terça-feira, 24 de abril de 2012

Missa Pro Defunctis (II)


2. Kyrie eleison

O corpo despedaçado de olhos pendentes,
rugas, arestas de aço
e a doce harmonia da manhã sulcada
pelo uivo pneumático da loba no cio.

O silêncio apodera-se do rosto,
enquanto os suplicantes arrastam o sangue
– dos joelhos nasce, um rio na infância –
e esperam a voz vinda da pátria,
tão avara para quem de palavras precisa.

Os que muito amaram sentem na carne
o desperdício do seu amor
e erguem as mãos à planície baldia do céu.

Uma chuva de granizo vem do alto
e na terra não há quem cante o teu nome.

------------------
Missa Pro Defunctis é um ciclo de poemas escrito em Setembro e Outubro de 2011. É constituído por 21 poemas e pretende ser uma meditação poética sobre a nossa situação actual, meditação que acompanha a estrutura de um Requiem na tradição religiosa católica. Será publicado integralmente neste blogue nos próximos tempos, embora sem periodicidade diária ou qualquer outra.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

O enigma da esfinge

Francis Bacon - Sphinx

O enigma da esfinge não reside na estranha questão que o monstro dirigia aos viandantes - que animal caminha com quatro pés pela manhã, dois ao meio-dia e três à tarde e é mais fraco quando tem mais pernas? -, nem no facto de ele devorar quem não decifrasse o quebra-cabeças. Tão pouco reside na sagacidade de Édipo, o decifrador do mistério. O enigma da esfinge é o enigma do homem e centra-se na insuficiência do reconhecimento de si para saber quem se é.

A esfinge não é mais do que a projecção do homem. Quando Édipo chega a Tebas e é confrontado pelo monstro está a ser confrontado por si mesmo. A resposta que ela dá significa apenas que sim, que ele é um homem, que se reconheceu enquanto tal. A vitória de Édipo é muito semelhante àquela que, nas arenas de Espanha, os toureiros obtêm - quando a obtêm - sobre os touros. O toureiro ao matar o touro é a uma parte de si mesmo que mata. O touro é apenas a projecção dos instintos mais selvagens do homem que a arte deve dominar e vencer. Também a esfinge edipiana tem esse sentido, a projecção do mais tenebroso que há em cada um de nós. A sagacidade de Édipo, como a arte do toureiro, foi suficiente para o auto-reconhecimento. A resposta que Édipo dá à esfinge é a realização consumada do aforismo que estava inscrito no templo em Delfos: conhece-te a ti mesmo.

O desenrolar da tragédia de Édipo - o casamento com a mãe e a geração de filhos que são os seus próprios irmãos - torna evidente que essa sagacidade apolínea é insuficiente. Édipo sabe que é um homem, mas ainda não sabe de facto quem é. Ele compreendeu que se distingue da natureza selvagem, que pertence a uma outra ordem, na qual a natureza dá lugar à cultura e à vida civil. Cultura e civilização, porém, não são o fim último e nem sequer bastam para chegar à verdade de si mesmo. Édipo foi sagaz e ao mesmo tempo, apesar de ver, foi cego para a sua efectiva condição. Viu que pertencia ao campo da cultura e da vida cívica, não percebeu que, para além desse campo, se estende um vasto domínio que nem a mais apurada visão é suficiente para aperceber.

Só quando, no desenrolar da tragédia e na descoberta do involuntário incesto, Édipo se cega, é que começamos a compreender o enigma da esfinge. O reconhecimento de mim mesmo enquanto homem é ainda um falso e ilusório reconhecimento. Isso inscreve o self (o si mesmo) no domínio da cultura e da vida política e civil, mas fá-lo pela supressão de tudo o que rodeia a cultura, seja a tenebrosa natureza selvagem projectada na esfinge, seja o que poderíamos chamar sobrecultura ou sobrenatureza. O efectivo enigma da esfinge está na necessidade de o self se tornar cego para que possa ver, de precisar de se despojar do conteúdo que natureza e cultura põem dentro de si para se descobrir na sua verdadeira condição, na condição de pobre mendicante ao cimo da Terra. Esta condição é essencialmente diferente daquela que resulta da resposta dada à esfinge. Esta vem de um exercício sagaz da razão, mas a condição de indigente resulta de uma experiência real da condição humana.

O enigma da esfinge diz-nos então que só descobrimos aquilo que somos - o significado último de ser homem - não pela sagacidade racional, mas pela experiência directa da própria existência. Para saber o que é um homem não basta usar a razão, é preciso ir para além dela, para além da vida civilizada. O primeiro reconhecimento é, apesar de necessário, um exercício limitado e, se confinado a ele mesmo, ocioso. É preciso que o self se desconheça, que perca a crença em si mesmo, na sua existência e na sua condição. Só o desconhecimento abre caminho para a sabedoria e só aquele que superou a ignorância originária no reconhecimento e este no desconhecimento é não só sagaz mas verdadeiramente sábio.

Marine Le Pen


A votação expressiva da senhora Le Pen, com os inevitáveis sinais perigosos que envia, não pode deixar de ser lida como o resultado das políticas que têm ocupado o poder em França e na Europa nas últimas décadas. A subida dos extremos (também Mélenchon teve um bom resultado), que valem agora um terço do eleitorado francês, é o sinal mais claro da falência da moderação e dos partidos que constituem o centro político francês. Não é impunemente - a não ser em Portugal - que se rasga o pacto social-democrata que vigorava tacitamente na Europa. Não é impunemente que se trata com ligeireza os problemas de integração de pessoas provenientes de culturas com valores radicalmente diferentes dos da cultura de acolhimento. Não é impunemente que se deixa alastrar o sentimento de desapossamento - e este sentimento é, curiosamente, partilhado por muito gente de origens bem diferentes - entre as camadas populares. 

