quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Leituras poéticas - Jacqueline Risset - "Le Toucher"

Émile-René Ménard - A banhista (1913)

Tu ne m’as pas touchée encore

l’amour passe par les yeux
et descend dans le cœur
l’amour de loin nous exerce
et nous perfectionne

mais qui

pourrait me toucher à presént
sinon toi?

Je circule dans l’air
dans ce bois sacré
couloir de givre

dans cette auréole
                                                 (Jacqueline Risset (1988) "Le Toucher" in L’amour de loin)

Tu não me tocaste ainda

o amor passa pelos olhos
e desce no coração
o amor de longe exercita-nos
e aperfeiçoa-nos

mas quem

poderia tocar-me agora
senão tu?

Eu circulo no ar
neste bosque sagrado
caminho de geada
nesta auréola
                                                 (Jacqueline Risset (1988) "Le Toucher" in L’amour de loin. Tradução minha)

Que melhor maneira de estragar um poema do que submetê-lo a um esquartejamento analítico? O belíssimo poema de Jacqueline Risset pode ser dividido em três partes. A primeira é composta pelos versos: Tu não me tocaste ainda // (…) // mas quem // poderia tocar-me agora / senão tu? Só ela bastava para ser um poema completo no seu poder encantatório. Uma segunda parte tem por tema o amor: o amor passa pelos olhos / e desce no coração / o amor de longe exercita-nos / e aperfeiçoa-nos. A terceira descreve o estado em que se encontra e para onde se dirige o sujeito poético, o eu: Eu circulo no ar / neste bosque sagrado / caminho de geada / nesta auréola.

A primeira parte – que tem intercalada em si a segunda – parece composta por uma frase declarativa e uma construção interrogativa. A construção interrogativa, na verdade, é uma declaração: “agora, só tu me podes tocar”. O jogo centra-se em quem detém a possibilidade de tocar o sujeito poético, o eu. Apesar de não o ter feito até agora (ainda…), só esse tu tem a possibilidade de o fazer, só ele pode tornar o tocar uma realidade efectiva. O que habilita esse tu a ter a possibilidade, o poder, de tocar o eu?

A resposta está no que classificámos como segunda parte do poema, não por acaso intercalada na primeira, como se essa posição no texto simbolizasse aquilo que concede o poder de tocar. O agente habilitador do poder de tocar é o amor. Isto, porém, diz-nos pouco. A estrofe começa por nos descrever o trânsito do amor e contradiz a ideia de que o amor nasce no coração. Não, o amor é uma transcendência, está fora de nós. Entra em nós ao passar pelos olhos. Só depois, desce no coração. O amor vem de fora, entra pelos sentidos, e convoca-nos, impõe-se-nos e toma conta do coração. Este carácter invasivo do amor – da posição desse tu que desce no coração de um eu, através dos olhos – tem uma contrapartida. É invasivo mas mantém a distância, está presente mas não está presente, ainda não tocou mas já tocou. A razão sucumbe na contradição. A estrofe continua: o amor de longe exercita-nos / aperfeiçoa-nos. Esta invasão na distância, esta presença ausente, sublinha a natureza ascética do amor. O amor, mediado pela distância, é exercício e caminho de perfeição.

É esse exercício e aperfeiçoamento a que o amor na distância induz que cria a condição para que só esse tu possa tocar o eu. Mas qual será o preço? Deste eu pouco sabemos, mas o poema descreve-nos o seu estado. A última estrofe mostra-nos o resultado da ascese amorosa: o abandono da vida corrente e a entrada no domínio do sagrado (no bosque sagrado), a levitação (circulo no ar), o estado de glória (nesta auréola). Quem pode tocar esse eu? Aquele que, enquanto amor, através do olhar o invade e lhe desce no coração, fazendo-o levitar, entrar na pura glória, consagrando-o. 

É na consagração pelo amor, todavia, que se joga a equivocidade e o fascínio do poema. O eu levitante e glorioso é também, pela sua consagração, a vítima, a hóstia (em latim, significa precisamente vítima) consagrada, aquela que sente o frio da morte (caminho de geada) trazido pelo amor. O amor não confirma o ego. Sacrifica-o. Como toda a verdadeira vítima sacrificial, o eu prepara-se para o sacrifício pelo exercício e pelo aperfeiçoamento que o amor de longe induz. Quando o eu se entregar em pura oblação ao tu, já não será um eu, um ego centrado em si, mas pura abertura, fenda, vazio que o tocar vai preencher e, desse modo, salvar.

4 comentários:

  1. Poema e texto belíssimos!
    Será que quando o "eu" se entrega ao "tu" em pura oblação, mais do que acontecer um "nós", dá lugar a uma transferência, um novo "tu"?

    Abraço

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    1. Dará lugar não a um eu ou a um tu, mas a um outro, à pura diferença...

      Abraço

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  2. Nada de diferente do que já antes lhe tinha dito mas, ainda assim, fico sempre com um bocado de má consciência. Se tiver tempo e paciência há-de dar uma espreitadela ao que lá escrevi hoje, no meu canto. Espero que não leve a mal. Já sabe que não me recomendo.

    Um bom dia e boas leituras!

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    1. Percebo claramente o que diz. Ocorreu-me agora uma coisa sobre a análise poética. Há um prazer específico que lhe está associado. Esse prazer tem uma natureza infantil e é idêntico ao da criança que, depois de brincar com um certo brinquedo e porque gosta dele, o vai desmontar para ver como funciona. Esse desmontar nasce de um acto de amor. O que se pode concluir daqui? Que a análise é um acto infantil. Talvez, mas há uma outra possibilidade: pode-se concluir que o amor é uma coisa perigosa. Por exemplo, só analiso poemas de que gosto. Relativamente à criança o analista tem uma vantagem. O brinquedo desmontado raramente volta ao que era. O poema permanece na sua inteireza. Há ainda uma outra coisa, e essa é perversa. Há duas formas de pureza, a da razão e a do coração. A filosofia estriba-se na pureza da razão, a sua leitura da poesia, na pureza do coração. A análise provoca a contaminação e utiliza a razão para alcançar um excesso de gozo, para um prazer que ultrapassa o prazer inicial.

      Bom-dia

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