quarta-feira, 11 de abril de 2012

Poema 39 - Não sei de que falas se dizes amor


Não sei de que falas se dizes amor.
Estranha língua a do sentimento,
Praia cinzenta de rochas escarpadas,
Sem sol ou ondas em movimento.

Que destino ou dor pretendes celebrar,
Ao deixar a língua pela gramática,
Onde um fogaréu encontra na sintaxe
A desordem do seu acontecimento?

Hoje prefiro os dias de grande penúria,
Andar solitário por caminhos sem fim,
A escutar o rosnar obscuro do coração.

Tanto sentimento entorpece a alma,
Que de livre se torna cativa,
E cega vê vida na areia mortal da paixão.

4 comentários:

  1. Aqui estou sem saber se comente, se me deixe estar sossegada.

    Mas, enfim, tenho dificuldade em resistir a algumas tentações pelo que aqui vai: belíssimo poema, belíssimo mesmo. Belíssimo e, se não é sentido, é bem encenado.

    Em coisas assim é absurdo dar palpites que isto é daquelas coisas em que cada um sabe de si e, se isto é encenação, ainda mais absurdo é comentar - mas faz-me impressão ler que a língua do sentimento é uma coisa assim, cinzenta, águas paradas. Onde? Em que terra? Em que parte do mundo? Isso não é sentimento, isso é aborrecimento. Sentimento e esse a que se refere é o oposto: paisagem diversa, ondas encapeladas, sol e chuva e sombra e vento e acalmia e vendaval. Ou não?

    Mas, enfim, não ligue.

    O poema é, como sempre, muito belo e não é apenas uma composição de palavras, tem substância e é poesia mesmo.

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  2. Há coisas que nos ultrapassam. As palavras escolhem-se umas às outras e ali ficam. O meu ideal seria interferir o menos possível com elas, deixar-me instruir pelas suas associações, ser apenas um mediador. Infelizmente, não cheguei a esse grau de mestria (digamos assim). O ideal seria morrer para que a linguagem viva e fale, morrer, apagar-me, subtrair-me do que escrevo, retirar da escrita o que me pertence empiricamente. Isso, como disse, é um ideal, uma ideia reguladora do trabalho poético. Mas falo por mim. Cada um que escreve saberá de si.

    Seja como for, tento separar o meu sentimento daquilo que as palavras sentem quando se procuram. Eu também veria o sentimento assim, encapelado. Mas isso sou eu, o poema vê-o de forma diversa, o que não deixou de me surpreender.

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  3. Palavras maravilhosas, essas suas. Gosto imenso do que agora escreveu (escrevi primeiro 'gostei' mas substituí pela forma no presente, 'gosto' - para durar mais tempo).

    Existe um outro 'eu' dentro da cabeça das pessoas que pensa e se exprime de maneira diferente da usual no 'dono da cabeça'? Se calhar há, é isso a criação, não é?

    Mas surpreende, não é?

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  4. Não sei se é um outro eu, se é apenas a língua que é um organismo vivo, um organismo que me antecedeu e que permanecerá quando eu já cá não estiver. Começamos sempre por fazer da língua um instrumento comunicacional, mas ela é mais do que isso. A filosofia do XX esteve muito atenta a esse fenómeno. O ideal poético - pelo menos o meu, se eu fosse capaz de o realizar - seria deixar a língua falar, não intrometer a minha fala, mas isso é um exercício muito difícil.

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