Há nas elites políticas democráticas uma cegueira, para não dizer uma irresponsabilidade, para as realidades desagradáveis e que são difíceis de resolver ou mesmo de lidar com elas. Essas realidades tornam-se zonas de obscuridade onde os extremos se sentem à vontade. O problema principal, contudo, é que a zona obscura tende a crescer com os processos de globalização e a já eterna crise europeia. Ela é engordada pelas classes médias que tinham nascido no pós guerra e que agora são expulsas daquilo que por cá alguns tontos chamam zona de conforto. E quanto mais pessoas forem expulsas da zona de conforto maior é o rio onde a senhora Le Pen - e mais ela do que o senhor Mélenchon, como se viu - pode pescar. O Presidente eleito a 6 de Maio e os partidos moderados deveriam pensar muito seriamente por que razão um terço dos franceses opta por candidatos extremistas e populistas. A França não é aquilo que os franceses imaginam que ela é, mas na Europa a França é sempre um sintoma do estado de coisas.

domingo, 22 de abril de 2012

Mikhaíl Bulgákov, A Guarda Branca


A generalidade dos romances acabam por se inscrever, de uma forma ou de outra, na história dos homens. A Guarda Branca, de Mikhaíl Bulgákov, toma essa história não apenas como pano de fundo longínquo, mas como o motivo central em torno do qual gira a intriga. Não se trata, todavia, de um romance histórico, mas da exploração do impacto da história na vida das personagens, os irmão Turbin, e da forma como ela desconstrói e reconstrói as identidades individuais e testa crenças e convicções, ao desagregar uma dada figura do mundo e fazer emergir uma outra, radicalmente diferente daquela que parecia constituir a própria e única realidade possível.

Os acontecimentos romanescos estão situados em Kiev, capital da Ucrânia, em finais de 1918. Nestas paragens, o rio da história entregava-se, naqueles dias, a grandes e perigosos redemoinhos, águas terríveis que nem o inverno russo conseguia gelar. Acordes finais desse delírio de sangue, aço e lama que foi a I Grande Guerra, onde a ordem que começara a desagregar-se em França, nos anos que se seguiram à Revolução de 1789, encontrava a sua definitiva certidão de óbito. Esse requiem, nas terras russas ou onde a influência russa chegava, era acompanhado pelos acordes triunfantes dos hinos que o exército vermelho, sem esquecer o sangue, o aço e a lama, fazia entoar, acreditando estar na aurora do mundo. É a natureza excepcional do ano que abre o romance: Era grande e terrível aquele ano, o de 1918 após o nascimento de Cristo e o segundo após o começo da revolução. Abundante de sol no verão e de neve no inverno; e dois astros brilhavam muito altos no céu: a Vénus nocturna, estrela de pastores, e Marte vermelho e trémulo.

Não é, todavia, a tensão entre o amor e a guerra que está em jogo. A referência a Vénus funciona quase como um ideal longínquo naqueles dias onde a presença de Marte era excessiva, preenchendo todas as forças anímicas dos homens. A referência ao brilho de Vénus é, antes de mais, a indicação daquilo que, secretamente, ecoava no coração humano. Os irmãos Turbin - Aleksei, Elena e Nikolka - são partidárias da velha ordem czarista e vêem com preocupação a frágil situação de Kiev. O amor encontra-se em estado de suspensão. O governo do hetman Pavlo Skoropadsky, um homem de mão dos ocupantes alemães, tenta congregar forças para fazer frente à ameaça nacionalista ucraniana comandada por Simon Petlyura e, também, ao exército vermelho. Os acontecimentos narrados centram-se nos dias em que as forças nacionalistas ucranianas tomam conta de Kiev.

A fuga dos alemães e a cobardia do Estado-Maior do Exército Branco deixam a cidade nas mãos dos nacionalistas. Bulgákov expõe detalhadamente o conflito que cinde as forças leais ao czar e aos princípios aristocráticos. O que se joga naquele turbilhão é menos o confronto militar mas a desagregação do conceito central da ordem aristocrática, a honra. A honra e a desonra jogam-se perante a adversidade, o inimigo e a morte. As chefias fogem vergonhosamente, abandonando e traindo as forças leais à velha ordem. O contraponto é dado pelos Turbin e alguns amigos. Contudo, se a cobardia atraiçoa de forma infame homens, ideias e deveres, a honra surge já com um valor inútil, pertencendo a um passado condenado a não voltar. As forças de Simon Petlyura acabarão derrotadas pelo exército vermelho e pelos novos valores, valores ainda em formação e retratados quase de forma surrealista, como emergência de um sonho, e que trazem, por instantes, um novo sentido sobre a terra.

A história surge assim como uma grande catástrofe natural. A questão central é sobreviver sem perder demasiado a face, recompondo a vida, até que ela, a vida, se esqueça de nós e dos valores que encarnámos e que, possivelmente, guardámos como uma recordação de um passado morto, mas que se visita nas horas de nostalgia. Um dos problemas que se podem colocar neste tipo de narrativa é o da verdade. Será que a narrativa de Bulgákhov retém a verdade histórica dos acontecimentos? A questão tem dois aspectos. O primeiro diz respeito à própria noção de verdade histórica. Se há coisa que é disputada em história é o locus a partir do qual se pode instituir um regime veridiccional que permita ajuizar da verdade ou não das narrativas históricas - essas mesmas que pretendem o estatuto de cientificidade. Este é um problema que pertence à epistemologia da história ou a uma meta-história, não diz respeito ao romance.

Se narrativa romanesca e narrativa histórica se cruzam, como é o caso de A Guarda Branca, o elemento desse cruzamento é o tempo e não a verdade. São duas formas de tratar a temporalidade, de a estruturar através do discurso. Seja qual for o princípio veridiccional que se adopte para julgar da verdade das narrativas históricas ele será sempre estranho à ficção romanesca. O facto de um romance ser ficção desliga-o de um compromisso com a verdade? Será a verdade uma virtude apenas dos discursos científicos e cognitivos? A resposta a ambas as questões é não. No entanto, o locus veridiccional da narrativa romanesca reside numa atitude do leitor sublinhada por Coleridge: a suspensão da descrença. É esta atitude que determina a verdade ficcional.

A verdade de A Guarda Branca e dos acontecimentos que envolvem os irmãos Turbin não se encontra na adequação da narração a factos supostamente ocorridos, mas na capacidade que Bulgákhov tem de levar o leitor a suspender a descrença na narrativa. O que está em jogo não é se algo se passou daquela maneira, mas se está narrado de forma a que se acredite que se poderia ter passado. É uma questão artística e não factual. E Bulgákhov, neste seu primeiro romance, é já um artista consumado. Quem ler o episódio da milagrosa cura de Aleksei - condenado à morte pela impotência da medicina - devido à oração de Elena à Virgem, em momento algum sente qualquer necessidade de voltar a um regime de verdade que questione o milagre. O conjunto de processos narrativos a que Bulgákhov lança mão constroem a verdade de uma ficção. A verdade ficcional é também ela uma ficção, no sentido de uma fabricação que nos leve a suspender a descrença e a confrontar-nos com o texto e, para falar à maneira de Paul Ricoeur, o mundo que ele propõe; neste caso, olhar as metamorfoses de si-mesmo, de vários si-mesmos, sob a tempestade da história.

