quinta-feira, 30 de abril de 2015

Impressões XXXV - a água que se agita

José Nogué - La esfinge marina (1910)

xxxv. a água que se agita

a água que se agita
sob o peso do céu
a rosa que se abre
para a desdita

tudo conspira
para que no teu nome
envolto em espuma
se veja não a pedra
não a rocha
mas a velha esfinge
coberta de bruma

(08/11/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo

quarta-feira, 29 de abril de 2015

A palavra que indica

Romeo Mancini - Apocalipse (1964)

Podemos utilizar as palavras de diversas maneiras. Combinamo-las para formar frases que expressam os nossos estados subjectivos ou as nossas referências ao mundo. São dispositivos de expressão e de comunicação. São também fontes de prazer estético na poesia ou, se rigorosamente definidas, arrastam com elas os conceitos da ciência e da filosofia. São ainda uma outra coisa. São indicadores, como certos sinais de trânsito que indicam um caminho. Peguemos na palavra apocalipse. Para além de designar o livro bíblico, onde se anuncia a vitória da Igreja sobre os seus perseguidores, ela foi acumulando outros sentidos, como o de discurso obscuro, o de desgraça ou o de cataclismo. Esta conexão entre obscuridade e desgraça não deixa de ter interesse como se a falta de graça (a desgraça) implicasse uma obscuridade essencial. Mas aqui ainda nos movemos na esfera da significação. A palavra, na sua etimologia grega, significa tirar o véu. Aqui percebemos uma indicação de um caminho a seguir. Apocalipse indica um caminho ao homem, uma maneira de estar no mundo que se liga com a sua própria natureza. O homem é o animal que tira o véu que cobre as coisas, isto é, que as retira do seu fundo de obscuridade e as traz à luz. Contudo, a palavra traz com ela um aviso. O que o homem pode revelar é a sua própria desgraça. Esse fundo obscuro em que as coisas permanecem resguardadas pelo véu é um perigo que lhe pode trazer a desgraça. Assim a palavra apocalipse indica-nos um caminho e indica-nos também o preço da portagem.

terça-feira, 28 de abril de 2015

O acaso e a liberdade

Embrião humano numa fase muito precoce do seu desenvolvimento REUTERS - Público

Até aqui os seres humanos eram fruto do acaso e da necessidade. A necessidade que se manifestava nas pulsões sexuais e o acaso representado na lotaria genética que conduzia a que um determinado espermatozóide fecundasse um óvulo disponível. Lentamente foram introduzidas algumas variações técnicas deste jogo sem que os frutos da árvore do conhecimento e os da árvore da vida se hibridassem. Consta que agora o passo para a hibridação foi dado e que se trabalha activamente na área de modificação do ADN embrionário. A técnica usada ainda é pouco eficiente, mas torná-la eficiente será apenas uma questão de tempo. Abriu-se o caminho - talvez ainda longo - para que seja possível que os novos seres humanos sejam concebidos segundo estratégias de design e de acordo com um processo de decisão racional. Poderemos pensar que a sensatez e uma certa inclinação conservadora acabarão por introduzir limites políticos ao trabalho na área da modificação do ADN embrionário. Esta área de investigação tem, todavia, um potencial económico e político de tal ordem que julgo ser do domínio da mera ilusão pensar que seja possível impedir este tipo de investigação e a sua transformação em tecnologia disponível no mercado. Estamos num momento decisivo da história da humanidade, mais importante que a queda do Império Romano, o Renascimento ou Segunda Guerra Mundial. Estamos a abrir caminho para a possibilidade de obter seres humanos correspondentes a modelos desenhados a priori e segundo o gosto dos progenitores. Mais do que isso, estamos a abrir caminho para que, um dia, se possa conceber uma ou várias espécies pós-humanas, umas sub-humanas outras sobre-humanas. Qual a potência que aqui se manifesta? Não, não é tanto a inteligência, mas a mais enigmática das potências que habitam o homem: a liberdade. A liberdade de escolha assente no domínio técnico do mundo e da vida. Onde antes se viu o papel do acaso e da necessidade manifesta-se hoje o império da liberdade. A inteligência é o instrumento dessa liberdade. Qualquer meditação ética sobre estes problemas não pode deixar de se confrontar com o sentido desta obscura potência.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

O combate feroz

Emil Hansen - Old King

A animosidade com que os liberais combatem as organizações sindicais - veja-se o coro de indignados sempre que há uma greve - e o ardor com que lutam pela completa privatização de todos os sectores da vida social são elementos estruturantes de uma visão do homem e da sociedade que emergiu com a modernidade e ganhou consciência com o Iluminismo. Contrariamente ao que se pensa, o grande inimigo dos liberais não é, na verdade, o socialismo mas a cosmovisão medieval. Esta, por injusta que fosse com as suas divisões quase estanques, assinalava a cada ser humano um lugar na sociedade e a função do Rei - isto é, da ordem política - era manter um equilíbrio social para que todos encontrassem um lugar. Esta ordem política, fundada na divisão de castas e no usufruto de privilégios, era também uma ordem de protecção, um efectivo Estado social.

O socialismo e o comunismo, bem como as organizações sindicais e as ordens corporativas representam, ao nível ideológico, a nostalgia de velho mundo claro e ordenado, e o que restou, ao nível das organizações, desse mesmo mundo. O liberalismo pretende libertar completamente o indivíduo de qualquer teia de solidariedade transindividual considerando-o apenas como um ser que persegue racionalmente o seu próprio bem. Os laços com os outros indivíduos devem apenas resultar dos contratos que eles estabelecem entre si e não de qualquer malha social e comunitária anterior e protectora do indivíduos. Qualquer laço não contratual é sentido como um retorno ao proteccionismo medieval e, por isso, é sistematicamente perseguido e, assim que possível, destruído. O liberalismo, é preciso não o esquecer, não nasceu do conflito com o comunismo ou o socialismo mas do feroz combate contra a velha ordem proveniente da Idade Média. O resultado de tudo isto, contudo, parece ser o da liquidação do homem tal como o conhecemos, a instauração de uma era pós-humana.

domingo, 26 de abril de 2015

Impressões XXXIV - este equilíbrio

Leopoldo Romañach - Marina

xxxiv. este equilíbrio

este equilíbrio
entre terra e água
o fogo que brilha
na solidão da tarde

mãos esquivas traçam
rumores a madeira
a memória branca
uma praia de carvão

este equilíbrio
entre sono e vertigem
anoitece pela casa
coberta de outono

(07/11/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo

sábado, 25 de abril de 2015

Luchino Visconti – Luís da Baviera (Ludwig)


Luís da Baviera (Ludwig), de Visconti, tem quase quatro horas de filme. Ao que consta, Ludwig foi um fiasco de bilheteira e os críticos também não abonaram a visão de Visconti sobre Luís II, o louco. Todavia estamos perante uma grande obra. O cineasta mostra-nos um conjunto de tensões fundamentais onde a dimensão singular das personagens, melhor, da personagem, se ergue como símbolo e sintoma de uma época e do destino de uma casta que o tempo se preparava para dispensar.

