quinta-feira, 26 de abril de 2012

Ser espectadores


Julgo que esta fotografia é de Alfredo Cunha, mas não consegui confirmar e, por isso, não tenho a certeza, apesar de ele ter uma fotografia, deste mesmo acontecimento, tirada do mesmo ângulo. Estamos em pleno Chiado, no dia 25 de Abril de 1974. Quando digo estamos refiro-me ao simples facto que o que somos enquanto comunidade está ali na mais crua exposição. Os militares estão em posição de combate, parece iminente um confronto. Mas alguém acredita no que está a acontecer? Alguém se mostra comprometido com a situação? Sei que vou ser desagradável com o que vou dizer, pelo menos para as crenças de muitos. As fotografias que mostram o envolvimento de multidões com os soldados ou que multiplicam a iconografia do cravo no cano da espingarda não são falsas, mas são inautênticas.

A inautenticidade não resulta de as situações retratadas não terem existido, mas da própria existência dessas situações. A exuberância da adesão aos acontecimentos do 25 de Abril é apenas um fenómeno de superfície. Ele acontece a partir do momento em que se pressente a vitória do movimento revoltoso. A inautenticidade também não deriva de as pessoas estarem a falsificar os seus sentimentos. Não estavam. A alegria pelo derrube da ditadura era efectiva. A inautenticidade refere-se antes à falsa relação que as pessoas têm com a res publica. A fotografia tem o mérito de revelar a natureza dessa relação. Homens, mulheres e crianças estão ali, mas não pertencem ao palco. São meros espectadores, estão a ver o que aquilo dá. 

Que se jogue ali o destino da comunidade, da liberdade e do tipo de vida que se quer é algo que não diz respeito aos espectadores. Estão lá para ver e esperam apenas que o espectáculo não os desiluda. Espectáculo? Não se joga ali a vida e a morte dos homens? Não poderá correr, em breve, sangue naquelas ruas? Os espectadores não acreditam nisso, pois se essa fosse a sua crença não estariam ali, não deixariam que as crianças se sentassem no chão ao lado dos soldados prontos para combate. O momento mais decisivo da história do país é percebido como pura representação que ninguém parece considerar uma situação real onde pode perder a vida, quer dizer, onde a vida se joga.

Durante a ditadura, a maioria silenciosa dos portugueses limitou-se a ver o que acontecia e esperar que não lhe acontecesse nada. Passada a efusão sentimental do derrube do regime, tudo começou a voltar ao que era. Os assuntos públicos são-nos estranhos, são problemas deles - dos políticos - mas não nossos. Nós pagamos para ver, não para tomar parte, ter opinião, decidir o rumo das coisas. Esperamos que nos dêem alguma coisa, mas se não derem, paciência. E se tirarem o que deram também isso não nos diz respeito. Viemos para ver, não nos macem. Temos mais que fazer e a vida é outra coisa. O interesse da fotografia reside em ter captado em plena acção revolucionária a natureza geral da relação dos portugueses com os assunto públicos. Está ali tudo.

6 comentários:

  1. A fotografia ilustra a encenação infantil de quem parece estar a fazer uma guerra a brincar, a inocência quase papalva de quem está a assistir com um envolvimento meramente superficial - e a sua análise é praticamente irrebatível.

    Mas teremos sido sempre assim? Um povo a brincar? Ou já fomos um povo a sério e em algum momento perdemo-nos do nosso destino que, à partida, poderia ser digno?


    PS: De qualquer forma, se não consigo rebater o que diz, também me recuso a aceitar essa sua leitura tão fatalista de nós próprios. Estive aqui a pensar, a ver se descobria num argumento que deitasse por terra a sua 'teoria' mas não me ocorreu, que maçada.

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    1. No outro dia, o Fernando Dacosta dizia que o Salazar não era a causa da nossa atitude mas a sua consequência. Estou de acordo com ele. Temos, enquanto povo, uma difícil relação com a comunidade e o bem comum. Talvez o projecto da nobreza que envolvia o Afonso Henriques fosse estranho às pessoas e que essa cesura nunca tenha sido resolvida. Mas não sei porque somos tão diferentes dos espanhóis, para não falar dos outros europeus.

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  2. Tem razão com esta estranheza face aos espanhóis. Andar em Madrid é a coisa mais contrastante face a Lisboa. Os espanhóis são expansivos, orgulhosos, lutadores, alegres, exuberantes. Aqui é tudo muito atado.

    Mas dizem-me pessoas que conhecem bem a Holanda que somos parecidos com os holandeses. Será?

    Contacto com alguma frequência com pessoas de outras nacionalidades e vejo que nem estamos pior preparados do ponto de vista profissional, nem temos menos capacidade de trabalho (antes pelo contrário), nem aparentamos ser muito diferentes no desempenho profissional e, até, social (e falo por exemplo de alemães, ingleses, espanhóis). Sabe em que é que vejo diferenças? Justamente no fatalismo. Achamo-nos mauzinhos, tendemos a sentirmo-nos inferiores. Essa é a diferença. Não temos auto-confiança nem auto-estima e talvez aí resida o problema. E tendemos a ser marias-vão-com-os-outros porque geralmente achamos que os outros são melhores que nós. E não são.

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    1. Julgo que a questão do fatalismo é derivada. Há uma relação pervertida entre elites e povo. A escassez era tão grande que as próprias elites eram pobres e, por isso, necessitavam de limitar a vida das pessoas, para que elas estivessem disponíveis para essas elites de forma quase gratuita. Ainda hoje é assim. Não há espaço para as pessoas e tudo se torna sufocante e medíocre. A mediocridade é em parte querida e em parte induzida pelas elites. Por outro lado, há um espírito individualista enorme, mas que não apela à iniciativa, à inscrição no real como diz o José Gil, mas ao isolamento. O concelho de Torres Novas tem 36 ou 37 mil habitantes, mas tem mais de 120 ou 150 aldeias, casais, lugares, lugarejos (Abrantes é semelhante, Tomar idem, e por esse país fora, com excepção do Alentejo, é a mesma coisa). Isto é sintoma de isolamento, de ensimesmamento. Talvez a fatalidade venho de tudo isso.

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  3. Talvez.

    A sua lucidez assusta. Concordo com tudo o que diz mas não quero 'alinhar' nisso pois parece-me que essa lucidez é afinal uma prova desse fatalismo.

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