Mikhaíl Bulgákov (2011). A Guarda Branca. Lisboa: Editorial Presença. Tradução, introdução e notas de Nina Guerra e Filipe Guerra.

sábado, 21 de abril de 2012

Missa Pro Defunctis (I)

1. Introitus: requiem

Deixemo-nos de preliminares.
As rosas estão cansadas,
e as mãos abertas não servem
para apagar a noite quando chega.

O gorgulho tomou conta da casa
e o salitre devora os corpos.

Basta que abras as pernas.
De que serve o consolo,
se tudo se afunda?

Melhor será esquecer promessas
e cuidar dos crisântemos –
o dia acabou de chegar.

----------------
Missa Pro Defunctis é um ciclo de poemas escrito em Setembro e Outubro de 2011. É constituído por 21 poemas e pretende ser uma meditação poética sobre a nossa situação actual, meditação que acompanha a estrutura de um Requiem na tradição religiosa católica. Será publicado integralmente neste blogue nos próximos tempos, embora sem periodicidade diária ou qualquer outra.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Sem dinheiro para estudar


A minha crónica semana no Jornal Torrejano.


A SIC, na passada segunda-feira, transmitiu um trabalho sobre o abandono da Universidade por parte de alunos sem rendimentos. A reportagem é um retrato fiel do país e dos profundos equívocos das políticas educativas seguidas a partir dos anos noventa do século passado, senão mesmo antes. Descobri que a justiça social em Portugal não decorre da responsabilidade jurídica individual, mas de concepções metafísicas que definem as maldições como hereditárias. Jovens estudantes, maiores de idade, cujos pais tenham dívidas à segurança social não são ilegíveis para receber bolsa de estudo. Se a Constituição da República não justificar este procedimento, certamente que a Bíblia o fará: Deus, assim dizem, reserva para os filhos o castigo do pai (Jó 21:19).

O pitoresco deste caso, todavia, não deve ofuscar o essencial da reportagem. Há um processo de elitização social – não intelectual – da Universidade. Jovens oriundos de famílias com poucos recursos terão cada vez mais dificuldade em estudar. A restrição alarga-se às classes médias fustigadas pela crise e pelas políticas governativas. O governo está a responder, através da selecção económica e social, a um problema real, o da incapacidade do tecido empresarial absorver os jovens com formação superior. Esta forma política de agir – iníqua e preguiçosa – resolve um problema não pela compensação do mérito, mas pela humilhação dos mais pobres e das classes médias em queda. Se o caminho da Universidade for o da redução do número de alunos, a selecção destes deverá ser feita apenas pelo mérito, havendo mecanismos sérios para ajudar estudantes sem recursos. De fora, deverão ficar aqueles que manifestem menos capacidades para o ensino superior e não os alunos pobres.

A iniquidade política do processo tem outra face. Muitos dos cursos existentes são absolutamente irrelevantes do ponto de vista profissional e cultural. Foram o resultado de  estratégias seguidas pelas instituições de ensino superior para captar alunos e sustentar os seus corpos docentes. A maioria dos alunos da reportagem da SIC frequentava cursos deste tipo. Se os recursos públicos são escassos, o Estado deveria ter há muito estabelecido regras muito rigorosas no reconhecimento de cursos e no número de vagas. Demitiu-se. Muito gente sabia que uma catástrofe se aproximava, mas a irresponsabilidade política deixou o processo decorrer até ao descalabro actual: licenciados sem trabalho e alunos sem dinheiro para estudar. 

quinta-feira, 19 de abril de 2012

O desvario do fanatismo

Marc Chagall - O Sacrifício de Isaac


Há muito que se tinha compreendido que o governo ia muito para além da mera questão política. Passos Coelho e Vítor Gaspar visam uma regeneração moral dos portugueses. Gente pecadora, deve agora ser duramente castigada com a pobreza e a indigência por ter imaginado que tinha direito a uma vida decente. Perante os avisos do FMI (do FMI, note-se) para as catastróficas consequências das actuais políticas, Vítor Gaspar mostra uma crença digna de uma fundamentalista evangélico. O fanatismo do ministro chega ao ponto de afirmar que as pessoas estão dispostas a sacrificar-se pelo programa da troika. Quando os negócios públicos e a gestão da vida de uma comunidade está entregue a fanáticos e moralistas só podemos esperar o pior. Ao contrário de Abraão que escutou o anjo e não sacrificou o Isaac, Gaspar e Passos dispensam a intervenção angélica do FMI. O pecado e a arrogância do povo português foi de tal ordem que a estes justiceiros morais não resta outra alternativa que não seja a desobediência e proceder ao sacrifício dos portugueses no altar da seu fanatismo liberal. Talvez um dia destes Vítor Gaspar descubra que o cordeiro não está para ser imolado à sua distopia. 

quarta-feira, 18 de abril de 2012

A inutilidade útil da História

Clément-Auguste Andrieux - La bataille de Waterloo. 18 juin 1815 (1852)

Há na reflexão histórica - alguns, herdeiros tardios do positivismo, chamar-lhe-ão ciência histórica - uma ambiguidade estrutural. Ela é uma inutilidade útil. A sua inutilidade não deriva de ser, num tempo tão dado à acção e aos negócios, a contemplação e a compreensão do passado o fruto do ócio, mas da simples constatação de que o conhecimento histórico não permite qualquer previsão sobre o futuro. O que marca as ciências empírico-analíticas, como a Física ou a Química, é, entre outras coisas, a possibilidade de predizer o comportamento dos fenómenos por elas investigados.

