Vivemos tempos conturbados e cheios de equívocos. Isso tolda a razão
daqueles que deveriam ter um discernimento acima do senso comum. Não me refiro
ao triste caso de Engenheiro Sócrates, o qual pertence a um mundo que já
mostrou os frutos que tinha para dar. Refiro-me à visita do Papa Francisco ao
Parlamento Europeu e ao protesto do eurodeputado da Frente de Esquerda e
ex-candidato à presidência de França, Jean-Luc Mélenchon. Argumentou que, em
nome da laicidade das instituições europeias, o Papa não tinha que discursar em
Estrasburgo. Mélenchon e os seus apoiantes cometem dois erros. Um de princípio
e outro estratégico.
Ao nível dos princípios, não se compreende como o discurso de um líder
religioso afecte a laicidade das instituições. O Papa foi fazer catequese ao
parlamento europeu? Foi obrigar os deputados a converterem-se? O Papa tem poder
para anular a laicidade das instituições políticas europeias? O Papa quer
acabar com a laicidade dos Estados? Todas estas questões têm uma resposta: não.
A única coisa que subsiste no protesto de Mélenchon é o preconceito anticatólico,
tão ao gosto de um certo republicanismo francês e de uma esquerda que vive
presa a representações da religião próprias do século XIX. Este preconceito
cega-o para o dever de acolhimento de alguém que, do ponto de vista religioso e
social, é significativo para uma parte considerável dos cidadãos europeus.
Estrategicamente, ainda é mais incompreensível a atitude de Mélenchon.
Num momento em que para a generalidade das pessoas a vida se tornou difícil
senão mesmo um calvário, alienar a voz de um Papa, que se tem destacado por questionar
e criticar os actuais caminhos da economia e da política, raia a
irracionalidade. A voz de Francisco pode fazer muito mais pelos pobres,
deserdados e até pelas classes médias em desagregação do que todos os sermões
político-ideológicos a favor dos explorados e oprimidos.
O mundo mudou. Pessoas e instituições que ontem eram adversárias,
senão inimigas, têm hoje, devido ao avanço avassalador das posições
ultraliberais, mais pontos em comum do que de oposição. É evidente que o Papa
não sonha com revoluções nem com a imposição de uma ditadura do proletariado.
Como muitos moderados e como manda a doutrina social da Igreja, quer um mundo
onde os pobres tenham oportunidades, onde haja mobilidade social, onde a vida
de toda a gente seja decente. E isto é o mais importante. Para as pessoas é
indiferente que esse mundo chegue pela mão de A ou de B. O importante é que
venha. A esquerda deveria perceber isso, e deixar-se de conversa vazia e
retórica do século XIX.
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