Émile-René Ménard - A banhista (1913)
Tu ne m’as
pas touchée encore
l’amour
passe par les yeux
et descend dans le cœur
l’amour de loin nous exerce
et nous perfectionne
et descend dans le cœur
l’amour de loin nous exerce
et nous perfectionne
mais qui
pourrait me toucher à presént
sinon toi?
sinon toi?
Je circule dans l’air
dans ce bois sacré
couloir de givre
dans ce bois sacré
couloir de givre
dans cette
auréole
(Jacqueline
Risset (1988) "Le Toucher" in L’amour de loin)
Tu não me tocaste ainda
o amor passa pelos olhos
e desce no coração
o amor de longe exercita-nos
e aperfeiçoa-nos
mas quem
poderia tocar-me agora
senão tu?
Eu circulo no ar
neste bosque sagrado
caminho de geada
nesta auréola
(Jacqueline Risset (1988) "Le Toucher" in L’amour de loin. Tradução minha)
Que melhor maneira de estragar um poema do que submetê-lo a um esquartejamento analítico? O belíssimo poema de
Jacqueline Risset pode ser dividido em três partes. A primeira é composta pelos
versos: Tu não me tocaste ainda // (…) //
mas quem // poderia tocar-me agora / senão tu? Só ela bastava para ser um
poema completo no seu poder encantatório. Uma segunda parte tem por tema o
amor: o amor passa pelos olhos / e desce no coração / o amor de longe
exercita-nos / e aperfeiçoa-nos. A
terceira descreve o estado em que se encontra e para onde se dirige o
sujeito poético, o eu: Eu circulo no ar / neste bosque sagrado / caminho de geada
/ nesta auréola.
A primeira parte – que tem intercalada em si a segunda – parece composta
por uma frase declarativa e uma construção interrogativa. A construção
interrogativa, na verdade, é uma declaração: “agora, só tu me podes tocar”. O
jogo centra-se em quem detém a possibilidade de tocar o sujeito poético, o eu.
Apesar de não o ter feito até agora (ainda…), só esse tu tem a
possibilidade de o fazer, só ele pode tornar o tocar uma realidade
efectiva. O que habilita esse tu a ter a possibilidade, o poder, de
tocar o eu?
A resposta está no que classificámos como segunda parte do poema, não
por acaso intercalada na primeira, como se essa posição no texto simbolizasse
aquilo que concede o poder de tocar. O agente habilitador do poder de tocar é o
amor. Isto, porém, diz-nos pouco. A estrofe começa por nos descrever o trânsito
do amor e contradiz a ideia de que o amor nasce no coração. Não, o amor é uma
transcendência, está fora de nós. Entra em nós ao passar pelos olhos. Só
depois, desce no coração. O amor vem de fora, entra pelos sentidos, e convoca-nos, impõe-se-nos
e toma conta do coração. Este carácter invasivo do amor – da posição desse tu
que desce no coração de um eu, através dos olhos – tem uma contrapartida.
É invasivo mas mantém a distância, está presente mas não está presente, ainda
não tocou mas já tocou. A razão sucumbe na contradição. A estrofe continua: o
amor de longe exercita-nos / aperfeiçoa-nos. Esta invasão na distância,
esta presença ausente, sublinha a natureza ascética do amor. O amor, mediado
pela distância, é exercício e caminho de perfeição.
É esse exercício e aperfeiçoamento a que o amor na distância induz que
cria a condição para que só esse tu possa tocar o eu. Mas qual
será o preço? Deste eu pouco sabemos, mas o poema descreve-nos o seu
estado. A última estrofe mostra-nos o resultado da ascese amorosa: o abandono
da vida corrente e a entrada no domínio do sagrado (no bosque sagrado),
a levitação (circulo no ar), o estado de glória (nesta auréola).
Quem pode tocar esse eu? Aquele que, enquanto amor, através do olhar o
invade e lhe desce no coração, fazendo-o levitar, entrar na pura glória, consagrando-o.
É na consagração pelo amor, todavia, que se joga a equivocidade e o fascínio
do poema. O eu levitante e glorioso é também, pela sua consagração, a
vítima, a hóstia (em latim, significa precisamente vítima) consagrada, aquela
que sente o frio da morte (caminho de geada) trazido pelo amor. O amor
não confirma o ego. Sacrifica-o. Como toda a verdadeira vítima sacrificial, o eu
prepara-se para o sacrifício pelo exercício e pelo aperfeiçoamento que o amor
de longe induz. Quando o eu se entregar em pura oblação ao tu, já não será um eu, um ego centrado em si, mas pura abertura, fenda, vazio que o tocar vai preencher e, desse modo, salvar.
Poema e texto belíssimos!
ResponderEliminarSerá que quando o "eu" se entrega ao "tu" em pura oblação, mais do que acontecer um "nós", dá lugar a uma transferência, um novo "tu"?
Abraço
Dará lugar não a um eu ou a um tu, mas a um outro, à pura diferença...
EliminarAbraço
Nada de diferente do que já antes lhe tinha dito mas, ainda assim, fico sempre com um bocado de má consciência. Se tiver tempo e paciência há-de dar uma espreitadela ao que lá escrevi hoje, no meu canto. Espero que não leve a mal. Já sabe que não me recomendo.
ResponderEliminarUm bom dia e boas leituras!
Percebo claramente o que diz. Ocorreu-me agora uma coisa sobre a análise poética. Há um prazer específico que lhe está associado. Esse prazer tem uma natureza infantil e é idêntico ao da criança que, depois de brincar com um certo brinquedo e porque gosta dele, o vai desmontar para ver como funciona. Esse desmontar nasce de um acto de amor. O que se pode concluir daqui? Que a análise é um acto infantil. Talvez, mas há uma outra possibilidade: pode-se concluir que o amor é uma coisa perigosa. Por exemplo, só analiso poemas de que gosto. Relativamente à criança o analista tem uma vantagem. O brinquedo desmontado raramente volta ao que era. O poema permanece na sua inteireza. Há ainda uma outra coisa, e essa é perversa. Há duas formas de pureza, a da razão e a do coração. A filosofia estriba-se na pureza da razão, a sua leitura da poesia, na pureza do coração. A análise provoca a contaminação e utiliza a razão para alcançar um excesso de gozo, para um prazer que ultrapassa o prazer inicial.
EliminarBom-dia