quarta-feira, 4 de maio de 2016

Telenovelas noticiosas

Tom Wesselmann - TV Still Life (1965)

Sempre que vejo um telejornal sinto uma enorme náusea. Em tempos, os serviços noticiosos das televisões visavam informar, o mais objectivamente possível, os cidadãos. Inscreviam-se ainda numa visão do mundo consubstanciada na velha frase de Hegel “a leitura dos jornais pela manhã é a oração do homem moderno”. A informação sobre o estado do mundo era um elemento central para a tomada de decisão. A informação pretendia-se descritiva, sintética e, dentro do possível, objectiva, neutra e imparcial. Ela era dirigida à razão e pressupunha a capacidade de entender o mundo para além das emoções que os seus acontecimentos provocavam no agente racional.

Hoje em dia, os telejornais substituíram a descrição sintética dos factos pela narrativa. Não se dão notícias, produzem-se pequenas telenovelas, onde os jornalistas, obrigados a ocupar largos minutos de antena com um palavreado oco, funcionam como elemento concatenador que solda os vários elementos da intriga. Ouvem-se múltiplas pessoas e até, se possível, várias perspectivas sobre o assunto em questão. Dá-se a ilusão de uma multiplicidade de pontos de vista, assente na ideia de que a verdade do acontecimento resulta do jogo das intersubjectividades, cada uma das quais expressa a sua particular verdade. Seja um ataque terrorista, um acidente, uma greve, um acontecimento político ou desportivo, o modelo é sempre o mesmo.

Esta substituição da descrição sintética e objectiva da factualidade pela narração telenovelesca tem, como se pode constatar, uma consequência nos noticiários televisivos. Deixaram de ser informação e passaram a ser entretenimento. Péssimo entretenimento, mas entretenimento. O corolário disto é que os acontecimentos já não conduzem a qualquer tomada de posição nem de decisão. A informação deixou de orientar-se para a razão. O fundamental não é saber a verdade sobre os factos e o que se pode e deve fazer perante aquele estado do mundo, mas saber como evolui a intriga e acaba a história. Depois de consumida esta, espera-se pela próxima novela. O suporte informativo de decisões racionais foi substituído por uma máquina de produção de pequenas excitações e de emoções fáceis e de baixo custo.

Não se pense, porém, que tudo isto resulta de uma cabala tenebrosa para manter a população alienada. Haverá, por certo, múltiplos factores que conduziram a informação ao estado actual. Salientem-se dois. Em primeiro lugar, a tomada de consciência, pelos responsáveis informativos, da importância crucial, na vida dos homens, da narrativa, do contar histórias. O homem é um animal narrativo, tem paixão pela intriga e um prazer específico em descobrir como se desata o nó que cada acontecimento encerra. Em segundo lugar, a própria democratização das sociedades de massas criou um mercado para este tipo de telenovelas noticiosas. A degradação da informação em entretenimento não é uma conspiração dos poderosos, mas uma exigência das pessoas. São elas que constituem o mercado para o qual se orientam as televisões. Como em tudo, também na qualidade da informação – neste caso, na sua degradação em entretenimento – vê-se reflectida a natureza cultural e cívica da comunidade que a consome. Um estranho destino para a esfera pública burguesa nascida das exigências da razão crítica.

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