A primeira tensão, a que é estruturante do filme, joga-se entre a vida estética e a vida política. Luís II é dilacerado pelo conflito entre a sua natureza de esteta e os seus deveres políticos, enquanto Rei da Bavária. Deste ponto de vista, o que Visconti mostra é a incompatibilidade entre os dois jogos de linguagem, o conflito entre o efeito dissolvente do senso comum político que a arte representa e a solidez que a vida da pólis necessariamente exige. A impossível, mas sempre procurada, conciliação tem apenas como saídas a loucura, a abdicação e a morte do Rei.

Uma segunda leitura, permite, porém, perceber que o pendor estético de Ludwig é a contrapartida de uma situação anacrónica. O tempo da aristocracia e da sua ética tinha terminado. O ethos do serviço e da lealdade aos valores mais elevados estava a ser substituído pela visão burguesa do mundo. Ludwig, o louco, é a manifestação dessa morte, que Visconti filma obsessivamente. Veja-se, por exemplo, Violência e Paixão ou o Leopardo. É como se um mundo construído a partir da poesia homérica se encontrasse agora definitivamente no fim.

Esse fim é mostrado seja na impossível paixão de Luís por sua prima, Isabel da Áustria, seja pela admiração, até às raias da loucura, por Wagner e a sua música, seja pela obsessiva construção de castelos absolutamente inúteis e que nunca habitou. Todos estes casos simbolizam uma oclusão, uma impossibilidade de conferir já sentido à acção. A demência de Ludwig, a sua paranóia, não é, no filme de Visconti, apenas um caso subjectivo de natureza psicológica, mas antes a imagem especular de um mundo em decomposição acelerada e a morte dos valores que o sustentaram durante milénios. (averomundo, 2007/04/27)

sexta-feira, 24 de abril de 2015

O lugar vazio


Por um daqueles acasos em que a vida é fértil li, nestes dias, as Conferências Massey dadas por George Steiner, no Outono de 1974, na CBC Radio. Têm um título curioso – A Nostalgia do Absoluto – e, de certa forma, vêm ao encontro das minhas preocupações actuais. Refere Steiner que as grandes mitologias que têm sido criadas a partir do início do século XIX (entre elas as ideologias políticas) são uma espécie de teologia substituta. As exigências que essas ideologias impuseram aos seus crentes, mesmo quando declaradamente ateias, são  profundamente religiosas na estratégia e nos efeitos. São o sintoma de uma nostalgia pelo Absoluto, num tempo em que a questão de Deus se retirou para a intimidade das consciências e daí para lado nenhum.

Se, nos dias de hoje, tento compreender aquilo que se passou em 1974, com o 25 de Abril, as explicações políticas, sociais e económicas parecem-me absolutamente inócuas para descrever a experiência colectiva pela qual passámos. Os primeiros dias – esse tempo onde ainda não se sabia o que viria a ser Portugal – foram uma autêntica experiência religiosa, um exercício de comunhão e de purificação, que fazia a massa dos participantes aproximar-se de uma experiência do Absoluto. Estava-se perante um verdadeiro êxtase colectivo, um arroubo da consciência que transportava as pessoas para a porta do paraíso. Eu sei que a porta não se abriu, como aliás estava prognosticado. As várias racionalidades moviam-se na sombra para impor um caminho conforme aos seus interesses, mas a verdade é que aqueles primeiros dias, ou semanas, foram tempos em que os portugueses se sentiram transportados para outro lado que não a dura e cruel realidade de Portugal e do mundo.

Hoje em dia, contudo, as experiências ingénuas do Absoluto, como aquela que vivemos em 1974 e, noutros países, uns anos mais tarde, parecem não ser já possíveis na Europa. Também as ideologias – esses sistemas de teologia política – perderam qualquer auréola de Absoluto que um dia trouxeram consigo. Não apenas Deus está morto para os europeus, como as teologias substitutas (o marxismo, o liberalismo, o socialismo, a psicanálise, etc.) tornaram-se irrelevantes. Tudo se resume, nesta hora, a uma questão de contabilidade. O homem, todavia, não consegue matar em si o desejo de Absoluto. Ora a morte das teologias substitutas deu lugar ao vazio. Este lugar vazio é o grande perigo que nos ameaça, pois está aberto a que qualquer coisa, provavelmente tenebrosa, venha para o preencher.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

O lugar onde não se tem lugar

Leonard Misonne - Winter (1935)

Os vinte e cinco homens acolheram a boa nova em silêncio; nem um só se benzeu, nenhum agradeceu, e ficaram todos ali, com um ar sério e como que entristecidos pelo pensamento de que tudo, neste mundo, até o sofrimento, tem um fim. (Anton Tchékhov, A Ilha de Sacalina)

É corrente a interrogação sobre os motivos que levam as pessoas a preferirem manter uma situação dolorosa no lugar de lhe pôr fim. Por exemplo, por que motivo as pessoas prolongam casamentos que se tornaram uma chaga viva ou, num outro âmbito, que razões levam os eleitorados a escolherem os partidos que, sistematicamente, lhes infligem dor e engano? O senso comum, muitas vezes travestido de psicologia ou de sociologia, abunda em explicações sobre estes comportamentos, centradas no medo da mudança ou no temor das consequências e dos actos de vingança. Tudo isto fará sentido. No entanto, há uma outra motivação, talvez mais funda e mais pertinente.

