Clément-Auguste Andrieux - La bataille de Waterloo. 18 juin 1815 (1852)
Há na reflexão histórica - alguns, herdeiros tardios do positivismo, chamar-lhe-ão ciência histórica - uma ambiguidade estrutural. Ela é uma inutilidade útil. A sua inutilidade não deriva de ser, num tempo tão dado à acção e aos negócios, a contemplação e a compreensão do passado o fruto do ócio, mas da simples constatação de que o conhecimento histórico não permite qualquer previsão sobre o futuro. O que marca as ciências empírico-analíticas, como a Física ou a Química, é, entre outras coisas, a possibilidade de predizer o comportamento dos fenómenos por elas investigados.
A História lida com o tempo, mas apenas com uma das suas dimensões, a do passado. Por muito que se saiba do passado, o futuro continua a ser uma buraco negro pelo qual os homens entram coagidos pela força das coisas, deparando a cada instante com novas e novas surpresas. Um dos casos exemplares mais recentes é o da crise económica do subprime, a crise de 2008. Muito se vaticinou sobre o seu desenrolar. Acreditou-se que estaríamos como em 1929, à beira de uma crise apocalíptica do capitalismo mundial. Isso conduziu, por esse mundo fora - falo do mundo universitário -, a que muitos tirassem os livros de Marx da estante e procurassem neles um oráculo salvador e orientador perante o Apocalipse em fase de produção. Mas a história tem-se desenrolado de outra forma e o mundo, apesar da Europa ter substituído a crise do subprime pela das dívidas soberanas, encontrou um caminho diverso do de 1929.
Quem quiser fazer do passado uma bússola para o futuro anda mal. Os acontecimentos históricos nem como farsa se repetem, como afirmava jocosamente Marx, a propósito do golpe de Napoleão III. Um dos casos mais interessante na história ocidental é o do Renascimento. A redescoberta do mundo da antiguidade clássica, o culto das artes e letras da Grécia e de Roma, não conduziram o Ocidente à antiguidade mas aos Tempos Modernos. A modernidade só se tornou possível porque a fixação renascentista no passado longínquo abriu um buraco por onde entrou a Idade Média. O resultado, porém, foi bem diverso daquele que os amantes das antiguidades perseguiam.
Esta inutilidade da História, fundada na incapacidade de previsão do futuro, tem como reverso a sua utilidade. Esta não é, contudo, a da erudição acerca do passado. A utilidade da História - pelo menos a utilidade que ela tem para mim - reside na possibilidade que fornece para compreender as paixões humanas. Alguém, talvez mais avisado do que eu, diria que para as entender bastaria ler alguns manuais de psicologia. Puro logro. As paixões que a História nos deixa compreender têm uma dimensão pública e manifestam-se nos múltiplos espaços onde se estrutura a vida das comunidades. As vertentes da acção humana - política, económica, cultural, social, religiosa - manifestam, no cenário do mundo, o pathos que conduz os homens. Não se trata aqui de idiossincrasias dos indivíduos ou de traços de carácter, mas da energia que nos empurra para o espaço público e nele representar um papel. Ora História não apenas mostra esse pathos, essas energias, como nos deixa compreender as suas metamorfoses, as reorientações para novos objectos, as novas significações dessas paixões.
Hegel compreendia a História como o lugar de manifestação de uma razão que se alienara na natureza e que, através das paixões que compõem a História dos homens, se emancipa, se reconhece e retorna a sua casa. Aqueles que não partilham da narrativa hegeliana de uma razão alienada na natureza não precisam, todavia, de desligar razão e paixão. Se não é aceitável que as paixões acabem por manifestar uma razão prévia, podemos pensar a questão de uma outra forma. A razão não é mais do que a resultante do conflito de paixões. A razão não é um a priori, mas um a posteriori que nasce do choque violento das paixões humanas. Ela é uma criação contínua e sempre aberta, um produto do desenrolar do pathos humano, com os seus conflitos, no tempo e no espaço. E é por isso que a razão contém sempre em si-mesma um desvario, uma desrazão latente e pronta a manifestar-se.
Perceber isto não significa comprar uma chave para o futuro, mas aprender a dar uma atenção especial ao presente, à forma como as paixões se enfrentam no palco do mundo, e à razão que desenham e que justifica - embora não legitime - o que se passa nesse palco nesta hora que nos coube. A História ensina apenas uma coisa sobre o futuro, que ele é irrevogavelmente inesperado. A História e o trabalho dos historiadores valem a pena? Só ela autoriza compreender como no passado as paixões humanas se configuraram e se tornaram a razão desse tempo. Só isso permite ler as paixões presentes e interrogar que razão trazem elas em si. Só a compreensão da História permite esperar o inesperado, pois, como Heraclito ensinou, quem não espera o inesperado - que é inacessível e não encontrável - não o encontrará.
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