As pessoas estavam sempre a preparar-se para o futuro. Eu não acreditava nisso. O futuro não se estava a preparar para elas. O futuro nem sabia que elas existiam (p. 112).
Há uma estreita relação entre o acto de narrar e a compreensão da temporalidade. Tempo e narrativa são duas formas de discurso, e a narrativa romanesca é um discurso que capta, inscreve e cartografa o decurso - i e, o discurso - do tempo. A Estrada (The Road), um romance de Cormac McCarthy publicado em 2006, é uma estranha experiência devido ao espaço tomar o lugar do tempo como elemento articulado pela narrativa. Se o tempo é enigma que a actividade romanesca tenta estruturar, para dele se ter consciência, o espaço, mesmo se desconhecido, é objecto de uma descrição como se ele estivesse articulado a priori, restando à arte o papel de o descrever. Ora A Estrada modifica esta situação. O tempo pura e simplesmente passa a um pano de fundo quase residual - como se depreende da citação que torna claro o divórcio do tempo com as pessoas -, onde uma ou outra analepse o manifesta, enquanto o espaço, tornado enigmático pelos acontecimentos, precisa agora de articulação narrativa para se tornar presença à consciência.
Após uma catástrofe que devastou a terra, pai e filho, ainda criança, fazem-se à estrada em busca do sul. A mãe desiste, a dada altura, perante a aparente inutilidade da viagem e suicida-se. A vida civilizada desaparecera e a vida, no sentido biológico, também. Restavam alguns homens e as ruínas das cidades que o fogo não tinha reduzido a cinza. Cormac McCarthy descreve aquilo que as teorias contratualistas do século XVII, nomeadamente a de Thomas Hobbes, chamavam estado de natureza. Um estado natureza que não é um imaginário estado anterior ao contrato social e à constituição de sociedades, mas uma irónica e trágica situação posterior à vida civilizada e à existência de sociedades. O que restava de seres humanos sobre a terra não formava uma sociedade, mas a encarnação dos princípios da guerra de todos contra todos e do homem como lobo do homem. No romance de McCarthy, esta ideia não é uma mera metáfora mas descrição literal da nova situação sobre a terra. Finda a vida biológica nesta, desaparecidos plantas e animais, restava para alimentar os homens remanescentes da catástrofe a comida conservada e outros homens, em especial crianças. O espaço é cartografado a partir desta nova realidade. Pai e filho viajam para sul, mas o importante é evitar o contacto com outros seres humanos, procurar lugares onde se ocultem, onde possam fazer fogo sem serem avistados. A escrita espacializa-se para reconstruir o topos que a catástrofe desfizera, para reconfigurar sentido às cidades e campos devastados, sentido sempre ligado à sobrevivência e à busca de comida.
Se o espaço é fundamental, já o tempo perdeu sentido. O calendário desapareceu, desapareceram as divisões da temporalidade. Não sabem, pai e filho, o dia da semana, o mês ou o ano. Escrito numa altura em que ainda se ouviam ecos da tese do fim da história, de que Francis Fukuyama foi a última voz, este romance representa um efectivo ensaio no pós-história. A tese de Fukuyama tem, aparentemente, pouco a ver com isto. Refere-se à ausência, depois da morte do fascismo e do socialismo, de uma alternativa civilizacional ao liberalismo. O que Cormac McCarthy mostra é que a pós-história é uma distopia, um espaço privado de tempo, uma quase impossibilidade de vida, muito longe dos devaneios utópicos de uma sociedade liberal consumada. Não quer dizer que alguns traços do liberalismo não permaneçam na nova situação. A concorrência pela possibilidade de viver torna-se drástica e o espaço para a solidariedade entre os homens, para o espírito de comunidade e do seu bem, é nulo.
A Estrada pode ser lida assim como uma terrível alegoria das sociedades liberais, certamente sobre a vida nos Estados Unidos. Esta alegoria tem por referente metafórico a devastação comunitária. Os centros de poder legítimos são substituídos pela força de grupos nómadas que pura e simplesmente se unem para caçar outros homens como fonte de alimento. Há um estranho paralelismo entre estes grupos do romance distópico de McCarthy e os novos poderes mundiais, poderes sem rosto, nómadas, evanescentes, que administram a vida planetária através do espaço virtual. Poderes que actuam como caçadores furtivos e cujo objecto de caça são os próprios homens, os seus rendimentos e os seus parcos haveres. A Estrada manifesta-nos, ou profetiza, o significado de viver quando a comunidade é destruída e devastada. A catástrofe que destruiu a civilização na Terra nunca é identificada pelo autor. Foi um acontecimento. Foi o acontecimento que deu origem ao novo mundo, mas ele fica sempre impreciso. Catástrofe nuclear? Não há uma única referência ao medo de radiações. A catástrofe inicial e o fogo que, posteriormente, reduz parte substancial do planeta a cinzas podem ainda ser lidas como metáforas do fogo interior, da razão que o homem transporta em si, mas de um fogo interior e de uma razão pervertidos. A perversão desse fogo doado por Prometeu aos homens talvez seja a verdadeira causa que gerou a situação descrita. Não é a perversão da razão o princípio de devastação das comunidades humanas?