A História lida com o tempo, mas apenas com uma das suas dimensões, a do passado. Por muito que se saiba do passado, o futuro continua a ser uma buraco negro pelo qual os homens entram coagidos pela força das coisas, deparando a cada instante com novas e novas surpresas. Um dos casos exemplares mais recentes é o da crise económica do subprime, a crise de 2008. Muito se vaticinou sobre o seu desenrolar. Acreditou-se que estaríamos como em 1929, à beira de uma crise apocalíptica do capitalismo mundial. Isso conduziu, por esse mundo fora - falo do mundo universitário -, a que muitos tirassem os livros de Marx da estante e procurassem neles um oráculo salvador e orientador perante o Apocalipse em fase de produção. Mas a história tem-se desenrolado de outra forma e o mundo, apesar da Europa ter substituído a crise do subprime pela das dívidas soberanas, encontrou um caminho diverso do de 1929.

Quem quiser fazer do passado uma bússola para o futuro anda mal. Os acontecimentos históricos nem como farsa se repetem, como afirmava jocosamente Marx, a propósito do golpe de Napoleão III. Um dos casos mais interessante na história ocidental é o do Renascimento. A redescoberta do mundo da antiguidade clássica, o culto das artes e letras da Grécia e de Roma, não conduziram o Ocidente à antiguidade mas aos Tempos Modernos. A modernidade só se tornou possível porque a fixação renascentista no passado longínquo abriu um buraco por onde entrou a Idade Média. O resultado, porém, foi bem diverso daquele que os amantes das antiguidades perseguiam. 

Esta inutilidade da História, fundada na incapacidade de previsão do futuro, tem como reverso a sua utilidade. Esta não é, contudo, a da erudição acerca do passado. A utilidade da História - pelo menos a utilidade que ela tem para mim - reside na possibilidade que fornece para compreender as paixões humanas. Alguém, talvez mais avisado do que eu, diria que para as entender bastaria ler alguns manuais de psicologia. Puro logro. As paixões que a História nos deixa compreender têm uma dimensão pública e manifestam-se nos múltiplos espaços onde se estrutura a vida das comunidades. As vertentes da acção humana - política, económica, cultural, social, religiosa - manifestam, no cenário do mundo, o pathos que conduz os homens. Não se trata aqui de idiossincrasias dos indivíduos ou de traços de carácter, mas da energia que nos empurra para o espaço público e nele representar um papel. Ora História não apenas mostra esse pathos, essas energias, como nos deixa compreender as suas metamorfoses, as reorientações para novos objectos, as novas significações dessas paixões. 

Hegel compreendia a História como o lugar de manifestação de uma razão que se alienara na natureza e que, através das paixões que compõem a História dos homens, se emancipa, se reconhece e retorna a sua casa. Aqueles que não partilham da narrativa hegeliana de uma razão alienada na natureza não precisam, todavia, de desligar razão e paixão. Se não é aceitável que as paixões acabem por manifestar uma razão prévia, podemos pensar a questão de uma outra forma. A razão não é mais do que a resultante do conflito de paixões. A razão não é um a priori, mas um a posteriori que nasce do choque violento das paixões humanas. Ela é uma criação contínua e sempre aberta, um produto do desenrolar do pathos humano, com os seus conflitos, no tempo e no espaço. E é por isso que a razão contém sempre em si-mesma um desvario, uma desrazão latente e pronta a manifestar-se.

Perceber isto não significa comprar uma chave para o futuro, mas aprender a dar uma atenção especial ao presente, à forma como as paixões se enfrentam no palco do mundo, e à razão que desenham e que justifica  - embora não legitime - o que se passa nesse palco nesta hora que nos coube. A História ensina apenas uma coisa sobre o futuro, que ele é irrevogavelmente inesperado. A História e o trabalho dos historiadores valem a pena? Só ela autoriza compreender como no passado as paixões humanas se configuraram e se tornaram a razão desse tempo. Só isso permite ler as paixões presentes e interrogar que razão trazem elas em si. Só a compreensão da História permite esperar o inesperado, pois, como Heraclito ensinou, quem não espera o inesperado - que é inacessível e não encontrável - não o encontrará.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Hélia Correia, A Terceira Miséria


Trinta e três poemas compõem a Terceira Miséria, de Hélia Correia. O livro abre com uma interrogação, o sinal de uma dúvida, retomada de Holderlin - Para quê, perguntou ele, para que servem / Os poetas em tempo de indigência? (poema 1) - para ser rematado com uma reformulação do princípio de esperança, não de uma esperança que, nestes tempos de indigência, tudo acabe bem, mas que algo comece, a esperança de um início: ... e de barulho /Atrás do qual vem o poema, atrás /Do qual virá a colecção dos feitos / E defeitos humanos, um início (poema 33).

Esta súbita junção entre o começo e o fim do livro proporciona o horizonte onde se move a escrita. Para que servem poetas em tempo de indigência? A resposta é dada obliquamente pelo produto do trabalho do poeta, o poema. Ele marca um início. No poema o mundo incoaria, como se o poema fosse um ovo, onde o passado se sintetiza e metamorfoseia numa nova possibilidade. Ainda no último texto é dito: De que armas disporemos, senão destas /Que estão dentro do corpo: o pensamento, A ideia de polis, resgatada / De um grande abuso, uma noção de casa / E de hospitalidade... (poema 33). Todo este passado grego - e o abuso que sofreu durante milénios - repousa no poema, como se ficasse sugerido que desses materiais heteróclitos um novo mundo, ainda por precisar, pudesse subir ao palco com os seus novos cenários e figurinos.

Para mediar entre a pergunta crepuscular de Holderlin e a sua resposta auroral, Hélia Correia utiliza figuras como a beleza, a loucura, a morte e a miséria. A beleza é a beleza helénica, uma beleza substancial - Que uma antiga substância, essa beleza /Que podia tocar-se num recesso / Da poeirenta estrada, no terror / Das cadelas nocturnas, na contínua / Perturbação, morada de alegria; (poema 1) -, mas também uma beleza dada pelo espanto pela dádiva do logos:  Essa beleza que era espanto / Pelo dom da palavra e pelo seu uso / Que erguia e abatia, levantava / E abatia outra vez, deixando sempre / Um rasto extraordinário (poema 2).

