Adolph von Menzel - The Iron Rolling Mill
Uma das coisas que mais indigna as pessoas de direita é a ostentação,
pela esquerda, de uma presumida superioridade moral. Esta presunção não vem
claramente do facto dos indivíduos de esquerda serem mais virtuosos moralmente que os de direita. Não é um problema de consciência moral singular. Também
não vem de qualquer constatação empírica que, hoje em dia, possamos fazer dos
regimes políticos não democráticos, onde só a esquerda governou. A história dos
últimos três séculos ajuda, porém, a perceber o fenómeno. Ajudar a perceber um
fenómeno não significa, todavia, que forneça argumentos suficientes para justificar a sua racionalidade. Três acontecimentos, da história mundial, são centrais na
emergência e manutenção dessa crença difusa acerca da superioridade moral da
esquerda. A história não justifica, embora ajude a compreender.
Comecemos por onde começou a divisão, a Revolução Francesa. Na
Assembleia Nacional, os partidários do Ancien
Régime sentavam-se à direita do
presidente, os adversários estavam à esquerda. O carácter iníquo do Ancien Régime, pleno de privilégios para
uns e de exacerbadas corveias para outros, de estatutos sociais completamente
fechados, etc., colou-se, talvez de forma indelével, à direita, mesmo quando a
direita é, pela sua própria natureza liberal, adversária do Ancien Régime. A iniquidade do Ancien Régime era de tal modo clara que
mesmo revolucionários moralmente pouco recomendáveis, como depois se viu na
época do Terror, pareciam um catálogo de virtudes morais e cívicas. A direita
que estava em causa, porém, era uma direita feudal, digamos assim.
Um segundo acontecimento histórico chega-nos de Inglaterra. Está
ligado à Revolução Industrial e, fundamentalmente, à forma como, através de
expedientes legais (absolutamente imorais), como a Lei dos Cercados, se
constituiu o proletariado que trabalhou nas fábricas da Inglaterra dos finais
do XVIII e no XIX. A destruição dos velhos direitos medievais atirou uma
quantidade incalculável de gente livre (uma ironia, livre do senhorio mas
também da terra que a sustentava) para a proletarização e para condições de
trabalho atrozes. Quando os movimentos operários nasceram, quando a esquerda
social emergiu, a imoralidade dos processos de expulsão dos campos e da
situação nas fábricas vai contribuir, também ela, para colocar o rótulo imoral
à direita política que sustentou o processo e, ao mesmo tempo, dar uma caução
moral aos partidos operários. A direita que está em causa, neste caso,
aproxima-se já bastante da direita liberal, e pouco tem a ver com o caso
francês.
O terceiro acontecimento está ligado à história do século XX e à
subida ao poder dos fascismos e do nazismo. E estes movimentos subiram como
forma de poder das direitas nacionalistas. Com carácter ora mais totalitário,
como nos casos de Itália e Alemanha, ora mais ditatorial-paternalista, como no
caso de Portugal, estes regimes, claros inimigos dos movimentos operários mas
também da democracia liberal e do liberalismo clássico, tinham práticas
políticas e sociais que feriam os princípios, por frouxos que fossem, de
qualquer consciência moral. Embora por essa Europa fora as esquerdas não tenham
sido as únicas forças políticas a oporem-se-lhes, foram, na verdade o grande
motor de denúncia e de oposição. Em Portugal, porém, só as esquerdas se
opuseram sistematicamente ao salazarismo, enquanto as direitas, com a exclusão
da ala liberal de Sá Carneiro (um pequeno clube de meia dúzia de membros) durante
o marcelismo, estiveram completamente comprometidas com o regime. Também isto
contribuiu para esse sentimento de superioridade moral da esquerda, mesmo que o
exemplo da Revolução Bolchevique fosse, desde o início, moralmente muito pouco recomendável.
Esta descrição histórica justifica a presunção de que a esquerda, hoje
em dia, é moralmente superior à direita? Não, não justifica. Pois esquerda e
direita são conceitos mutáveis, não é sempre a mesma direita que está em causa,
nem sempre é a mesma esquerda que reivindica essa superioridade moral. Também
sabemos que regimes políticos onde a esquerda eliminou a concorrência política
se transformaram em regimes de grande abjecção moral. Embora a política nada
tenha a ver com a moral, os movimentos políticos, por necessidade instrumental
de legitimação perante a opinião pública, reivindicam para si posições morais.
Num próximo post far-se-á uma análise
das posições morais/imorais das direitas e das esquerdas que existem nos
regimes democráticos.
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