Pôr fim a uma situação, por dolorosa que ela seja pessoal ou socialmente, é confrontarmo-nos com o fim de tudo e, por reflexo especular, sermos obrigados a considerar a nossa própria finitude. A mudança não é uma ameaça por ser revolucionária ou trazer o desconhecido. Ela é sentida como uma ameaça porque nos traz o futuro. E o futuro, ao contrário do que os amantes do progresso propagandeiam, não é o tempo da felicidade nem da realização da esperança num qualquer paraíso nascido de uma utopia realizada. O futuro, para cada um de nós, é apenas e só uma única coisa: o tempo da nossa morte, a concretização da nossa finitude. No mais fundo do homem, por muito radioso que se lhe pinte o amanhã, ele sabe que esse amanhã é o lugar em que ele já não terá lugar.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Impressões XXXIII - um rio – floresta de azul e rosas

Van Gogh - Paisaje fluvial con barcas de remos en la orilla (1887)

xxxiii. um rio – floresta de azul e rosas

um rio – floresta de azul e rosas
onde danças breve
e sonâmbula
na areia da margem

o vento incendeia os barcos
e pétalas brancas
desamparadas
secam à tua passagem

(06/11/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo) 

terça-feira, 21 de abril de 2015

A música e a farda


A história do "contabilista de Auschwitz", para além do seu desejo de expiação e do reconhecimento da verdade da shoah, é irrelevante. Um caso entre muitos outros, um caso não particularmente grave, perante muitos outros de gravidade extrema. Há, no entanto, no artigo do Público uma referência que gostaria de sublinhar: Fascinado pelas músicas e fardas, alistou-se nas SS. Isto que parece um pormenor não o é. Ninguém explicará o nazismo pela música ou pela farda militar ou para-militar. No entanto, o papel de ambas na adesão de milhões de alemães ao nazismo não é pequeno. Têm um papel fundamental na dissolução de uma certa ordem da razão e na sua substituição por uma outra ordem de carácter ritual e de aparência sagrada, neste caso de um sagrado negativo, diabólico.

A música dos movimentos revolucionários - e o nazismo foi um movimento revolucionário - tem sempre uma tonalidade dionisíaca, cuja finalidade é desagregar uma certa ordem racional e estabelecer uma comunhão entre os homens que, através dessa música dissolvente, se sentem irmanados. A música - certo tipo de música - tem esse poder de estabelecer fraternidades nos lugares onde existia separação, hierarquia, indiferença. Cantando, os alemães sentiam-se irmãos, sentiam a comunidade que os unia para além da diferenciação que a vida social gera. Dito de outra maneira, a cantar os alemães passaram da sociedade (gesellschaft) para a comunidade (gemeinschaft). Este espírito comunitário, nascido do fascínio dionisíaco trazido pela música, para não degenerar num caos, necessita de uma nova ordem.

A nova ordem é trazida pelo outro fascínio, o das fardas. A farda remete para a dimensão ritualística e hierática da vida. Dissolvida a ordem racional, o caos é reorganizado segundo os rituais militares e militantes. Todos os movimentos revolucionários - de direita ou de esquerda - têm esta atracção pelas fardas, pelas organizações ritualísticas ligadas à violência e à mobilização das pessoas para a acção. Veja-se, num caso com coloração política oposta, na China maoísta, a transformação do vestuário quotidiano num fardamento universal. A farda consagra a fraternidade daqueles que a vestem e, ao mesmo tempo, simboliza uma comunidade mobilizada para um fim por todos partilhado. A música gera o mito revolucionário na consciência e no coração do indivíduo, a farda implica o ritual que dá vida ao mito. E é assim, cantando e marchando fardados, que os homens dissolvem a consciência que os poderia inibir de matar milhões de homens apenas porque pertencem a outro grupo étnico, ou a outra classe social, ou a outra religião.

segunda-feira, 20 de abril de 2015

O pudor

María Anunciación González Muñoz - Pudor (1986)

O pudor é uma das noções-chave dos tempos modernos, época individualista que, hoje, imperceptivelmente, se afasta de nós; pudor: reacção epidérmica de defendermos a nossa vida privada; de insistirmos em que uma carta dirigida a A não seja lida por B. (Milan Kundera (1994). Os Testamentos Traídos. Edições Asa, pp. 235)

A edição francesa de Os Testamentos Traídos, de Kundera, é de 1993. Há, nesta citação, uma palavra fatal: imperceptivelmente. Já nesses dias a época individualista, isto é, a modernidade, se afastava de nós. Como? Imperceptivelmente. Como um ladrão sorrateiro abandona a casa, deixando-a mais pobre. Este afastamento é então uma pauperização. Aquilo que nos é roubado é o pudor. Mas o pudor é lido como a reacção epidérmica de defendermos a nossa vida privada. Passaram 22 anos, a impudicícia cresceu, alastrou, a vida privada é agora exposta à publicidade. Não há carta que não possa ser lida, não há conversa que não possa ser escutada, não há passo que não se dê sob vigilância. Imperceptivelmente, instalou-se, no lugar dos tempos modernos, a pós-modernidade.

A pós-modernidade não é o lugar do indivíduo, da sua expressão exaltada, colorida pela cultura das emoções e dos afectos, dos quais haveria agora a liberdade de os tornar públicos; teriam ganho, diz-se, direito de cidadania, lugar na esfera pública. A pós-modernidade é a época de dissolução do indivíduo. Sobre ele caiu o manto da vigilância global. O mundo tornou-se no panóptico de Bentham. Não foi o medo que trouxe esta nova figura do mundo. O terror, o 11 de Setembro, apenas tornou claro um processo que já estava em curso, imperceptivelmente. (averomundo, 07/07/07)

domingo, 19 de abril de 2015

Os canhões e a manteiga

Jackson Pollock - War (1947)

A Europa continua a preferir a manteiga aos canhões. No entanto, já há indícios de que as coisas estão a mudar. Citando agora de cor, há países nórdicos, designadamente a Suécia e a Noruega, que estão a reinvestir fortemente na Defesa. Só quem não quer é que não percebe o que se está a passar. O que se está a passar no Mediterrâneo… (Almirante Melo Gomes, entrevista ao Público)

Há uma frase terrível na entrevista, ao Público, do Almirante Melo Gomes: A Europa continua a preferir a manteiga aos canhões. Esta frase dita em tom negativo – um tom que poderá pôr em pé os cabelos dos pacifistas – mostra como as questões políticas fundamentais são entendidas nesta Europa. Os problemas de mercearia são muito mais importantes do que as questões políticas, nomeadamente as de segurança. Habituados a um pacifismo reactivo, derivado da memória de duas guerras mundiais iniciadas na e pela Europa, os europeus parecem sonâmbulos perante o alastrar do fogo nas margens da sua zona de conforto, digamos assim. Na Ucrânia e no Mediterrâneo crescem todos os dias as ameaças à segurança e ao modo de vida que tem sido o nosso. Infelizmente, a Europa – pois o mundo é o que é – terá de se preocupar mais com canhões. Muitas vezes preocupar-se com canhões impede que  chegue a hora em que estes têm de ser usados. Por outro lado, as próprias questões de mercearia têm de ser tratadas de outra maneira, para que não seja a mercearia a abrir brechas Europa dentro, pelas quais os inimigos possam entrar e instalar-se, ou pelo menos trazer conflito e sofrimento. Dito de outra maneira: a política vem em primeiro lugar. Depois, vem a economia, e o fim desta é servir o bem das comunidades, gerando um espírito comum, para que todos achem que são parte integrante e têm o dever de a defender. A ideia liberal de que o Estado existe para promover o lucro privado tem de ser, no mínimo, matizada. Isto se quisermos obstar a uma situação muito desagradável. A Europa precisa de canhões e de reaprender a distribuir equitativamente a manteiga.