A percepção dessa beleza grega, o princípio originário do nosso mundo, é pautada pelas estações de um contínuo empobrecimento. Este funda-se na morte do mito e do seu esquecimento: Sim, foi essa / A primeira miséria, a deserção / Dos deuses. A segunda, a sua morte, / Já na morte de Pã anunciada / Pelo lamento dos bosques, o clamor / Lutuoso das ilhas de Egeu (Poema 18). O que significa a morte dos deuses, essa segunda miséria? A morte, uma falência quotidiana / Da limpidez, da arte e da divina / Coloquialidade com o mistério... (poema 19). A deserção e, depois, a morte dos deuses conduz ao corte com o mistério. A proximidade com este desapareceu, o que originou uma nova miséria, não a terceira, mas uma miséria fundada num divertimento funesto, o da hermenêutica. E veio outra miséria, em interlúdio: / A miséria da interpretação / Que tudo trai (poema 20). O mistério vivo da beleza grega é agora tomado pela erudição, pelo exercício contínuo da traição a uma vida da qual perdemos a chave.

Estas etapas do empobrecimento preparam a terceira miséria, aquela que diz respeito à nossa indigência contemporânea. A terceira miséria é esta, a de hoje / A de quem já não ouve nem pergunta. / A de quem não recorda (poema 23). Esta é a mais terrível das misérias, é a da indigência que nem sequer chega a formular-se: Por sobre estes lamentos, quando a mesma / Palavra, a indigência, nos ocorre / Sem que nos atrevamos a usá-la, / Porque sem deuses, sem o sentimento / Sequer da sua falta, nós nascemos, / E incapazes de lembrar... (poema 6).

A nossa indigência, a miséria do nosso tempo, só é compreensível pela oposição com aqueles que, estando relativamente perto de nós, ainda pressentiram o eco longínquo da grandeza helénica. Holderlin e Nietzsche enlouqueceram. Byron morreu lutando pela Grécia. Holderlin não suportou essa ausência que ecoava no fundo do seu ser, Não sei perseverar assim, escrevia / O da meiga loucura. Perguntava / O que dizer, o que fazer, enquanto / Não voltassem os muito apetecidos, / Os grandemente antigos, esses sábios / Que se engasgavam nos banquetes... (poema 13). Também Nietzsche não resistiu ao encantamento: Só mais tarde o outro, / O que desconhecia a mansidão / E enlouqueceu de modo diferente, / Se apercebeu do uivo que soltavam / As ilhas todas, com as suas praias / E os seus bosques vazios. Pois o luto / Leva tempo a formar uma linguagem (poema 10). Apesar da morte dos deuses e da distância, a Grécia no século XIX ainda tinha força suficiente para chamar os jovens da Europa: Tu, Grécia, semelhante a heroína / Sujeita a vilipêndio, tu a quem / Acorreram os jovens da Europa, / Os de linhagem, como impacientes / Por qualquer boa espécie de jornada (poema 27). Entre esses estava Byron, que ali encontrou a morte. Oh Grécia que chamaste Byron como / Incestuosa irmã, tu que lutavas... / (...) / Parecias levar tudo tão a sério / Que tu própria quiseste matar Byron / Deitando-o devagar, adoecendo-o, / Poupando-o ao confronto e à derrota, / Porque derrota houve uns anos mais (poema 27).

A Grécia foi assim uma atracção fatal para o espírito europeu do XVIII e do XIX. Enlouqueceu e conduziu à morte, para entrar, depois, na terra do esquecimento. Hélia Correia escreve uma epopeia do esquecimento. Não por acaso, a generalidade dos versos são decassílabos heróicos, que captam não a expressão de um sentimento do sujeito poético, mas a objectividade de uma perda. Holderlin, Byron e Nietzsche são os heróis impotentes, sinais de um mundo que a modernidade, depois de uma leve inquietação no Renascimento, acabou por relegar para a zona escura do recalcado, a zona da nossa indigência, dessa incapacidade já de rememorar não a vida mas o reflexo dessa vida na arte e no espírito.  Como todos os dias descobrimos, pertencemos a um mundo que nada sabe desses gregos, nada quer saber.

Na Ilíada, Aquiles, na parte final da obra, retorna ao combate do qual se afastara devido ao conflito com Agamémnon. Ulisses, no final da Odisseia, retorna a casa e aos braços da mulher. De certa forma, encontramos em ambas as epopeias de Homero o restabelecimento de um estado natural que tinha sido desfeito. Hélia Correia, porém, não tem qualquer ilusão sobre o retorno dos deuses, o retorno do mito, o restabelecimento dessa antiga natureza. Para onde olharemos? Para quem? / Certo é que Atenas se mantém oculta / E de algum modo intacta, por debaixo / Do alcatrão, do ferro retorcido. / Certo é que nunca ressuscitará / Visto que nada ressuscita (poema 30). Essa Grécia, que enlouqueceu Holderlin e Nietzsche e levou Byron para a morte, não voltará, mas ... pode/ No entanto escutar-se, no entanto / Reler-se, no entanto caminhar / Em direcção diversa, magoar / Novamente os joelhos na jornada? (poema 31) Esta interrogação é já, paradoxalmente, a afirmação de um caminho, do caminho que resta. Reler e escutar. Escutar essa Gente do Sul, / Gente que um dia se desnorteou (poema 32). A releitura do que nos ficou, a escuta das praças que de novo se enchem: Estão as praças, / Como ágoras de outrora, estonteadas / Pela concentração dos organismos, / Pelo uso da palavra, a fervilhante / Palavra própria da democracia,  Essa que dá a volta e ilumina / O que, por um instante, a empunhou (poema 32). Todo esse barulho atrás do qual vem o poema - não foi assim com a poesia homérica? - e que marca não o ressuscitar de um mundo morto, mas um início, um novo começo.

Para quê poetas? Perguntou Holderlin. Para marcarem o tempo de um começo, aprendemos com Hélia Correia.

Hélia Correia (2012). A Terceira Miséria. Lisboa: Relógio d'Água.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Poema 40 - Chegaram os primeiros frutos, símbolos


Chegaram os primeiros frutos, símbolos
Vindos da primavera, corações
Saciados de água, solitários
Brotos saídos do fundo azul da terra.

Trazem na seiva pétalas, canções,
Promessas de silêncio e a verdade
Do mundo na candura da ilusão.
Tempo transfigurado, breviário

Onde recolho as minhas orações,
Traz-me outro e outro fruto dessa árvore
Velada no jardim do paraíso.

Sê compassivo, tu que tudo julgas,
E deixa clarear em minhas mãos
O fruto que o sol, pálido, esconde.

domingo, 15 de abril de 2012

Um pacto com a solidão

Egon Schiele - Two Women (1915)

Alguém que se decide a pensar tem que abdicar da simpatia, essa ilusão dos fracos caracteres (Agustina Bessa- Luís, Ternos Guerreiros - Prefácio).

