O Músico Cego, um romance do
escritor ucraniano-russo Vladímir Korolenko
(1853-1921), é uma meditação sobre a vontade humana e a conquista da autonomia,
onde se cruza a mutação ontológica e o espírito da música. Piotr nasce cego. Do
ponto de vista da espécie, nascer cego é um mero acidente, pode ocorrer ou não.
Contudo, do ponto de vista do indivíduo, ser cego é a sua condição ontológica, o
resultado de uma mutação para a qual a espécie não o equipou inteiramente.
Na economia do romance, esta cegueira não refere apenas um estado
natural de Piotr, mas simboliza e, ao mesmo tempo, reforça a ausência do pai. Não
que este não estivesse presente, mas a sua absorção nas actividades
profissionais, na administração da propriedade, e a sua natureza bondosa, mas não interveniente, em nada contribuem para moldar o temperamento do novo membro da família. Ausência de visão e ausência da
figura do pai deixam a criança aos cuidados protectores da mãe e de um tio,
irmão da mãe, um velho militar estropiado na guerra. É este que encara o problema da educação do sobrinho. Não apenas a educação no âmbito dos
saberes, mas também a educação da vontade e da autonomia pessoal, uma educação viril
que lhe permita subsistir num mundo natural e social guiado, em primeiro lugar, pela
visão. Uma educação que permita contrabalançar o excesso de protecção, fundado
no afecto e na sentimentalidade, proveniente da mãe.
Especialmente dotado e sensível, Piotr cresce exercitando-se na
configuração do mundo através dos outros sentidos, os quais, na ausência da
visão, se tornam muito mais receptivos, ampliando a sua capacidade de fornecer
informação e de gerar orientação. Esta sensibilidade pode, aos olhos do tio,
Maksim, tornar-se o principal problema. Entre tio e o sobrinho há mais do que
uma relação familiar e afectiva, há uma dolorosa partilha de uma condição
ontológica (uma congénita e outra adquirida) que os distingue da norma. A
experiência existencial de Maksim tem um papel central na educação que pretende para a criança. Brigão e desordeiro, um terror nas redondezas enquanto jovem, revolta-se contra os austríacos e alista-se nas hostes de Garibaldi. Até ficar
estropiado, é um homem de acção, um ser telúrico e viril. É a tensão entre a experiência de uma vitalidade transbordante e o estado pós-mutilação física, com a consequente redução do
poder vital, que fornece o horizonte onde moldará a educação do sobrinho. A questão central é a da sua autonomia, da sua independência num mundo que não está feito para ele.
Aquilo que poderia ser um motivo de ensimesmamento e de fechamento para
a realidade, por parte de Piotr, a sua
sensibilidade para a música, vai ser a alavanca utilizada pelo tio para educar a sua vontade e disseminar nele as
virtudes viris da autonomia. A música entra na vida de Piotr através das velhas melodias
populares ucranianas. É o espírito de um povo que vai ser recebido, através da
música de um servo, pelo jovem cego e que lhe vai moldar o ânimo. Mesmo quando
começa a receber uma educação musical erudita, esta vai casar-se com a tradição
popular. A música não é apenas uma arte nem o exercício de uma
sensibilidade refinada, é também uma forma de captar a realidade, de a redescrever
e de se relacionar com ela. É mais do que isso, é um princípio de cura e de mutação ontológica. No espírito da música são veiculadas as virtude viris e a capacidade de autonomia que o tio Maksim tanto deseja inculcar no sobrinho.
A vontade livre e viril, na ausência de uma figura parental que a molde, nasce de uma música com tonalidades patrióticas, na qual o espírito da música e o espírito do povo se fundem na criação da subjectividade de Piotr, que, dessa forma, metamorfoseia o estado degradado da sua condição natural numa vantagem na relação com o mundo e a sociedade. Não será difícil, por certo, encontrar num romance aparentemente tão simples e, na aparência, quase destituído de problemática política (há apenas a revelação passageira, mas não acidental, das preferência de Maksim por Garibaldi, o unificador e libertador de Itália) uma meditação nacionalista, sobre uma Ucrânia cega para o seu poder e virtude, uma Ucrânia também ela tocada pelo sentimento de autonomia e de independência.
A vontade livre e viril, na ausência de uma figura parental que a molde, nasce de uma música com tonalidades patrióticas, na qual o espírito da música e o espírito do povo se fundem na criação da subjectividade de Piotr, que, dessa forma, metamorfoseia o estado degradado da sua condição natural numa vantagem na relação com o mundo e a sociedade. Não será difícil, por certo, encontrar num romance aparentemente tão simples e, na aparência, quase destituído de problemática política (há apenas a revelação passageira, mas não acidental, das preferência de Maksim por Garibaldi, o unificador e libertador de Itália) uma meditação nacionalista, sobre uma Ucrânia cega para o seu poder e virtude, uma Ucrânia também ela tocada pelo sentimento de autonomia e de independência.
Vladímir Korolenko (2010). O
Músico Cego. Arbor Litterae. Tradução do russo de Nina Guerra e Filipe
Guerra.
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