sábado, 18 de abril de 2015

Impressões XXXII - ondulam as águas

Berthe Morisot - Boat - Entry to the Midina in the Isle of Wight (1875)

xxxii. ondulam as águas

ondulam as águas
nas ondas do barco
na ferida luz
na rápida passagem

e o dia abre-se
ao desalento da tarde
ao tormento feroz
o enigma da viagem

(05/11/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Verdade e dignidade

Egon Schiele - A verdade revelada (1913)

De todo o lado nos dizem que deveríamos abandonar a «pesquisa pura», desmantelar aquilo a que chamam o calabouço académico, e pôr o cérebro cartesiano a pastar enquanto o instinto se recreia. Cientistas, actualmente muito em voga, dizem-nos que a preocupação ocidental com a verdade é uma verdadeira doença. (Georges Steiner, Nostalgia do Absoluto,  pp. 78/79)

Georges Steiner, contrariamente aos que vêem na preocupação ocidental com a verdade uma patologia, crê que a dignidade maior da nossa espécie reside em perseguir a verdade abnegadamente. Mas Steiner equivoca-se. Não é que a perseguição da verdade seja uma doença. Não o é, pelo menos do ponto de vista médico. Pode ser uma paixão, como outras paixões que movem o homem na sua vida, como a paixão erótica, a paixão pelo dinheiro ou a peixão pela glória. O equívoco de Steiner está em ver a procura da verdade como a maior das dignidades que cabem à nossa espécie. A maior dignidade que cabe à nossa espécie está naquilo que ela faz ou não com essa poderoso dispositivo que é a verdade. A verdade é sempre a revelação de uma determinada estrutura das coisas ou dos homens, revelação que confere poder e abre a possibilidade da dominação. A minha dignidade, ou a da espécie, nasce não da verdade que revelei mas dos meus actos com essa verdade. Sirvo-me dela para oprimir os outros ou para que eu e os outros nos tornemos mais livres e, por isso, mais dignos? A verdade, em si e por si, é neutra. Cabe à espécie humana decidir o que fazer com ela. E nessa escolha joga-se a sua dignidade.

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Cultura e civilização

Jordi Teixidor - Blanco (1996)

Aliás, a palavra cultura deixa na indeterminação qual a coisa que se deve cultivar (o sangue e a terra ou o espírito), enquanto o termo civilização designa imediatamente o processo que visa a fazer do homem um cidadão e não um escravo, um homem das cidades e não um rústico, um amante da paz e não da guerra, um ser civilizado e não um vadio. Uma comunidade tribal pode muito bem ter uma cultura, isto é, produzir hinos, cânticos, ornamentos para o seu vestuário e para as suas armas, olaria, danças, e fruir de tudo isso. Não poderá, todavia, ser civilizada. Interrogo-me se o facto do homem ocidental ter perdido muito do seu orgulho anterior, o orgulho tranquilo e apropriado de ser civilizado, não é um fundamento da actual ausência de resistência ao niilismo. (Leo Strauss, Sur le nihilisme allemand)

A conferência Sur le nihilisme allemand foi pronunciada em 1941. Strauss encontrava-se já nos EUA e assistia de longe ao domínio do nazismo sobre a sua pátria. A conferência é uma análise do niilismo alemão que de certa forma está na origem do fenómeno nazi. O que me interessa, porém, sublinhar é a velha distinção entre cultura e civilização e perguntar se, nas actuais sociedades, não estamos a assistir a uma regressão da civilização em detrimento da cultura. O multiculturalismo tem sido usado como arma de arremesso para fazer recuar os processos civilizacionais, entendidos estes à luz das palavras de Leo Strauss: tornar o homem num cidadão e não num escravo.

Perceber isso, por seu turno, exige interrogar a conexão entre as sociedades liberais e o niilismo, o que implica ainda uma outra interrogação: o que torna o conceito de cidadão, nas sociedades actuais, tão frágil e permeável ao não civilizado, ao não cívico? Será o seu carácter, nas sociedades modernas, puramente formal? Será a sua conexão com uma organização política, o Estado-Nação, que se encontra sob fogo de estruturas políticas infra-estaduais (as regiões e os municípios) e supra-estaduais (a União Europeia, por exemplo)? Será a própria natureza ontológica do cidadão, o que implica a investigação daquilo que faz com que um cidadão seja um cidadão, isto é, a sua essência? Seja qual for a questão que se coloque como determinante daquilo que dá que pensar, o texto de Strauss abre para uma reflexão sobre a conexão entre cidadania e niilismo, desviando este último conceito da área ética e da filosofia da cultura, para o introduzir na reflexão sobre o político. (averomundo, 30/06/2009)

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Impressões XXXI - o manto que a terra cobre

Lilla Cabot Perry - The State House, Boston (1910)

xxxi. o manto que a terra cobre

o manto que a terra cobre
na desolação das árvores
nas folhas cariadas
abandonados pela seiva

a vida não é uma colecção
de vitórias e derrotas
de páginas em branco
de combates que não travaste

que venha o frio do inverno
e traga o fogo que arde
no lareira da memória
no silêncio que te espera

(04/11/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo) 

terça-feira, 14 de abril de 2015

O dever é o dever

Giorgio de Chirico - El gran autómata (1925)

Há dias em que percebo melhor do que noutros a moral kantiana. Dias como os de hoje, em que estive a dar aulas das 9:25 às 18:15, só com uma hora de intervalo para almoço. Chega-se ao fim e está-se vazio. Este vazio transborda e inunda a relação com aquilo que fazemos. Depois de todas estas horas, tudo aquilo parece inútil e infantil. Tudo parece destituído de sentido, como se o decurso do quotidiano, preenchido com as suas múltiplas tarefas, escondesse sob o seu manto um enorme buraco negro, que suga as energias, que destrói o espírito, que aniquila a pessoa. Perguntas insidiosas surgem ao espírito. Para quê fazer tudo isto? Por que motivo se há-de levar a sério todas estas tarefas e rotinas? Por que razão devo ocultar a funda descrença na utilidade da acção sob o véu da convicção? E quando todas as razões, mesmo as mais utilitárias, desaparecem, Kant chega com a sua voz salvífica: porque esse é o teu dever.

