Marcel Duchamp - A Fonte (1917)
Uma brincadeira de um rapaz de 17 anos levou uma série de visitantes
do Museu San Francisco de Arte Moderna, nos EUA, a admirarem um par de óculos colocados
propositadamente (e provocatoriamente) no chão pelo jovem bem-humorado. As pessoas
aproximavam-se respeitosamente da “obra de arte”, mantendo a distância
convencionada. Houve quem tirasse fotografias (ler aqui). Li comentários onde se verberava
a tolice dos espectadores. A verdade, porém, é que a brincadeira com a arte
moderna – que não é a primeira e, certamente, não será a última – levanta um inusitado
problema. Talvez o público reverente do par de óculos não seja tão idiota.
Quase cem anos antes, em 1917, Marcel Duchamp, sob o pseudónimo de R.
Mutt, envia um urinol de porcelana (denominado por ele A Fonte) para a Exposição da Sociedade de Artistas Independentes de
Nova Iorque. O Presidente da sociedade rejeita a obra, alegando não tratar-se
de arte. Encontramos em Nigel Warburton a argumentação corrente em sentido contrário. A Fonte é arte porque o autor “pegou
num objecto vulgar do dia a dia, colocou-o de modo que o seu significado útil
desaparecesse sob o novo título e perspectiva – criou um novo pensamento para
esse objecto”. É a reconceptualização do objecto, a alteração semântica e a concomitante
mudança de estatuto ontológico que o transformam em arte.
Entre o episódio de 1917 e o de 2016 percebe-se que a atitude do
público se alterou radicalmente. Da rejeição do Presidente da Sociedade de
Artistas (que pode ser visto como um porta-voz do público) até à admiração
respeitosa dos óculos farsantes, em 2016, vai um longo caminho. Se a
proliferação de objectos ansiosos, como A
Fonte, de Duchamp, no campo das artes, pretenderia questionar os limites do
que é e não é arte, dessacralizando-a, retirando-lhe a aura com que a cultura a
tinha investido, o efeito, contudo, não deixa de ser surpreendente. Não são os
objectos artísticos que perdem a aura, são os objectos banais e quotidianos que
a ganham, desde que entrem em certos espaços.
Aqui devemos mobilizar as velhas categorias de Mircea Eliade, o
sagrado e o profano. Observe-se o comportamento do público perante o par de
óculos (aliás, o comportamento normal num museu ou numa galeria de arte). Uma atitude
reverente e de admiração, marcada pela justa distância que se deve ter perante
o que é sagrado e uma aproximação suficiente para que a graça presente no
objecto artístico transborde para a nossa compreensão do mundo. Ora, perante
estas situações, a questão que se levanta é o que é arte e o que não é. O
público intuiu pelo menos uma coisa. A arte não depende da intenção do produtor
do objecto. É arte aquilo que entra no espaço sagrado, que é arrancado à
dimensão profana da existência e, por ter entrado num certo topos, é sacralizado. O topos sagrado pode ser físico (um Museu,
uma galeria, etc.), mas pode ser meramente conceptual. Um espaço mental,
composto por conceitos, juízos e argumentos, onde se sacraliza como arte certos
objectos que são de alguma forma atraídos para esse espaço.
Dir-se-á, então, que tudo pode ser arte. Só a ideia indispõe muita
gente. A resposta a esta questão começou a ser dada logo no início da
Filosofia, por Tales de Mileto: tudo está
cheio de deuses. Tudo tem um carácter sagrado. Sendo assim, tudo tem em si
a possibilidade de ser trazido para o espaço sagrado e ser reconhecido como
objecto artístico. Não é a intenção do autor que dá o estatuto artístico a um
objecto. É a unção que lhe é conferida, é o estar num certo espaço sagrado
(museu, galeria, templos, etc.). O par de óculos jocosamente deixados no chão
por um adolescente bem-humorado ganhou o estatuto de arte porque o espaço onde
estava o investiu com esse estatuto. O objecto articulava-se sintacticamente com
os outros objectos e integrava-se, já sem qualquer inovação, no campo semântico
da arte. O que esta história tem de mais interessante é a revelação de que a
autonomização da arte relativamente à religião é impossível. O sagrado volta
sempre, nem que seja sob a forma de uns óculos provocatoriamente postos ali
para testar o público. E o público respondeu compreendendo, como Tales e
Mileto, que ali, naquele singelo par de óculos, também estão os deuses.
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