A Estrada é o romance de uma viagem. Quando na cultura ocidental a literatura toca a temática da viagem, o modelo prototípico que de imediato nos ocorre é o retorno de Ulisses a Ítaca. Contudo, há uma outra viagem que tem um papel central na cultura do Ocidente. Esta é narrada em Mateus 2: 13-23. Trata-se da fuga da sagrada família para o Egipto, depois da adoração dos magos e perante a ameaça de Herodes matar o Menino. Não é a de um retorno à pátria como a de Ulisses, mas uma viagem, dentro da economia e da história da salvação, de protecção do princípio de esperança representado pelo filho da Virgem Maria. Também a deslocação para o sul narrada por Cormac McCarthy tem esse sentido. É uma variação desse modelo, estranha variação onde a mãe, em desespero, escolhe a morte em vez de prosseguir caminho, e abandona o cuidar da criança ao pai e a esperança ao próprio filho. O rapaz é levado para um sítio onde talvez fosse possível fugir ao cruel destino de ser devorado por outros homens. Isso não seria apenas a salvação da criança, mas permitiria a preservação do fogo, pois ela era o transportador do fogo - fogo da razão e fogo do bem - oferecido aos homens por Prometeu, um fogo novamente puro e inocente, não pervertido pelo uso egoísta e solipsista das sociedades contemporâneas. Que o pai morra à chegada a esse sul mítico, mas também devastado, e o rapaz encontre casualmente uma família de acolhimento representa um princípio de esperança para os homens, apesar da devastação cruel que sobre eles caiu. A viagem é, sem que alguma vez tal se refira, um exercício sobre as virtudes teologais. O amor do pai pelo filho alimentou a fé que permitiu preservar a esperança.
Cormac McCarthy (2007). A Estrada. Lisboa: Relógio d'Água. Tradução de Paulo Faria.
Há uma estreita relação entre o acto de narrar e a compreensão da temporalidade. Tempo e narrativa são duas formas de discurso, e a narrativa romanesca é um discurso que capta, inscreve e cartografa o decurso - i e, o discurso - do tempo. A Estrada (The Road), um romance de Cormac McCarthy publicado em 2006, é uma estranha experiência devido ao espaço tomar o lugar do tempo como elemento articulado pela narrativa. Se o tempo é enigma que a actividade romanesca tenta estruturar, para dele se ter consciência, o espaço, mesmo se desconhecido, é objecto de uma descrição como se ele estivesse articulado a priori, restando à arte o papel de o descrever. Ora A Estrada modifica esta situação. O tempo pura e simplesmente passa a um pano de fundo quase residual - como se depreende da citação que torna claro o divórcio do tempo com as pessoas -, onde uma ou outra analepse o manifesta, enquanto o espaço, tornado enigmático pelos acontecimentos, precisa agora de articulação narrativa para se tornar presença à consciência.
Após uma catástrofe que devastou a terra, pai e filho, ainda criança, fazem-se à estrada em busca do sul. A mãe desiste, a dada altura, perante a aparente inutilidade da viagem e suicida-se. A vida civilizada desaparecera e a vida, no sentido biológico, também. Restavam alguns homens e as ruínas das cidades que o fogo não tinha reduzido a cinza. Cormac McCarthy descreve aquilo que as teorias contratualistas do século XVII, nomeadamente a de Thomas Hobbes, chamavam estado de natureza. Um estado natureza que não é um imaginário estado anterior ao contrato social e à constituição de sociedades, mas uma irónica e trágica situação posterior à vida civilizada e à existência de sociedades. O que restava de seres humanos sobre a terra não formava uma sociedade, mas a encarnação dos princípios da guerra de todos contra todos e do homem como lobo do homem. No romance de McCarthy, esta ideia não é uma mera metáfora mas descrição literal da nova situação sobre a terra. Finda a vida biológica nesta, desaparecidos plantas e animais, restava para alimentar os homens remanescentes da catástrofe a comida conservada e outros homens, em especial crianças. O espaço é cartografado a partir desta nova realidade. Pai e filho viajam para sul, mas o importante é evitar o contacto com outros seres humanos, procurar lugares onde se ocultem, onde possam fazer fogo sem serem avistados. A escrita espacializa-se para reconstruir o topos que a catástrofe desfizera, para reconfigurar sentido às cidades e campos devastados, sentido sempre ligado à sobrevivência e à busca de comida.