Talvez a doutrina kantiana do dever seja uma estratégia para que nós façamos aquilo cujo sentido se erodiu ou, pior do que isso, surge à nossa consciência como um contra-senso. Recordo aqui o zelo germânico com que a Alemanha hitleriana liquidou judeus, ciganos, comunistas, estropiados, deficientes mentais. Muitos daqueles homens, estou convencido, achavam os seus actos repugnantes e sentiam, dentro de si, o pulsar da rejeição. No entanto, aquele era o seu dever, um dever tão forte que os levava a contrariar as suas inclinações humanitárias, o seu horror ao sangue e ao sofrimento. Sim, o dever pelo amor ao dever – essa terrível herança do professor de Konigsberg – é aquilo que, quando o vazio nos invade ou a consciência se revolta, sustenta a nossa acção. Ela perdeu o sentido, mas é objectivamente o nosso dever. O dever salva-me do desalento como salvou muitas consciências que, ao cometer atrocidades, o faziam apenas por amor ao dever. O problema é que esse amor condenou milhões à morte. E é nestes dias em que melhor entendo Kant, que mais perturbado fico. Há no mundo uma inexorabilidade que se nos impõe e que toma, dentro de nós, a forma imperativa do dever, a qual tanto me pode mandar ensinar alunos como matar outras pessoas.

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Da irrelevância da pessoa do escritor

Georges Rouault - Quem não se maquilha? (1930)

A morte do Nobel da literatura Günter Grass (ver aqui) foi mais uma vez motivo para um equívoco. Numa emissora de rádio uma universitária falava da incompreensibilidade da atitude de Grass ao ocultar, durante decénios, que tinha pertencido às Waffen-SS. Na altura da revelação do episódio, José Saramago terá afirmado que "nunca separou o escritor da pessoa que o escritor é. A responsabilidade de um é a responsabilidade de outro." Estas duas posições são semelhantes. A de Saramago é mais explícita e, por isso, permite uma contra-argumentação mais clara. O termo responsabilidade indica uma orientação que nada tem a ver com a arte e a qualidade estética das obras literárias ou outras. A responsabilidade pertence à área da moral, mesmo quando a responsabilidade é a de um escritor, de um pintor ou de qualquer outro artista.

O equívoco é querer estabelecer uma conexão entre a qualidade estética de uma obra de arte e a moralidade daquele que a produziu. A moralidade pode ser duvidosa, as opções políticas tenebrosas, o compromisso religioso pode ser intolerável, mas aquilo que para mim, enquanto leitor ou fruidor de uma obra de arte, me interessa é a experiência estética que a obra me pode proporcionar e o grau de questionamento que a obra coloca ao meu mundo ou ao mundo tal como o vejo. Por outro lado, não partilho da opinião de Saramago, pelo menos completamente, de que o escritor e a pessoa do escritor são inseparáveis. Esta ideia radica numa antropologia fundada na supremacia moderna da acção: o homem é aquilo que produz ou faz. Ora o homem é muito mais e muito menos do que aquilo que faz. É muito mais porque, apesar de tudo o que produz no mundo, mesmo que sejam obras de arte, ele é um mistério, inclusive para si mesmo. É muito menos porque a sua genialidade artística ultrapassa muitas vezes o seu comportamento social e mundano. Quando celebramos ou deploramos um escritor o que está em causa é a qualidade da sua obra. A sua pessoa, a qual é como todas as outras pessoas uma ficção itinerante, é para o caso irrelevante. 

domingo, 12 de abril de 2015

Tradição e alheamento

Henry Beerbohm - The Mirror of the Past

Mas se o pensamento pessoal não é o fundamento da identidade de um indivíduo (se não tem mais importância do que um chapéu), onde está então esse fundamento?

A esta busca sem fim trouxe Thomas Mann a sua contribuição importantíssima: pensamos agir, pensamos pensar, mas é um outro ou são outros que pensam em nós e agem em nós: hábitos imemoriais, arquétipos que, tornados mitos, passando de geração em geração, possuem uma força de sedução imensa e nos teleguiam a partir (como Mann diz) do «poço do passado»
. (Milan Kundera (1994). Os Testamentos Traídos. Edições Asa, pp. 16.)

O «poço do passado» de que fala Mann é um outro nome para o conceito de tradição. Aquilo que somos somo-lo porque pertencemos a uma tradição. É nela que, de uma forma inconsciente, mergulham as nossas raízes. Mas esta ligação não é em primeiro lugar uma conexão cultural. Aquilo que somos, devemo-lo, já no estrato biológico, à herança genética. O ADN que recebemos dos nossos pais é uma ponte que, de geração em geração, nos liga ao fundo obscuro da humanidade, depois à animalidade e, por fim, enraíza-nos no próprio ser. O que cada um de nós é, ainda e só do ponto de vista biofísico, representa já uma incomensurável dívida para com os ancestrais e através deles para com o próprio ser, do qual tudo provém.

De certa forma, podemos então dizer que existe um substrato biofísico da tradição. Esta não é um nada ou um mero conjunto de conteúdos que estejam ali disponíveis para serem manipulados, sem mais. Do ponto de vista cultural, o conceito de tradição reenvia-nos para essa ancestralidade, que, segundo Mann, pensa e age em nós. Não somos sujeitos que possam começar o quer que seja sem essa carga do passado. A língua que falamos, por exemplo, não a inventámos, não a criámos, herdámo-la da comunidade onde nascemos. Aquilo que é válido para a língua, vale para a cultura no seu todo, desde as regras de cortesia até às normas morais.

As sociedades tradicionais viviam no culto dessa tradição. Isso não significa que elas não se transformassem. A transformação, porém, era uma resposta não contra a tradição mas uma espécie de readaptação da vida comunitária aos princípios, muitas vezes obscuros, dessa tradição. Esta era uma espécie de modelo arquetípico que tinha a finalidade de fornecer um horizonte à existência dos homens e um fundamento significativo à sua identidade. O que marca as sociedades modernas é a revolta contra a tradição. O moderno nasce como oposição deliberada à tradição. Na modernidade, o imperativo é reconstruir todo o mundo cultural a cada nova geração, cortar os laços com o passado. A tradição, todavia, tem resistido e é ela que, apesar dos ataques do moderno, permite a esse mesmo moderno reconhecer-se enquanto tal.

O que é absolutamente novo, nos dias de hoje, na cultura pós-moderna, é o alheamento completo não só da tradição como da revolta moderna contra ela. O mundo pós-moderno é o mundo do alheamento. O desenvolvimento tecnológico e a forma como se pratica a ciência nos dias de hoje fizeram crescer uma mentalidade onde reina a ilusão de se poder construir uma existência sem qualquer conexão ao passado. A ligação vertical com os ancestrais está a ser substituída pela ligação horizontal em rede. Ciência e tecnologia são dois motores essenciais de uma cultura baseada no momento, de uma cultura niilista. O curioso é que a grande maioria dos cientistas não percebe o efeito do seu próprio trabalho.

