Francisco Soto Mesa - "6.98.1" (1998)
Para que uma só coisa
vibre
na sua presença nua
para além da conjunção dos possíveis
é preciso que o silêncio a dispa
e o seu nome seja o seu próprio pudor
(António Ramos Rosa, A Intacta Ferida, 1991)
Perante um poema como este, a maior tentação do leitor é abandonar o sentido e deixar-se levar - vibrando - pelo som. Se a poesia é ritmo e harmonia, se ela é som, não é menos verdade que, através dela, a língua se reinventa e se descativa do uso quotidiano, que lhe rouba a sua originária natureza vibrátil, a qual remeteria para uma experiência de significação essencial da realidade das coisas, como se ela fosse a própria linguagem do mundo. Ao reinventar-se através da poesia, a linguagem retoma essa sua capacidade de significação originária, como se o mundo falasse através do poema. Por tudo isto, não devemos cair na tentação de abandonar sentido e mergulhar, autistas, na vibração rítmica do som do poema. Som e sentido são as duas faces que vibram na palavra poética.
Que coisa é essa que deve vibrar? Antes de entrarmos na coisa mesma, não será despiciendo demorarmos algum tempo perto do segundo verso constituído por uma única palavra: vibre. O que entender por vibrar? O seu amplo campo semântico vai daquilo que é mais exterior (um objecto que produz um conjunto de movimentos rápidos e repetitivos, vibrações) até ao que é mais íntimo e toca no que há de mais fundo no ser humano (o entusiasmo que nos faz vibrar, a felicidade que faz vibrar todo o ser), passando por aqui que estabelece comunicação entre seres (o fazer soar, o fazer ouvir, etc.). Nada no poema nos diz explicitamente a que ordem de vibração o uso do verbo vibrar se refere. O poema apenas nos fala do modo de vibrar e nas condições necessárias para que essa vibração, segundo o modo definido, se dê.
O modo de vibrar é dado pela singularidade, pela natureza única, daquilo que vibra: Para que uma só coisa / vibre. A singularidade da coisa que vibra não é o seu único modo de ser. Ela vibrará na sua presença nua. Essa coisa não é uma representação de qualquer outra coisa, mas uma verdadeira presença, algo que está aí e tem realidade (diria mesmo, tem um excesso de realidade). Uma presença nua. Na nudez dessa presença está o facto dela ser pura, não contaminada, de ser a presença mesma, em si e para si, aquilo que se dá ao leitor. Como é que eu, leitor deste enigmático poema, sei que essa coisa, essa pura presença, é uma realidade e não uma representação? O quarto verso esclarece: para além da conjunção dos possíveis. Para além do possível, daquilo que é meramente possível ou da conjunção de todos os possíveis, está aquilo que é, está o que possui realidade e não é uma mera possibilidade. Aquela singularidade que vibra é uma presença efectiva, uma realidade que está para além até da conjunção de todas as possibilidades.
Para que este modo de vibrar da coisa singular se dê, é necessário o quê? A última estrofe, constituída por um dístico, torna claro essas condições. Para que essa coisa singular e verdadeiramente real vibre, é preciso que o silêncio a dispa. O silêncio é o momento ascético que reduz essa enigmática coisa à sua nudez, à sua pureza. O silêncio é o caminho que leva à vibração da coisa. Mas não basta a ascese do silêncio. É necessário mais alguma coisa que o último verso enuncia assim: e o seu nome seja o seu próprio pudor. O pudor não significa que essa coisa que se despiu seja agora recoberta com novas vestes. Quem não sabe como o estar vestido pode ser infinitamente mais impudico que a pura nudez? O nome da coisa não é algo que a revista mas a sua própria natureza, dada na sua reserva e na sua modéstia. Para que essa coisa singular e real vibre - e faça vibrar - é necessário a ascese do silêncio e o recato do nome. Estamos quase na casa da religião, nesse lugar de modéstia e de esforço de purificação. Estamos quase, mas não é propriamente isso que está em causa, pelo menos à primeira vista.
Essa coisa singular e real que nos faz vibrar não é outra coisa senão a poesia, a palavra poética. Na palavra poética nós encontramos a tripla vibração: a vibração do mundo, a vibração do homem e a vibração que toda a comunicação entre homem e mundo exige. A poesia não representa nada. Ela não é um delegado ou um deputado que represente alguém ou alguma coisa. Ela é a pura presença do homem no mundo e do mundo no homem, ela é a comunicação misteriosa entre ambos. Nela, o sentido originário que a fala humana quotidiana escondeu torna-se vivo e presente. É disto, da poesia e da sua natureza, que nos fala este poema e nos falou até hoje, dia da sua morte, o poeta António Ramos Rosa.
Poeta único!
ResponderEliminar(...) o poema é uma tensão constante
entre o que se sente e a sua língua de vento
que modela a palavra(...)
Um abraço
Uma tensão constante. Parece-me o essencial, uma vibração.
EliminarAbraço