Se o espaço é fundamental, já o tempo perdeu sentido. O calendário desapareceu, desapareceram as divisões da temporalidade. Não sabem, pai e filho, o dia da semana, o mês ou o ano. Escrito numa altura em que ainda se ouviam ecos da tese do fim da história, de que Francis Fukuyama foi a última voz, este romance representa um efectivo ensaio no pós-história. A tese de Fukuyama tem, aparentemente, pouco a ver com isto. Refere-se à ausência, depois da morte do fascismo e do socialismo, de uma alternativa civilizacional ao liberalismo. O que Cormac McCarthy mostra é que a pós-história é uma distopia, um espaço privado de tempo, uma quase impossibilidade de vida, muito longe dos devaneios utópicos de uma sociedade liberal consumada. Não quer dizer que alguns traços do liberalismo não permaneçam na nova situação. A concorrência pela possibilidade de viver torna-se drástica e o espaço para a solidariedade entre os homens, para o espírito de comunidade e do seu bem, é nulo.
A Estrada pode ser lida assim como uma terrível alegoria das sociedades liberais, certamente sobre a vida nos Estados Unidos. Esta alegoria tem por referente metafórico a devastação comunitária. Os centros de poder legítimos são substituídos pela força de grupos nómadas que pura e simplesmente se unem para caçar outros homens como fonte de alimento. Há um estranho paralelismo entre estes grupos do romance distópico de McCarthy e os novos poderes mundiais, poderes sem rosto, nómadas, evanescentes, que administram a vida planetária através do espaço virtual. Poderes que actuam como caçadores furtivos e cujo objecto de caça são os próprios homens, os seus rendimentos e os seus parcos haveres. A Estrada manifesta-nos, ou profetiza, o significado de viver quando a comunidade é destruída e devastada. A catástrofe que destruiu a civilização na Terra nunca é identificada pelo autor. Foi um acontecimento. Foi o acontecimento que deu origem ao novo mundo, mas ele fica sempre impreciso. Catástrofe nuclear? Não há uma única referência ao medo de radiações. A catástrofe inicial e o fogo que, posteriormente, reduz parte substancial do planeta a cinzas podem ainda ser lidas como metáforas do fogo interior, da razão que o homem transporta em si, mas de um fogo interior e de uma razão pervertidos. A perversão desse fogo doado por Prometeu aos homens talvez seja a verdadeira causa que gerou a situação descrita. Não é a perversão da razão o princípio de devastação das comunidades humanas?
A Estrada é o romance de uma viagem. Quando na cultura ocidental a literatura toca a temática da viagem, o modelo prototípico que de imediato nos ocorre é o retorno de Ulisses a Ítaca. Contudo, há uma outra viagem que tem um papel central na cultura do Ocidente. Esta é narrada em Mateus 2: 13-23. Trata-se da fuga da sagrada família para o Egipto, depois da adoração dos magos e perante a ameaça de Herodes matar o Menino. Não é a de um retorno à pátria como a de Ulisses, mas uma viagem, dentro da economia e da história da salvação, de protecção do princípio de esperança representado pelo filho da Virgem Maria. Também a deslocação para o sul narrada por Cormac McCarthy tem esse sentido. É uma variação desse modelo, estranha variação onde a mãe, em desespero, escolhe a morte em vez de prosseguir caminho, e abandona o cuidar da criança ao pai e a esperança ao próprio filho. O rapaz é levado para um sítio onde talvez fosse possível fugir ao cruel destino de ser devorado por outros homens. Isso não seria apenas a salvação da criança, mas permitiria a preservação do fogo, pois ela era o transportador do fogo - fogo da razão e fogo do bem - oferecido aos homens por Prometeu, um fogo novamente puro e inocente, não pervertido pelo uso egoísta e solipsista das sociedades contemporâneas. Que o pai morra à chegada a esse sul mítico, mas também devastado, e o rapaz encontre casualmente uma família de acolhimento representa um princípio de esperança para os homens, apesar da devastação cruel que sobre eles caiu. A viagem é, sem que alguma vez tal se refira, um exercício sobre as virtudes teologais. O amor do pai pelo filho alimentou a fé que permitiu preservar a esperança.
Cormac McCarthy (2007). A Estrada. Lisboa: Relógio d'Água. Tradução de Paulo Faria.
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