Como a ciência para a sua aprendizagem não necessita de um estudo dos seus processos de evolução históricos, como ela é apresentada desligada daquilo que, do ponto de vista filosófico, está no seu fundamento, a praxis científica e o desenvolvimento tecnológico nela assente são dois factores de dissolução da racionalidade e da conexão com a tradição nas sociedades de hoje. O papel social da ciência e da tecnologia não é a produção de conhecimento e de bens úteis para a humanidade. Esse é o invólucro onde se esconde a sua acção dissolvente das tradições e a ilusão de se poder a cada momento produzir o novo. Por muito que isso doa à racionalidade de muitos cientistas, na sua actividade esconde-se a mais violenta irracionalidade: a de roubar o fundamento do sentido que estrutura e articula as identidades humanas e a de ser dinamizadora do alheamento pós-moderno. (averomundo, 10/07/2007)

sábado, 11 de abril de 2015

Impressões XXX - o fundo onde tudo se recolhe

Claude Monet - Bordighera, Italy (1884)

xxx. o fundo onde tudo se recolhe

o fundo onde tudo se recolhe
abre-se para a inércia do olhar
como se um pássaro cantasse
na hora em que a terra escurece

não é a tristeza sobre a face
nem o abandono que há-de vir
não é a dor que dói no horizonte
nem a ruína que se pressente

apenas uma cotovia se esconde
presa na sombra da buganvília
apenas a minha mão se ergue
para a escuridão que se levanta

(03/11/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Más companhias

A minha crónica quinzenal no Jornal Torrejano.

A crise do subprime nos Estados Unidos, desencadeada a partir de 2006, e a posterior crise das dívidas soberanas do países do sul da Europa alimentaram, em certas zonas do mundo intelectual, uma revivescência dos estudos marxistas. Este interesse por Karl Marx deve, no entanto, ser lido segundo a máxima que o própria Marx aplicou ao regresso de um Bonaparte ao poder: primeiro como tragédia, depois como farsa. Se o interesse original por Marx provocou não pequenas tragédias, o actual interesse militante deve ser interpretado no domínio da farsa. Por muito bem que Marx tenha lido a natureza do capitalismo, por úteis que ainda possam ser algumas ferramentas derivadas dos seus escritos, a realidade da Europa e aquilo que se perfila no horizonte pedem outros dispositivos para construir uma grelha interpretativa.

Em vez do revolucionário Marx, talvez seja mais interessante recorrer a quatro velhos e contumazes reaccionários. Não para deles extrair uma política, mas para nos ajudarem a construir quadros mentais para interpretar um mundo que se tornou estranho e ameaçador. Quem são as luminárias? Em primeiro lugar, Joseph de Maistre, o grande pensador da contra-revolução francesa, o feroz inimigo do pensamento iluminista, o defensor de um catolicismo intransigente e tradicionalista. Em segundo lugar, Friedrich Nietzsche, o pessimista que diagnosticou o niilismo da cultura europeia. O terceiro é Oswald Spengler, o alemão que escreveu O Declínio do Ocidente, o livro publicado em 1918 e que nos fala da decadência da Europa e do mundo europeu. Por fim, Samuel Huntington o conservador norte-americano que defendeu que os grandes conflitos do século XXI não seriam ideológicos mas culturais e civilizacionais.

Haverá quem diga que ando com más companhias. Quando se caminha para os 60 anos, a natureza das companhias torna-se contudo pouco importante. O fundamental é não se deixar iludir como se se tivesse 17 anos. O que temos à nossa frente não é o caminho glorioso para a sociedade sem classes ou sequer para uma sociedade aberta e justa, mas um mundo complexo, onde as ameaças são muito mais amplas e presentes do que o bom senso e o equilíbrio. Estes quatro autores – independentemente da profundidade de cada um – têm um dom que nestes tempos é essencial: não vendem optimismo nem distribuem ilusões. O que nos dizem é desagradável de escutar e não é feito para corações sentimentais. Mas quem é que, hoje em dia, acha este mundo um lugar respeitável onde a esperança é possível? Quem dá um cêntimo pelo futuro da Europa?

quinta-feira, 9 de abril de 2015

Marine Le Pen e o seu Bad Godesberg

Le Pen filha e pai (Robert Pratta, Reuters, Expresso)

Uma família desunida. A Front National, agora que o partido se aproxima do poder, parece em guerra civil, uma guerra entre o pai Le Pen, o velho e extremista fundador, e a filha, actual líder e candidata a Presidente da República. Este conflito tem vários significados políticos que importa realçar. O primeiro, e mais importante, pode ser definido como o verdadeiro momento Bad Godesberg da Front National. Na ciência política, Bad Godesberg está ligada ao congresso do SPD alemão (o lugar onde se realizou), que terminou a 15 de Novembro de 1959, no qual os sociais democratas germânicos abandonam o marxismo e aceitam a economia de mercado. A partir desse momento entram no clube da governabilidade e evacuam todo e qualquer odor revolucionário, que ainda permanecesse no velho partido operário. A ruptura entre pai e filha Le Pen é um momento central na credibilização de Marine Le Pen, o seu momento Bad Godesberg. Abandona o odioso discurso xenófobo e para-fascista representado pela ideologia do pai e torna-se digerível na área do poder.

Há contudo uma diferença essencial entre estes dois momentos Bad Godesberg. Para o socialismo democrático alemão, o seu momento Bad Godesberg teve como função uma aceitação pelas elites sociais e económicas. O corte da senhora Le Pen com o pai visa uma maior penetração nas camadas populares, nomeadamente, mas não só, nas de esquerda. O partido nacionalista, devido ao passado direitista e racista, encontra ainda muitas resistências num país que, apesar de tudo, tem uma cultura democrática e civilizada. Este afastamento do pai, permite não só que a senhora Le Pen continue a penetrar no antigo eleitorado comunista, como no eleitorado do centro-esquerda e do centro-direita. O problema que esta nova configuração levanta é o possível choque com as elites económico-financeiras, hoje completamente internacionalistas e que têm na União Europeia a sua organização política regional. O nacionalismo - à direita ou à esquerda - é um obstáculo à ideia de livre mercado. O que se vai colocar a Marine Le Pen é se vai acomodar-se perante o liberalismo dominante ou se vai continuar a apostar em retirar a França da União Europeia e fechar as fronteiras. De passagem, sublinhe-se, que uma crise deste género em França não é a mesma coisa do que na Grécia.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

A grande literatura

Jorge Carreira Maia - Em formação. V. N. Barquinha (2007)