Quando Platão quis entrar para o grupo que rodeava Sócrates, este impôs-lhe a abdicação das suas pretensões artísticas. Conta-se que, fascinado pelo mestre, Platão rasgou as tragédias que tinha escrito. Pensar implica sempre um preço, uma abdicação, o estar decidido a perder qualquer coisa. Agustina Bessa-Luís mostra a natureza cruel e violenta do acto de pensar. Não se trata já de abdicar das suas pretensões mais próprias, mas cortar com a compaixão, com a partilha de uma paixão, mas também de um sentimento ou mesmo de um sofrimento comuns. Aquilo que é o mais humanamente comum é inimigo do pensamento. 

O que faz parte do território comum, da opinião ou senso comum, é o já pensado. Naquilo que está pensado, nós partilhamos com o outro esse pensado. O pensado, porém, é como uma metáfora morta. Nele já não encontramos a seiva e o vigor que iluminou, por breves instantes, o mundo. Pensar é um exercício contínuo de solidão e de amor a essa solidão, mas também uma declaração de guerra contra os poderes do mundo. E que poderes são esses? Os da simpatia, aqueles poderes que crescem no que é comum. O comum é o remanescente do pensamento, o traço daquilo que foi pensado, mas ao qual aquele que pensa não deve voltar. Crer no comum é uma ilusão, o sintoma de fraqueza de carácter, como sublinha Agustina Bessa-Luís. 

Tudo isto, porém, não significa que pensar seja uma actividade nómada, uma actividade em oposição à instalação sedentária. No nomadismo, há também muito de comum, e por isso ele exerce sobre os espíritos cansados da vida gregária tão grande fascínio. O que parece fundamental no pensador - seja ele nómada ou sedentário - é a solidão, o retirar-se do convívio dos homens para melhor poder olhar. Que esse retiro seja feito como peregrinação ou como instalação no deserto isso é já secundário. Decidir-se a pensar é um pacto com a solidão. Só dessa solidão o pensador pode declarar guerra aos poderes do mundo.

Dirão os mais desavisados: agora que Deus está morto, tornou-se moda evocar os gregos pagãos. Esquecem que não foi um grego que disse: Não julgueis que vim trazer a paz à terra. Vim trazer não a paz, mas a espada (Mt. 10:34). Não foi Ele que morreu abandonado na cruz?

sábado, 14 de abril de 2012

Eduardo Bento, O olhar que procura um barco

Desce a noite. Apolo, no seu carro de fogo, dirige-se para a triste habitação dos mortos. Cresce a sombra. O fim da tarde traz uma fresca brisa e ao longe ouve-se a flauta de um pastor. É da idade, chegou o tempo das nostalgias. Hoje comovo-me a olhar para o passado. Todos partiram e deixaram-me aqui, neste lugar agora tão diferente do que já foi (E. Bento, O olhar que procura um barco)

Onze viagens pela estranho país do passado, pelo território puro e inicial dos mitos, por esses tempos em que razão e imaginação se fundiam e traçavam um rumo altivo no mundo. Acidentalmente, escrevi ontem aqui sobre a revisitação do passado, do meu passado, como um exercício cómico. Opus à comédia plebeia a tragédia aristocrática. Haverá outras possibilidades. O narrador da última viagem - aquela que se denomina Felix Turre - comove-se. Essa é uma possibilidade real, uma mistura de desordem e de ternura, uma comoção. Talvez a proposta do mais novo livro de Eduardo Bento - lançado hoje - seja essa: uma ternura pelos tempos do passado, por esse grande império dos mitos clássicos, e a esperança que isso ainda nos desordene. A desordem é apenas um passo para uma nova ordem. E onde é que nós, ocidentais tardios, haveremos de ir buscar a seiva, o sangue e a linfa? À terra, à sagrada terra do mito de onde tudo provém. Este é o desafio e a proposta que Eduardo Bento lança a partir das onze viagens que compõem o seu O olhar que procura um barco.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

O estrangeiro que fui

Salvador Dali - A Persistência da Memória

No início de uma das suas crónicas no Público, Pacheco Pereira recordava "uma frase muito mais lembrada do que o livro" (The Go-Between, de Leslie Poles Hartley) de que faz parte: o passado é um país estrangeiro, lá fazem as coisas de modo diferente. Apesar da persistência da memória, o passado nunca deixa de surgir ao olhar como uma território desconhecido. Talvez nessa terra façam as coisas de modo diferente daquele que está em uso na pátria do presente, talvez. Mas isso, para dizer a verdade, não me interessa. Não são os usos e costumes desse passado que me interessam, nem é a sua natureza estranha ou o sentimento de ir para o estrangeiro quando revisitamos, através da memória, as estações que configuram um passado.

Interessa-me o sujeito e não a paisagem, o viajante e não o território ou a geografia. Interessa-me o sujeito que fui e do qual a memória persiste em estabelecer uma ligação com aquele que sou. Esse sujeito passado, porém, não é menos estranho que o país do passado. Talvez eu sofra de uma patologia qualquer, mas quando leio descrições que outros fazem desse seu ser sujeito no passado quase só enxergo super-heróis, campeões de tudo, gente feliz por esse passado que a memória lhes devolve. A minha memória, porém, só me devolve um ser ridículo, risível, lastimável. O meu passado é para mim como aquelas fotografias onde nos descobrimos completamente ridículos e das quais sentimos  uma íntima vergonha. Olhado do presente, o meu passado atesta a minha natureza indiferenciada e plebeia. O meu passado não é uma tragédia (esta trata de gente nobre e superior, como Aristóteles sabia) mas uma comédia (coisa de gente inferior, segundo o Filósofo).

