quarta-feira, 23 de maio de 2012

Leitura e morte

Henri Matisse - La liseuse sur fond noir (1939)

Julgo que é Paul Ricoeur que chama a atenção para a semelhança entre o acto de ler e a interpretação de uma peça musical. Uma sinfonia só vem à existência no acto de ser tocada. Também um romance ou um poema apenas têm um existência virtual se não forem lidos. Ler, seguindo a analogia proposta, é reconstruir e fazer existir os mundos que as palavras, nas concatenações que tecem os textos, permitem actualizar pela leitura. No entanto, há uma questão onde a analogia não é pregnante. Na execução de uma sinfonia, o corpo, seja do maestro ou dos músicos, está em acção, mobilizado na sua máxima tensão. Uma execução musical é um exercício físico onde o corpo se manifesta na sua materialidade e na destreza que transforma o biológico em virtuosismo artístico.

A leitura, contudo, introduz uma relação ambígua com o corpo. A actualização dos mundos que a obra literária - ou outra - propõe mobiliza de forma mínima a motricidade humana, exigindo mesmo uma suspensão de grande parte da actividade corporal. Enquanto no exercício musical todo o corpo está em jogo, na leitura o corpo tem de estar presente e, ao mesmo tempo, ausentar-se de nós para não nos perturbar no que estamos a ler. A música, ao ser executada, é uma expressão contínua do vigor corporal e uma espécie de hino à capacidade activa da humanidade. Ler, por seu turno, é um estranho caso de pôr entre parêntesis a vida e a acção. 

Platão dizia que a filosofia era uma aprendizagem de morrer e de estar morto, devido à ascese que ela implicaria. Não é preciso ir tão longe, não é preciso chamar à colação a filosofia. Ler é um compromisso entre a vida e a morte. A leitura foi uma estratégia que a humanidade inventou para aprender a aceitar a morte. Talvez se perceba por aí as razões por que tanta gente tem horror à leitura. Contrariamente ao que se diz, essas razões são boas razões, provêm da vitalidade animal que faz parte da espécie. Seja como for, e apesar dessa bondade natural, são razões infantis. Quando estamos a ler e suspendemos o corpo estabelecemos contacto com a nossa morte, vivêmo-la no corpo, enquanto o espírito - razão e imaginação - recompõem universos onde a vida seria possível. Ler não nos ensina nada de essencial a não ser a aceitação da nossa condição mortal, a aceitação da nossa morte. 

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