Tudo em branco, assustadoramente branco, excepto o sangue que tudo manchava, a neve, os homens, a minha capa. No céu, grandes formações de patos bravos voavam tranquilamente para o Sul. (Jonathan Littell, As benevolentes)

Uma pergunta: o que é a grande literatura? Todo o caminho para uma definição é uma perda de tempo. Prefiro descobrir sintomas do que fazer taxionomias e entregar-me a processos classificatórios. O pequeno excerto de Littell é um sintoma dessa doença que é a grande literatura. O sintoma tem a sua origem na incomensurabilidade entre os dois períodos do texto. No primeiro, está desenhado o terrível da condição humana espelhado na brancura da neve. Esse sangue que a tudo sujo vem daqueles que são executados por serem judeus, ciganos, comunistas ou outra coisa qualquer. Mas não é apenas a tragédia daqueles que morrem, é também o drama insuportável dos alemães que matam, das suas consciências atormentadas pela analogia que estabelecem entre a mulher que executam e a sua própria mulher, entre as crianças que matam e os seus próprios filhos. A grandeza literária nasce, contudo, da descrição que vem a seguir. Aos patos que voam para o Sul, tudo o que se passa na terra é indiferente, tão indiferente que a sua tranquilidade em nada é afectada pela dor desmedida dos homens. Mas os patos não são apenas patos, são deuses que habitam os céus. A convulsão dos homens é contraposta à tranquilidade da natureza e ao silêncio divino perante o horror que uns sofrem e outros praticam. E toda a grande literatura está aqui neste tornar manifesta a condição dos homens e a indiferença e silêncio com que ela é acolhida.

terça-feira, 7 de abril de 2015

Impressões XXIX - o verão declina sobre a praia

Eugène Louis Boudin - Trouville, Le Port (1886)

xxix. o verão declina sobre a praia

o verão declina sobre a praia
e os barcos trazem a noite
como se uma velha fotografia
assombrasse as pequenas paixões
que me retêm longe de ti

gaivotas cruzam a melancolia dos céus
e nuvens desenham a face
onde pressinto a tua voz
nessa distância que se aproxima
nesse coração  que arde na noite

(02/11/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo

segunda-feira, 6 de abril de 2015

A mensagem de Páscoa de David Cameron


A surpreendente mensagem de Páscoa do primeiro-ministro inglês, David Cameron (ler aqui), é um verdadeiro sinal dos tempos. É espantoso ouvir um primeiro-ministro dizer que vive num país que acolhe qualquer fé, mas que ainda é um país cristão. Haverá sempre quem pense estar-se perante uma estratégia para colher votos, mas isso não ilude o problema. Por que razão, na mais velha democracia do mundo, na pátria de John Locke, o pensador que defendeu, como fundamento da tolerância, a separação entre a política e a religião, um primeiro-ministro se sentiu coagido a reafirmar a natureza cristã do país e exemplificar como o cristianismo tem um importante papel na vida social?

Se não ficarmos presos a fácil explicação de eleitoralismo, talvez possamos perceber as razões fundas que conduziram à necessidade de afirmar o carácter cristão de Inglaterra. Na minha óptica, a razão fundamental está relacionada com o actual momento da vida internacional e com a necessidade da defesa da democracia. Na verdade, regimes democrático-parlamentares, com a separação de Igreja e do Estado, são criação da cultura cristã. Podemos dizer, hoje em dia, que o cristianismo é um dos fundamentos centrais da existência democrática. Não estou a dizer que as democracias só exisem em países onde o cristianismo é dominante. Estou a sublinhar que foi nesses países que a democracia nasceu e floresceu e foi de lá que ela foi importada ou exportada. A defesa do cristianismo por Cameron é, em primeiro lugar, a defesa da democracia política.

Esta intervenção, por outro lado, é sintoma de que nos encontramos num território novo. As questões sociais e os antagonismos de classe não deixaram de existir, mas tudo isso faz agora parte de algo bem mais amplo, faz parte de um choque de culturas e de formas de compreender o homem, o mundo e a divindade. O Islão conseguiu impor ao Ocidente a questão e está a obrigá-lo a sair do estado de indiferença perante a religião. E como é que o Islão conseguiu questionar a posição do Ocidente perante a religião? Através de actos políticos, entre eles os actos de terrorismo político. Lentamente, começa-se a perceber que uma sociedade sem um forte fundamento religioso corre perigos de desagregação. Falta perceber o alcance profético da mensagem de Cameron. Será uma voz a pregar no deserto ou anuncia o momento - mais ou menos próximo - em que as comunidade políticas europeias, numa tentativa de sobrevivência, se voltam a afirmar, sem vergonha, como cristãs? 

domingo, 5 de abril de 2015

O massacre de cristãos

Tal-Coat - Massacre (1937)

O Papa (aqui e aqui) e o Cardeal-Patriarca de Lisboa (aqui) aludiram, nesta Páscoa, ao martírio dos cristãos de África e do Médio-Oriente. Não vale a pena dizer que o massacre de quem quer que seja é inaceitável. É verdade, mas os presentes massacres visam, efectivamente, aqueles que são cristãos, apenas pelo simples facto de o serem. Para nós, ocidentais, estes massacres interpelam-nos de duas formas. Em primeiro lugar, eles interpelam-nos na nossa consciência universal de que é inaceitável perseguir alguém por questões de convicção, seja ela religiosa ou outra. Em segundo lugar, elas interpelam-nos na nossa particularidade. Os cristãos massacrados em África e no Médio Oriente são uma espécie tenebrosa de metáfora. São massacrados por serem o que são e por partilharem aquilo que faz o fundo da cultura ocidental, o cristianismo. Os cristãos africanos e do médio-oriente morrem por eles e por nós, mesmo por aqueles que sendo ocidentais não são cristãos nem crentes seja de que religião for. O que é aviltante em toda esta história, para além da conduta criminosa dos bandos radicais islâmicos, é o silêncio e a ponderação pusilânime das potências ocidentais. Apesar de possuírem um fundo cristão, as potências ocidentais só intervêm se está em jogo a necessidade de abrir território ao mercado livre, isto é, aos interesses da elite económico-financeira. As pessoas, mesmo aquelas que partilham os nossos valores, tornaram-se um detalhe irrelevante. A sua defesa não gera cimeiras nos Açores. Quando os governantes se venderam ao príncipe deste mundo (aqui), as suas acções e as suas omissões não se distinguem daquelas que são perpetradas pelos bandos radicais que fazem do crime a sua imagem de marca. Uns pecam por acção, outros por omissão.

sábado, 4 de abril de 2015

Impressões XXVIII - foi uma terra marítima

 Emil Nolde - Light Sea-Mood (1901)

xviii. foi uma terra marítima

foi uma terra marítima
homens iam e vinham
bebiam vinho novo
e juravam pela vida
na sombra da mão

hoje apenas azul e mar
rasto de 
areia luz
o sítio onde colhias
conchas e algas
o obscuro sol de verão

(01/11/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Boa Páscoa

El Greco - Cristo Crucificado (1587-1596

A Páscoa, tanto a dos judeus como a dos cristãos, tem no seu núcleo central a ideia de libertação e a da emancipação. Libertação dos judeus do cativeiro, emancipação dos cristãos do terror da morte eterna. Se há temática que marcou os últimos séculos foi essa, a da libertação e a da emancipação. Mesmo os movimentos mais radicalmente anticristãos, como o iluminismo e o marxismo, só são compreensíveis na sua filiação directa (mesmo que os seus fundadores o tivessem negado) no cristianismo, nomeadamente nos acontecimentos da Páscoa.