Quando penso no risível ser que está ligado a mim pela persistência da memória, nem pretendo supor que agora sou outra coisa. De facto, não me sinto ridículo, mas é apenas uma questão de tempo, suponho. De onde nascerá está risibilidade? Não tem a ver com o sucesso ou o insucesso. Quantas vezes são os sucessos a maior fonte de ridículo? O que me dá vontade de rir é o choque entre o desejo e a realidade. O desejo é sempre excessivo para a realidade que fomos. Entre o real e o desejável abriu-se uma fenda, e é nessa fenda que nos estabelecemos. Preocupados em não desaparecer no abismo, entretemos cada presente com a missão de evitar a queda e suportar os safanões da realidade e as sacudidelas do desejo. Instalados nesse lugar vazio, não fomos o que éramos nem o que desejávamos, mas apenas uma caricatura a esbracejar suspensa no vácuo. A caricatura e o ridículo, que encontro nesse sujeito que fui, nascem de uma tensão entre a realidade finita e mortal do meu ser empírico e o desejo de infinitude e de imortalidade. 

O presente, esta pátria que agora habito, é um território ambíguo. Por um lado, permite-me a crueldade de me ver como fui, mostra-me no meu ridículo e na minha natureza caricatural, mas ao mesmo tempo desvenda-me tudo isso como se tal pertencesse a um estranho, a um estrangeiro. Esta insidiosa forma de olhar é apenas o sintoma de que se continua no abismo e que o desejo e a realidade permanecem afastados. Dito de outro modo, a vida, pelo menos a minha, não passa de uma comédia e, lentamente - talvez pela escassez da inteligência -, vou descobrindo que a caricatura não é uma aparência de mim, mas a minha própria natureza ontológica. Eu estaria tentado a dizer que a caricatura é a verdade de cada um, mas isso seria ofender a moral e os bons costumes e envolver gente seriíssima na minha comédia. Para os outros fica reservado o heróico espaço da tragédia.

Homicídio premeditado



Mario Draghi, presidente do Banco Central Europeu, proclamou, há dias, a morte do modelo social europeu. Contrariamente ao que se faz crer, o modelo social europeu não morreu de velhice ou de morte natural. Foi assassinado. Um verdadeiro homicídio premeditado e preparado cuidadosamente ao longo de anos, mesmo de décadas.

O modelo social europeu nasceu por dois motivos. Por um lado, para recompensar as pessoas que combateram na II Guerra Mundial. Foi o resultado de um acordo interclassista que mobilizou as populações para o esforço de guerra. A saída do conflito e o plano Marshall exigiam paz social para relançamento da economia. O preço do sacrifício em combate e as necessidades de reconstruir as sociedades geraram uma procura política de equilíbrios sociais que se materializaram no Estado Social.

Por outro lado, a ameaça do comunismo levou as elites económicas e políticas à criação de uma sociedade de inclusão que afastasse as tentações, nas classes trabalhadoras, de uma inclinação para o bolchevismo. O modelo social europeu foi a arma usada pelo Ocidente, durante a Guerra Fria, contra o bloco de leste. Uma arma de propaganda ideológica, a qual continha a liberdade política, a prosperidade económica, a promessa de mobilidade social e de reconhecimento do mérito. Uma arma eficaz.

Esquecida a guerra, relançada a economia, morto o comunismo, as elites económicas descobrem que, ao liquidar o modelo social europeu, poderiam fazer um negócio muito mais interessante para si mesmas. A abertura desregulada do comércio mundial e a globalização foram a motivação e as armas para desfazerem os equilíbrios herdados da II Guerra e da Guerra Fria. As pessoas já não interessam, o equilíbrio e a moderação são mau negócio. Com tanta mão-de-obra, quase escrava, disponível, estavam reunidas as condições para o assassinato do Estado social. Este homicídio foi uma exigência das elites económicas ocidentais.

A execução foi levada a cabo, de forma contínua e sistemática, pelas elites políticas. Subservientes, iníquas, decidiram trair a confiança dos respectivos povos e destruíram, paulatinamente, o modelo social europeu. Este homicídio político tem um sentido preciso. Significa que uma parte da população vai morrer mais cedo, ter menos cuidados de saúde, ter acesso a menos emprego e de pior qualidade, ter pior educação para os filhos, ter menos protecção no desemprego, na doença e na velhice, em suma viver substancialmente pior. A morte do estado social europeu foi um longo exercício de traição.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

O paradoxo do avaliador

Edvard Munch - Nietzsche

O senso comum corrente - e lembremo-nos que, hoje em dia, o senso comum gosta de tomar a coloração da cientificidade - afirma e jura que devemos viver numa cultura de avaliação. A avaliação, nas nossas sociedades, tornou-se naquilo a que já chamei uma monomania, uma monomania social. Dito de outra forma, a cultura de avaliação é uma patologia das sociedades contemporâneas, sociedades incapazes já de pensar cada um dos seus princípios até às últimas consequências. Mas não é a avaliação uma forma de racionalizar desempenhos para reconhecê-los e compensá-los na justa medida? Em aparência, sim; na realidade, não. E a razão é simples: o fundamento último da avaliação é arbitrário e irracional.

Qualquer processo de avaliação funda-se, sem que disso se tenha consciência, no que poderíamos chamar paradoxo do avaliador: em qualquer processo de avaliação há um avaliador que não é avaliado. Imaginemos que um conjunto de avaliadores avalia um dado universo de pessoas. Por seu turno, esse conjunto de avaliadores é avaliado por outro grupo de avaliadores, e assim sucessivamente. Como o processo não se pode prolongar até ao infinito (e se se prolongasse seria irracional), há um momento em que um último avaliador não é avaliado. Todo o processo de avaliação supõe e está fundado, paradoxalmente, na não avaliação.

Qual o verdadeiro significado disto? Todo o processo de avaliação está construído sobre a ideia de infalibilidade - uma infalibilidade idêntica à do Papa na Igreja Católica - do último avaliador (pode ser um indivíduo ou um colectivo). Na verdade, está construído sobre a arbitrariedade desse último avaliador. Ora como esse último avaliador é o decisivo, toda o processo de avaliação depende da sua arbitrariedade, o que torna toda a avaliação pura e simplesmente arbitrária e irracional. Contrariamente ao que se quer fazer supor, a avaliação não é um processo de racionalização dos desempenhos, mas uma forma de impor uma arbitrariedade incontrolada e tida por infalível ou, dito de outra maneira, toda a cultura de avaliação é uma forma de ocultar o arbítrio e a irracionalidade com a aparência de uma razão processual e avaliativa. 

