Manuel Rivera Hernandez - Metamorfosis, mutación (1961)
Por um pequeno truque, José Mário Branco transformou, há muitos anos, o soneto de Camões, Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades, numa espécie de hino à bondade da mudança. O truque está em colocar entre as estrofes camonianas dois versos que funcionam como refrão: Mas se todo o mundo é composto de mudança / Troquemos-lhe as voltas que ainda o dia é uma criança. O texto de Camões está repleto de dialéctica, mas de uma dialéctica ainda não iluminista. A mudança é apresentada, por norma, como contrária à esperança, como aquilo que converte em choro o doce canto. José Mário Branco vai sublinhar a ideia de que o mundo é uma criança, ainda está na sua aurora e que, sendo assim, é possível dirigir-lhe a mudança. Não se pode dizer que há uma completa perversão do texto de Camões. Os últimos dois versos do soneto (Outra mudança faz de mor espanto / Que não se muda já como soía) mostram que há uma mudança na própria mudança, que ela estava a ter uma transformação qualitativa, o que a abriria, podemos imaginar, para a própria esperança.
Camões está à porta da modernidade, já não pertence a um tempo onde a tradição via no fluxo das mudanças o princípio do mal, mas também não era ainda um iluminista, que via na mudança um progresso em direcção ao bem. José Mário Branco canta ainda embalado pela crença iluminista no poder da vontade humana e no progresso. O que estamos dolorosamente a aprender desde há um século, com especial ênfase nos últimos tempos, é que a mudança pode ser contrária à esperança, e no lugar de um bem trazer o mal sob novas figura. O endeusamento da dialéctica da mudança tornou-se para mim, com o passar do tempo, um enigma. Dir-se-á que os homens clamam mudança porque têm esperança que ela traga o bem e o justo. Mas isso não é verdade.
A experiência mostra-nos que as mudanças acabam sempre, com o passar do tempo, por se tornar grandes decepções, como se a realidade fosse impotente para satisfazer a esperança. Resta-me uma explicação: os homens endeusam a mudança porque não têm outro remédio. Queiram ou não, as coisas mudam, e mudam sem conotação moral. Contrariamente ao que diz a canção de José Mário Branco, o mundo muda mas poucas são as nossas possibilidades de lhe trocar as voltas, pois ele não é uma criança, mas uma velha rameira. A esperança com que os homens investem a mudança, mesmo se mil vezes decepcionados, é o ópio que usam para tornar a dor da mudança suportável. Só isso.
Apesar de gostar do poema e da canção, reconheço que o mundo é uma rameira e as "mudanças" são uma sucessão de falácias.
ResponderEliminarA última é a chamada crise do Capitalismo, como se antes dela, a realidade fosse diferente e não existissem já cerca de mil milhões de pessoas com fome em todo o mundo; 3 biliões de pessoas sem saneamento básico; metade da população do planeta sem acesso directo a água potável; a morte de milhões de crianças por ano, vitimadas por doenças cuja cura é possível; mais de 100 milhões de crianças sem acesso à educação e cerca de 900 milhões de adultos analfabetos; a morte de 13 milhões de pessoas todos os anos por causa da deterioração dos ambientes naturais e das mudanças climáticas; mais de 16 mil espécies em vias de extinção, das quais 25% são mamíferos, etc.
Camões sabia o que "cantava".
AH! E sim, a esperança é a última a morrer...de fome.
Abraço
Pessoalmente, não tenho grandes esperanças. Um módico de decência e alguma justiça já não seria mau. Mas o mundo é governado por uns grandes filhos da mãe e a massa dos governados contém um reservatório inesgotável de filhos da mãe prontos para substituir os actuais. A minha tese é um pouco como a da Guerra Fria, é preciso que as partes tenham medo umas das outras e, por isso, o equilíbrio é essencial.
EliminarAbraço
"A esperança com que os homens investem a mudança, mesmo se mil vezes decepcionados, é o ópio que usam para tornar a dor da mudança suportável. Só isso."
ResponderEliminara dor com que se investe na mudança, mesmo se mil vezes iludida, é a força que se usa para tornar a morte suportável
Perdoe a resposta em modo de adaptação selvagem, mas entre heraclitante e parmenidecente prefiro-me em movimento, talvez um dia venha o tempo da contemplação.
Boas Noites.
Rita,
EliminarEu tenho uma forte inclinação para compreender aquela célebre frase do Leopardo, do Lampedusa: "é preciso que tudo mude para que tudo fique na mesma". E em Heraclito há uma certa armadilha. O fluxo contínuo, o não poder banhar-se duas vezes nas mesmas águas do mesmo rio, escondem a ideia de permanência. Se tudo muda, então a mudança permanece, se alguma coisa permanece, logo não muda. Seja como for, eu sou de certa forma um contemplativo. Em questões políticas, o meu lema é o do R. Aron: espectador comprometido. Agora o meu compromisso não é com as partes, nem com as ilusões que elas pretendem vender. E neste momento, as ilusões atingem alto valor no mercado social. Veja-se o discurso governo ou os discursos da oposição.
Boa noite