Mas, ao trazer hoje uma imagem do Cristo crucificado, gostaria de lembrar um outro aspecto que o tempo foi apagando, e que certa revivescência pagã, na qual não nos importamos de encontrar filiação, não sabe ou não quer saber. O sacrifício do Cristo tem um elevado significado civilizacional. Ao fazer da morte na cruz do seu fundador o núcleo central de uma nova religião, o cristianismo veio abolir e tornar execráveis as práticas de sacrifícios humanos, que existiam por toda a parte. Para o cristianismo só há um sacrifício válido, o do filho de Deus, e toda a morte de homem, ou mesmo de animais, se tornou inaceitável.

É certo que os cristãos vivem a sua fé, quando a têm, centrados na promessa da ressurreição da carne, mas essa fé que se abre à controvérsia está assente num terreno civilizacional, o qual qualquer homem dotado de razão e boa vontade não pode diminuir a importância: o sacrifício humano é desagradável a Deus. Mesmo que o cristianismo só tivesse sido isto, já seria o bastante para o colocar como uma das forças mais poderosamente civilizadoras da humanidade e como um dos fundamentos de uma conduta racional entre os homens. Boa Páscoa. (averomundo, 2009/04/11)

quinta-feira, 2 de abril de 2015

A banalidade em forma de acinte

Juan Botas - School (1989)

Por causa desta ideia da OCDE - a importância de aumentar a escolaridade dos portugueses - lembrei-me de que me tinha esquecido de comentar um artigo de Vasco Pulido Valente sobre a importância - do seu ponto de vista, a irrelevância - da educação para o desenvolvimento do país. O que é interessante no artigo de VPV é que ele é tão superficial na análise do problema como aqueles que ele denuncia. O que está em causa, para mim, não é o facto do artigo ser reaccionário. Isso é irrelevante. O que está em causa é a pura superficialidade com que a questão é abordada.

Para VPV o problema é posto da seguinte forma:  O desenvolvimento económico "não depende da educação e formação do povo. Pelo contrário, a educação e formação do povo dependem de um desenvolvimento económico regular e crescente". Basta levantar uma questão para perceber o sem sentido da posição de VPV: como é que numa economia, há muito ancorada em processos de produção que exigem racionalidade organizacional e técnica, a educação e a formação não são elementos centrais do desenvolvimento económico regular e crescente? Se não é verdade que a educação produza por si só o desenvolvimento económico, também não é verdade que este possa existir sem um contínuo investimento nos processos de instrução e formação globais. Determinar um a priori - a educação ou o desenvolvimento - é uma patetice sem sentido.

A posição de VPV, além de estruturalmente errada, pois ancorada numa visão abstracta, tem ainda a capacidade viciosa de esconder os verdadeiros problemas colocados pela educação e formação em Portugal. Esconde a forma como os diversos graus de ensino - desde o básico ao universitário - são pensados, como é que o desenho de currículos e percursos escolares estão desfasados da realidade, como é que interesses corporativos e de oportunismo político têm a capacidade de destruir muito dos efeitos positivos que a educação e a formação deveriam ter em Portugal. Esconde ainda a deficiente formação escolar e técnica dos próprios empresários e o papel que isso tem na nossa miséria. O pensamento de VPV sobre a educação não é diferente daqueles que, hoje em dia, acham que a educação é dar cursos de empreendedorismo. No fundo, VPV tornou-se um empreendedor de banalidades, que tenta ocultar através do acinte com que derrame na coluna do jornal. 

quarta-feira, 1 de abril de 2015

A fortuna e a húbris

Julia Hidalgo Quejo - La Fortuna (1994)

Se nasceram num país ou numa época em que não só ninguém aparece para matar as vossas mulheres, os vossos filhos, mas em que ninguém aparece também para vos dizer que matem as mulheres e os filhos dos outros, dêem graças a Deus e vão em paz. Mas mantenham sempre presente no espírito esta ideia: talvez tenham tido mais sorte do que eu, mas nem por isso são melhores do que eu. Porque no momento em que tenham a arrogância de pensar sê-lo, aí começa o perigo. (Jonathan Littell, As Benevolentes)

Nos tempos que correm, motivados pelo excesso de abstracção e de racionalidade trazido pelo triunfo da modernidade, esquecemos, com demasiada facilidade, aquilo que os antigos tinham por essencial: a fortuna e a hýbris (desmedida). A nossa vida e os nossos empreendimentos dependem mais do que do planeamento racional do gestor, essa figura quase-divina da nossa pobre mitologia, da boa fortuna e da limitação da hýbris, da desmedida.

É isso que o narrador de As Benevolentes lembra ao leitor. Se este não cometeu excessos na guerra, isso não se deve à sua bondade pessoal, mas à boa fortuna que lhe concedeu um tempo e um lugar onde a guerra não se intrometeu. No entanto, a boa fortuna deve ser lida não como um simples acaso mas na sua conexão com a hýbris. A desmedida, a arrogância de exceder a sua medida, acabará por atrair a má fortuna.

Quando a filosofia deixa de nos ensinar estas coisas, a literatura está aí para as trazer à nossa memória. Tem ainda a vantagem de nos fornecer quadros de leitura da espúria realidade que nos cabe. Vejamos por exemplo a má fortuna que atingiu personagens como Sócrates, os Espírito Santo e outros do mesmo jaez. Quem poderá afirmar que foi apenas a má fortuna que ditou a sua queda? Em toda esta gente, que por momentos pareceu favorecida pelos deuses, a húbris não deixou de fazer o seu trabalho. Não, o planeamento racional e a atenção à gestão das coisas não bastam para levar o barco a bom porto. Os deuses são muito susceptíveis à desmedida dos mortais.