quinta-feira, 5 de abril de 2012

Competências transversais


Lembro-me perfeitamente da primeira aula a que assisti na universidade. Um exercício doloroso. Falavam português, pelo menos parecia, mas tendencialmente não compreendi rigorosamente nada do que ali se dizia. E havia alunos que falavam muito e, aparentemente, muito bem. Pelo menos a fluência era notável (mais tarde descobri que eram finalistas com a disciplina em atraso). Aquela não era a minha língua materna. Esta história é análoga a uma outra passada, muito depois, com um colega meu. Estando ele a ler em alemão o Sein und Zeit, de Heidegger, pediu a uns alemães que conhecia, gente não ligada à filosofia, para lerem duas ou três linhas da obra. Fizeram-no, mas não perceberam nada, disseram. Nem parecia alemão. Que experiências são estas onde se descobre a existência de uma pluralização de línguas maternas?

A ideia de competências transversais, ainda em voga no jargão escolar, sempre me irritou. Diria que essa ideia não passa de uma porta para noite, aquela noite, como dizia Hegel, onde todos os gatos são pardos. Falar em competências transversais é abrir o caminho para a indistinção e a indiferenciação. A língua portuguesa - pobre língua - é um exemplo recorrente de tal transversalidade competencial. Como a ideia me irrita, sempre usei a língua portuguesa como contra-exemplo da utilidade da malfadada noção. 

A língua portuguesa não é nenhuma competência transversal às várias disciplinas que se leccionam no ensino secundário ou no básico. A língua portuguesa não existe fora dos usos diferenciados que dela fazemos. O uso da língua portuguesa não é o mesmo se se trata de um texto argumentativo em Filosofia, de uma reflexão histórica, da análise de um mapa em Geografia, da elaboração de um relatório experimental em Biologia, da exposição de um problema matemático, da construção de uma narrativa romanesca ou da elaboração de um poema. São tudo territórios estrangeiros uns aos outros e cada um possui a sua língua portuguesa.

O importante não é a transversalidade da língua, mas a aprendizagem dos seus usos diferenciados. Se Portugal fosse um país normal, coisa que todos sabemos não ser, dever-se-ia submeter intensamente os alunos a múltiplas experiências particulares do uso da língua, para que aprendessem a especificidade não apenas léxico-conceptual das disciplinas, mas também semântica ou mesmo sintáctica, caso certas áreas do saber sejam dadas a usos sintácticos menos comuns ou a construções mais complexas. Só a experiência diferencial dos vários jogos de linguagem - nos quais se realiza a língua portuguesa ou qualquer outra - capacita o ser humano para lidar com uma realidade complexa e lhe permite orientar-se na floresta de símbolos e de usos linguísticos que compõem a vida.

A ideia  competência transversal é, no caso da língua, errada ontologicamente pois supõe a existência de uma língua portuguesa invariante nos seus múltiplos usos, requeridos pelos diversos contextos pragmáticos onde alguém tem de tomar a palavra, oralmente ou por escrito. Todo o ensino escolar da língua materna é um processo de diferenciação. Há um núcleo comum (mas socialmente diferenciado) que a criança apreende em família, nos primeiros anos de vida. Depois, ao entrar na escola, começa o processo de diferenciação. Distingue-se a oralidade da escrita, esta da leitura. Continua com a aprendizagem gramatical, onde aprende a diferenciar formas e funções dentro da língua. Isto deveria ser feito com muito, mas mesmo muito, cuidado e exigência nos primeiros anos de escolaridade. Quando a aprendizagem se disciplinariza, o que se pretende não é transversalidade, mas usos específicos e diferenciados da língua. A retórica sobre a transversalidade da língua portuguesa serve para ocultar algo que correu mal (agora não interessam os motivos) nos processos iniciais do trabalho escolar com a língua portuguesa.

É errada do ponto de vista do processo de aprendizagem, pois releva de uma suposição inconfessada e incorrecta. Supõe-se que um ensino transversal facilitaria aos alunos estabelecer conexões entre as várias disciplinas. Ora essa capacidade de fazer ligações não resulta de um hipotético ensino transversal - que nunca seria mais que uma amálgama de elementos heteróclitos em processo de indiferenciação -, mas do aprofundamento das diferenças e da inteligência que essas diferenças desenvolvem. A multiplicidade disciplinar não é uma simples reprodução da especialização dos saberes, mas um processo de desenvolvimento da inteligência, submetendo-a a diferentes saberes, métodos de trabalho e usos de linguagem.

Quanto mais se aprofunda um uso da linguagem mais capacidade se adquire para apreender outros usos diferenciados. Se a ênfase residir no aprofundamento (e não na superficialidade com que hoje em dia se toca em tudo) - de acordo com as fases etárias - de várias usos linguísticos, então estar-se-á a fomentar a plasticidade da inteligência e a capacidade de entrar nos diversos jogos da linguagem que a vida nos propõe ou impõe. Isto não é um problema de hoje. No meu tempo, já era assim. A experiência de estar num país estrangeiro nas primeiras aulas da universidade não é, por certo, uma anomalia apenas minha.

2 comentários:

  1. Na realidade, algumas vezes tenho utilizado esse termo que vigora nas orientações programáticas da disciplina de Português, para o ensino básico e secundário, e agora me dou conta do problema do seu uso. Sempre entendi o uso do termo nos programas disciplinares como uma necessidade de alertar os docentes para a sua responsabiblidade em ensinar a pensar através da Língua Portuguesa, sabendo que pensar em filosofia exige um conhecimento pragmático, morfológico e sintático diferente da Matemática, da Geografia e outras. Concordo absolutamente com o ponto de vista colocado, não me choca, no entanto, que se utilize o termo transversalidade, para nos referirmos a realidades que, ainda que distintas, se poderão tocar. Tenho ouvido frequentemente professores de matemática apontarem como problema dos maus resultados da sua disciplina o facto de os alunos não saberem interpretar, demitindo-se do problema. Sempre defendi que interpretar na matemática, na geografia, no português são coisas diferentes e que exigem um ensino explícito. Num ano em que lecionei estudo acompanhado, tentando ajudar os alunos a interpretar questões da matemática, alunos do 7º ano, verifiquei que nem eu mesma sabia interpretar as questões e duas conclusões se me colocaram: não compreendi porque as questões estavam mal colocadas; ou não compreendi porque as questões eram colocadas de acordo com a gramática da disciplina da matemática. Claro que só posso considerar a última conclusão, pois, ainda que faça bem contas de aritmética, a matemática não é o meu forte, mas sinto-me bem na área das humanidades, ainda que contra corrente nos tempos que correm.
    Um Boa Páscoa

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    1. Claro, Margarida. A gramática utilizada no "português matemático" não é a mesma. Acho que todos fizemos essa experiência. O que se passa quando os professores de matemática se queixam de que os alunos não compreendem o português é uma distorção da realidade. De facto, eles não compreendem o "português matemático". Talvez por isso, por essa falta de consciência, o problema nunca é trabalhado profundamente e a culpa é sempre do português. Enfim...

      Boa Páscoa.

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