Sobre autor não identificado - Antiga Igreja de Santa Maria do Castelo
Há um momento em que se descobre que é demasiado tarde. Onde está a maldita fronteira
que separa o remediável do irremediável? Durante anos, meditei sobre esse momento em que a qualidade das coisas muda e tudo segue um outro e irremediável caminho. O que aprendi,
pergunto-me, dessa estranha meditação? Quando naquele dia entrei pelo portão de
ferro, ouvi o ranger das folhas secas sob o peso do meu corpo. Restos de
caixotes pelo chão, pilhas de tijolos ao abandono, ervas que cresciam sob o reino
da incúria. A porta, a velha porta de madeira, rangeu. Ao abrir-se, deixou ver
uma sombra, um leve vulto, as paredes salitradas, o chão carcomido. Um vulto,
pensei, não sem inquietação. Quem será? Um anjo, um homem, um animal perdido? Avancei com cuidado na
sombria nave. Sentia um olhar frio sobre mim, quase o podia tocar. A penumbra
mal era rasgada pela luz que entrava pelas frestas. Se parava, ouvia o voo dos
pássaros sob o tecto em ruínas. Quando olho para o lugar onde estivera, durante
séculos, o altar, um requiem desaba sobre mim. O Dies irae ressoava na minha impenitência e um arfar confundia-se
com a respiração que saía de mim em torvelinho. Olho em frente. O vulto lá está, volta-se, lentamente, e
eu oiço Dies iræ, dies illa, e vejo-o
a mover-se como se tivesse um corpo – solvet
sæclum in favilla –, um corpo feito de névoa e vazio – teste David cum
Sibylla –, um corpo de cinza e sangue – quantus tremor est futurus. E eu
tremo no silêncio da Igreja que agora se desfaz – quando judex est venturus –, na sentença abominável que se abre diante de mim - cuncta stricte discussurus! –
e me mostra a minha face no vulto que se dissolve entre os escombros que me arrastam
para o abismo.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.