Kazimir Malevich - River in the Forest (1908 ou 1928)
Na torrente de montanha que
corre para o vale, o jovem Goethe via uma juventude fresca e impetuosa, que se
precipitava na planície tornando a terra fecunda. Na época do Sturm
und Drang, das esperanças
pré-revolucionárias, o rio era o símbolo do génio, da energia vital e criadora
de progresso; no tomo quinto da Encyclopédie, o «enthousiasme» é comparado com um regato ténue que cresce,
flui, serpeia, se torna cada vez maior e mais potente e por fim se lança no
oceano, «depois de ter feito ricas e fecundas as terras felizes que banhou».
Mas algumas décadas mais tarde, Grillparzer, o poeta da Áustria oitocentista,
em versos de tom completamente diverso sonhava deter o fluir de um regato, via-o
crescer mas também perder-se na história, deixar a pequena mas harmoniosa paz
da sua infância límpida e tranquila, agitar-se e confundir-se até se diluir no
mar, no nada. [Cláudio Magris, Danúbio, p.32]
De Goethe a Grillparzer há um sentimento comum. O rio é a metáfora
fundamental para falar da História, desse enigma do passar do tempo e da
passagem, com ele, das coisas e instituições. Se em Goethe a História é
fecunda, se no Romantismo se incensa a impetuosidade do rio que corre, se
se admira o progresso, se se olha benevolentemente, com a Enciclopédia, o «entusiasmo», com Grillparzer é uma outra e
antagónica realidade que emerge. A História é a mãe do niilismo, o rio que
flui apenas corre para o nada. Por isso, Grillparzer está longe de afectar
entusiasmo, aquele entusiasmo que certamente vem do Iluminismo, com o devir
histórico. Sonhava antes um sonho impossível, sonhava deter o fluir do
regato. Curiosamente, a crítica ao entusiasmo nasce dentro da própria Filosofia
iluminista, dentro do pensamento do progresso, nasce em Kant. Talvez Kant tenha
pressentido, na libertação do Homem da menoridade de que ele próprio é culpado,
o programa do Iluminismo, uma sombra ameaçadora. Ele viu-a no entusiasmo que se
apossou dos actores da Revolução Francesa. Aquilo que ele não viu, ofuscado
ainda pela ideia do progresso moral da humanidade, foi mais tarde
entrevisto por Nietzsche, no conceito de niilismo. Podemos, assim, formular
mais claramente aquilo que dá que pensar. Todo o progresso é um progresso em
direcção ao nada. O rio nasce e progride até deixar de ser rio. O progresso
tornou-se a ilusão mais persistente da modernidade, uma espécie de justificação
do devir da História, como se ela precisasse de uma justificação do seu
acontecer, como se o devir nunca fosse inocente. O progresso é a expressão de
uma razão culpada. (averomundo, 26/10/2009)
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