Quando a questão se coloca no âmbito da Igreja Católica, a infalibilidade papal faz todo o sentido, pois está em consonância com o mistério da fé. Contudo, quando se trata de sociedades que pretendem ser racionais e que exigem um comportamento racional dos seus agentes, o paradoxo do avaliador torna claro o carácter patológico da vida social contemporânea e a natureza contraditória dos seus princípios.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Poema 39 - Não sei de que falas se dizes amor


Não sei de que falas se dizes amor.
Estranha língua a do sentimento,
Praia cinzenta de rochas escarpadas,
Sem sol ou ondas em movimento.

Que destino ou dor pretendes celebrar,
Ao deixar a língua pela gramática,
Onde um fogaréu encontra na sintaxe
A desordem do seu acontecimento?

Hoje prefiro os dias de grande penúria,
Andar solitário por caminhos sem fim,
A escutar o rosnar obscuro do coração.

Tanto sentimento entorpece a alma,
Que de livre se torna cativa,
E cega vê vida na areia mortal da paixão.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Margem de manobra

Ticiano - David e Golias

O sociólogo alemão Norbert Elias propôs uma teoria do poder que visava dessubstancializá-lo, retirar-lhe a aura de coisa. Isso permitiu-lhe compreendê-lo no âmbito da interdependência que os homens tecem entre si. Elias vê o poder como margem de manobra. Em última análise, ninguém é, de forma absoluta, destituído de uma certa margem de manobra, mas essa varia em conformidade com o lugar social onde se está e o papel que se desempenha. 

O que nos ensina esta perspectiva de poder? Que o que importa é que cada um de nós amplie a sua margem de manobra, limitando, ao mesmo tempo, a margem de manobra daqueles que se opõem aos nossos fins. O que estamos a assistir - pelo menos nas últimas duas décadas - é a um esforço enorme por parte das elites políticas e económicas para maximizarem a limitação da margem de manobra da grande maioria das pessoas. Dois exemplos. Um exemplo nacional, o do último acordo da concertação social. Nele, os empresários, com a cumplicidade de uma central sindical e o activo empenho do governo, limitaram a já escassa margem de manobra das classes trabalhadoras nacionais. Um exemplo europeu, o do tratado que visa impor um limite aos défices públicos. Aqui, as classes políticas acordam - sem mandato popular para tal - em limitar a margem de manobra dos eleitores nacionais, dissolvendo ipso facto a democracia.

Esta noção de poder como margem de manobra é muito interessante porque permite perceber o poder como um conflito de liberdades, onde as partes tentam limitar a liberdade de acção umas das outras e ampliar a sua. No entanto, se esta ideia de poder enquanto margem de manobra dessubstancializa o poder, não deixa de supor um certo mecanicismo desse mesmo poder. Ele não é uma coisa, mas a resultante de um jogo de forças, isto é, a resultante das liberdades em confronto, tentando afirmar-se e limitar as outras liberdades. Mas não foi isto que homens como Maquiavel, Marx ou Lenine perceberam já? 

Os séculos XX e XXI estão-nos a ensinar que o mais difícil, na arena política, é manter o equilíbrio das forças. O ponto de equilíbrio - por exemplo, o chamado pacto social-democrata que governou a Europa - é apenas um ponto de passagem. O pêndulo deslocar-se-á, inexoravelmente, para os extremos. Felizes são aqueles cujas vidas puderam decorrer nessas breves décadas em que o equilíbrio das forças parecia eterno. Não era, nunca é.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

O vento do paraíso

Paul Klee - Angelus Novus

O anjo da história - esse anjo que Walter Benjamin evocou perante o quadro de Klee - mostra bem a diferença entre homens e anjos. O que vê o anjo que é arremessado para o futuro? Uma única catástrofe, que soma ruína atrás de ruína, num não acabar mais de destruição. Eis a história da humanidade. Os homens, porém, deixam-se seduzir pelas imagens do passado. O anjo não vê apenas mais amplamente que o homem, ele vê a realidade como ela é. O homem vê apenas imagens do passado, mas imagens que estão presentes, e nessa sua presença tornam-se sedutoras. A sedução traduz-se no desejo de conservar o passado. Conservar o passado significa retornar a ele, àquele momento que a imagem fixou. Mas não significa apenas isso. Significa querer conservar ainda alguma coisa que é viva e que, de alguma forma, nós relacionamos com o passado, com os bons velhos tempos, esses tempos em que estaríamos mais próximos do paraíso. No fundo, o desejo quer fazer do passado o futuro. Mas isso, o conservadorismo, é apenas uma estratégia perante a inevitabilidade da morte: que à nossa frente não esteja a morte, mas o passado, o início, a possibilidade de recomeçar tudo outra vez.

Se a atitude conservadora é inócua, ilusória, destituída de sentido - embora não de sentimento -, a atitude contrária - a dos revolucionários e amantes progressivos do futuro - será mais sensata, mais razoável? O pânico perante a morte toma diversas figuras. Se a atitude conservadora lida com a morte tentando denegá-la no retorno ou fixação do passado, a atitude que endeusa o futuro é semelhante à daqueles que, temendo um abismo, se atiram para ele. A atracção pelo abismo não é menos patológica que a negação da temporalidade. A Revolução Industrial - mais que todo o resto - criou uma enorme ideologia futurista e progressista. Os homens pensaram que tinham a chave da história e que poderiam entrar por ela dentro e domar o tempo, isto é, a morte. Antecipavam a história para surpreender a morte. Como todos sabemos, não há nenhum deles que a morte não tenha levado. As suas instituições - tão sólidas elas pareciam - fazem parte da ruína que o anjo da história avista.

O vento que sopra do paraíso, e que arrasta inexoravelmente o anjo para o futuro, torna ridículas todas as nossas classificações, todos os nossos desejos, todas as nossas fantasias ideológicas. Ser conservador, progressista, revolucionário, reaccionário é um exercício inútil. Dormirão todos, lado a lado, o sono eterno. O que nos resta? O que sempre nos restou, nada. Viver com o vento, suportá-lo, amá-lo com o ódio com que amamos aquilo que é inevitável e não está, nunca esteve e nunca estará nas nossas mãos. A vida é o vento que sopra do paraíso, como bem viu Walter Benjamin. Mas como ensina o evangelista João, o vento sopra onde quer. Não temos que ver apenas as ruínas como o anjo, cabe-nos ainda aprender a suportar o vento e a ser levados, sem qualquer ilusão, para onde ele quer. Talvez por isso, a tradição cristã coloca o homem acima do anjo.