sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Da imoralidade dos costumes

A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

Depois do trambolhão do reino Espírito Santo, pouca coisa mais merecerá o nome de escândalo. A pequena história dos vistos gold é um escandalozinho de vão de escada, coisa de funcionários, perante a sucessiva queda de bancos e banqueiros, gente idolatrada pelo poder e reverenciada pela comunicação social. É evidente que a entrada na União Europeia e a chegada de muito dinheiro criou uma cultura facilitadora destes comportamentos. A coisa mais fácil – mas também a mais inútil – que o país pode fazer é ver nestes episódios apenas um trágico e continuado conluio entre o dinheiro e a política. É não perceber onde está a raiz da questão.

A revista do Público de domingo passado trazia um trabalho, O Estado da Meritocracia em Portugal, que merece ser lido, pois ajuda-nos a compreender o chão de onde brotam os grandes problemas que afligem a sociedade portuguesa. O artigo só espantará os muito distraídos. O mais interessante é que torna evidente que não existe diferença de comportamento entre as instituições públicas e as empresas privadas. Mostra que o mérito dos indivíduos não é premiado em Portugal. Mesmo nas empresas privadas vale mais um incompetente com uma boa cunha do que alguém de qualidade, mas sem pedigree. A questão é mesmo mais grave. Ser competente pode ser um risco para a carreira de uma pessoa. Em geral, embora existam excepções, nas instituições públicas ou nas empresas privadas, a incompetência promove-se e é promovida. Esta cultura, velha de séculos, explica muito bem o nosso atraso. Mas explica mais do que isso.


Explica as teias de cumplicidade que brotam nos lugares de decisão, nos lugares onde o dinheiro aflui, nos lugares onde o país escreve o seu destino. Este jogo de famílias que se conhecem desde há muito é o território ideal para que pequenos, médios e grandes escândalos financeiros surjam. A cumplicidade – que a expressão popular uma mão lava a outra tão bem traduz – faz nascer um poderoso sentimento de impunidade. Nos lugares de topo, as pessoas conhecem-se, devem-se favores mutuamente, uma mão lava a outra, e tudo parece fácil e, mais do que isso, parece ser um direito adquirido, fundado em antigas alianças, treinadas a comprar a cumplicidade da política e o silêncio da justiça. Toda a nossa sociedade está organizada de forma a que o mérito singular seja punido e um certo tipo de crime seja não apenas permitido como admirado. Portugal é, como diz o Público, uma república da cunha, do nepotismo e do amiguismo. Depois, admiram-se da imoralidade dos costumes em vigor na pátria.

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