O anjo da história - esse anjo que Walter Benjamin evocou perante o quadro de Klee - mostra bem a diferença entre homens e anjos. O que vê o anjo que é arremessado para o futuro? Uma única catástrofe, que soma ruína atrás de ruína, num não acabar mais de destruição. Eis a história da humanidade. Os homens, porém, deixam-se seduzir pelas imagens do passado. O anjo não vê apenas mais amplamente que o homem, ele vê a realidade como ela é. O homem vê apenas imagens do passado, mas imagens que estão presentes, e nessa sua presença tornam-se sedutoras. A sedução traduz-se no desejo de conservar o passado. Conservar o passado significa retornar a ele, àquele momento que a imagem fixou. Mas não significa apenas isso. Significa querer conservar ainda alguma coisa que é viva e que, de alguma forma, nós relacionamos com o passado, com os bons velhos tempos, esses tempos em que estaríamos mais próximos do paraíso. No fundo, o desejo quer fazer do passado o futuro. Mas isso, o conservadorismo, é apenas uma estratégia perante a inevitabilidade da morte: que à nossa frente não esteja a morte, mas o passado, o início, a possibilidade de recomeçar tudo outra vez.
Se a atitude conservadora é inócua, ilusória, destituída de sentido - embora não de sentimento -, a atitude contrária - a dos revolucionários e amantes progressivos do futuro - será mais sensata, mais razoável? O pânico perante a morte toma diversas figuras. Se a atitude conservadora lida com a morte tentando denegá-la no retorno ou fixação do passado, a atitude que endeusa o futuro é semelhante à daqueles que, temendo um abismo, se atiram para ele. A atracção pelo abismo não é menos patológica que a negação da temporalidade. A Revolução Industrial - mais que todo o resto - criou uma enorme ideologia futurista e progressista. Os homens pensaram que tinham a chave da história e que poderiam entrar por ela dentro e domar o tempo, isto é, a morte. Antecipavam a história para surpreender a morte. Como todos sabemos, não há nenhum deles que a morte não tenha levado. As suas instituições - tão sólidas elas pareciam - fazem parte da ruína que o anjo da história avista.
O vento que sopra do paraíso, e que arrasta inexoravelmente o anjo para o futuro, torna ridículas todas as nossas classificações, todos os nossos desejos, todas as nossas fantasias ideológicas. Ser conservador, progressista, revolucionário, reaccionário é um exercício inútil. Dormirão todos, lado a lado, o sono eterno. O que nos resta? O que sempre nos restou, nada. Viver com o vento, suportá-lo, amá-lo com o ódio com que amamos aquilo que é inevitável e não está, nunca esteve e nunca estará nas nossas mãos. A vida é o vento que sopra do paraíso, como bem viu Walter Benjamin. Mas como ensina o evangelista João, o vento sopra onde quer. Não temos que ver apenas as ruínas como o anjo, cabe-nos ainda aprender a suportar o vento e a ser levados, sem qualquer ilusão, para onde ele quer. Talvez por isso, a tradição cristã coloca o homem acima do anjo.
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