A fortuna da obra é quase inversamente proporcional ao seu
tamanho. Aura é uma pequena novela publicada em 1962 pelo escritor
mexicano Carlos Fuentes. Desenrola-se numa ambiência própria à literatura
gótica e essa não será a menor das razões que estará na base do seu sucesso.
São múltiplas as leituras – a que de certa forma o próprio escritor dará fundamento
– que vêem na novela um exercício simbólico de feitiçaria. Aliás, Fuentes
convoca para epígrafe uma citação de La Sorcière, de Jules Michelet.
Essas leituras, que fazem uma hermenêutica exaustiva de todos os elementos da
obra, desde os nomes dos personagens até aos animais e plantas nela referidas,
passando pelos acontecimentos em que se estrutura a acção, são plausíveis. No
entanto, é possível uma outra leitura que, não negando o compromisso da obra
com esse mundo, tente encontrar aquilo que a literatura questiona e procura na
forma de experiência literária.
Por norma, as narrativas são feitas na primeira ou na
terceira pessoas. Aura, todavia, é narrada na segunda pessoa, o que
introduz de imediato um elemento de perturbação. Logo no início diz-se: Lês
esse anúncio: uma oferta dessa natureza não se faz todos os dias. Lês e relês o
aviso. Parece dirigido a ti, a ninguém mais. Toda a narrativa é feita neste
registo. À partida, o narrador parece dirigir-se para o leitor, como se este
fosse o protagonista, como se ele estivesse envolvido nos acontecimentos. No
entanto, pode ser também uma estratégia narrativa que leve à letra o dito
platónico que afirma que pensar é falar consigo mesmo, uma espécie de diálogo
em que o eu se cinde artificialmente para tentar alcançar a verdade. Pode
ainda ser uma radicalização do topos platónico, o eu se tenha cindido
efectivamente, e o tu seja uma forma coloquial com que o eu se
dirige a um tu que é e não é ele mesmo. Seja como for, o primeiro efeito
literário está conseguido. Há um efectivo questionamento da identidade do eu.
Esta ideia será a chave que pode permitir uma leitura da obra que não se perca
nos efeitos góticos com que ela é construída.
Um anúncio num jornal, prometendo um salário generoso e
acomodação condigna para a tarefa a realizar, pede alguém, do sexo masculino,
que domine o francês e seja historiador. Felipe Montero responde a esse
anúncio. Trata-se de ordenar e completar as memórias, escritas em francês, de
um homem ligado à revolução mexicana, o General Llorente, que terá morrido há
sessenta anos. Quem o pede é a viúva do militar, Consuelo Llorente, que, pelos
cálculos que a certa altura o historiador faz, terá então 109 anos. Não tem
muito tempo, dirá ela, para publicar as memórias do marido. Vive acompanhada
por uma sobrinha, Aura, que, para sobrinha de uma mulher mais que centenária é surpreendentemente
jovem. Os olhos verdes dela fazem de imediato Montero apaixonar-se. É entre
estes três personagens que se desenrola a trama narrativa, que segue, sem nunca
o afirmar explicitamente, o fio de um ritual de feitiçaria, segundo alguns intérpretes
da obra.
Aquilo que o leitor vai encontrar de imediato é a
ambiguidade das personagens. Será que Aura existe mesmo ou não passa de uma
projecção de Consuelo? E a Aura com que Felipe faz amor será mesmo a Aura, ou
será na verdade Consuelo ou, ainda, o feminino que habita em Felipe e que, no
decorrer da trama narrativa, se separa de si mesmo, simbolizando o acto sexual
o desejo de união que todo o ser humano aspira a realizar consigo mesmo, pois
todos os seres racionais sofrem desse sentimento de cisão consigo e a
concomitante nostalgia de um estado existencial onde estariam completos. Há uma
clara utilização do mito do andrógino original narrado por Platão. Por outro
lado, também não é claro que Felipe não seja uma metamorfose do próprio General
Llorente, cuja parecença ele descobre numas velhas fotografias.
Ao lado do problema da identidade pessoal, outras são
trabalhados e que se entretecem com ele. Salientem-se apenas três. Em primeiro
lugar, o problema do espaço. Pode-se recorrer à distinção introduzida por
Mircea Eliade entre espaço profano e espaço sagrado. Ao entrar na casa de
Consuelo Llorente, Felipe Montero abandona o espaço profano da vida quotidiana
e entre no espaço sagrado onde decorre a acção. O que é interessante, no
entanto, não é associar o espaço onde decorre a narrativa à sacralidade devido
ao facto de nele ocorrer, eventualmente, um ritual de feitiçaria, mas perceber
que toda a literatura vive da distinção que Mircea Eliade observou no fenómeno
religioso. A arte, a literatura narrativa, no caso, introduz uma cisão no
espaço, sacralizando aquele onde decorre a narrativa, por oposição ao espaço
profano da vida real.
Em segundo lugar, o problema do tempo. A vida quotidiana
decorre segundo a regra do calendário. Vivemos inquestionadamente num presente.
Recordamos o que se passou e apontamos a seta dos nossos temores e desejos para
o que há-de vir. O tempo é vivido como uma linha contínua, que se desloca
uniformemente do passado para o futuro. O que a novela de Fuentes faz é questionar
essa compreensão do tempo. O tempo de amor entre Consuelo e o General não está apenas
num passado irremediável que a morte de um pôs fim. Esse amor torna-se
presente, pois Aura é a mulher que o General amou e Felipe é o General amado
por Consuelo. Esse tempo compreendido como uma seta arremessada no início do
mundo em direcção ao seu fim pode não ser mais que uma capa ilusória de um
outro tempo, mais real que se vai manifestando no tempo do calendário.
Por fim, o problema do amor. A novela de Fuentes abra para
um conjunto de interrogações sobre a natureza do amor, sobre quem ama aquele
que ama, sobre a persistência do amor para além da morte. Contrariamente a um
exercício filosófico que tentaria dar resposta a estas questões, expondo teses
e argumentos, a literatura enfatiza os próprios problemas, dá-lhes um corpo,
para que elas não despareçam e continuem a atormentar o homem. O notável em Aura
é que no final estas questões tornam-se mais vivas, mais perturbantes, mais
inquietantes. Ela rapta o amor do hábito, da sua quotidianidade e torna-o
sujeito de questionamento, como se apenas na inquietação do questionamento de
si mesmo o amor fosse possível. Ora, isto mostra, por fim, que o amor vive fundado
num princípio de incerteza e é este princípio que o alimenta.