Jorge Carreira Maia - My foolish world IV (2014)
Já não estamos naqueles tempos em que a cultura era um sistema
completo e coerente de explicação do mundo. De igual modo, acabaram as grandes
épocas de oposição entre cultura popular e cultura erudita, entre
"civilização" das elites e "barbárie" da populaça. A este
universo de oposições distintivas e hierárquicas sucedeu um mundo em que a
cultura, que já não se separa da indústria mercantil, alardeia uma vocação
planetária e se infiltra em todos os sectores de actividade. Ao mundo de ontem,
em que a cultura era um sistema de signos distintivos, comandados pelas lutas
simbólicas entre grupos sociais, que se organizava em torno de pontos de
referência sagrados e institucionais, sucede o mundo da economia política da
cultura e da produção cultural prolífica e incessantemente renovada. Já não
existe o cosmos fixo da unidade, do sentido último e das classificações
hierarquizadas, substituído que foi pelo das redes, dos fluxos, da moda e do
mercado sem fundamento nem centro de referência. Nestes tempos hipermodernos, a
cultura transformou-se num mundo cuja circunferência passou a estar em todo o
lado e o centro em lado nenhum. [Gilles Lipovetsky & Jean Serroy
(2010). A Cultura-Mundo - Resposta a
uma Sociedade Desorientada. Lisboa: Edições 70, pp. 12]
O importante já não é sublinhar o fim da explicação coerente do mundo,
nem a morte da distinção entre cultura e barbárie. O que importa pensar é a
natureza gasosa da cultura. A gaseificação da cultura a que assistimos tem uma
suposta origem nos fenómenos acima citados desde a indústria cultural mercantil
à moda, e é simbolicamente descrita nos conceitos de rede, fluxo, de mundo que
é uma circunferência destituída de centro. Esta última metáfora é um indicador
precioso do caminho que se está a trilhar. Ela já foi utilizada, no início da
modernidade, para descrever a novo concepção de cosmos que despontava.
Com esta conexão entre o mundo da cultura e o mundo da natureza
cósmica percebemos que o que está em causa é a destruição do espírito pela
naturalização da cultura. Essa naturalização é feita pelo mercado. Ao
transformar-se em mercadoria, a cultura está submetida aos mesmos efeitos das
mercadorias cujas matérias-primas residem na natureza, isto é, aos ciclos de
produção, consumo e obsolescência. Os produtos culturais nascem para se
tornarem obsoletos e, desse modo, volatilizam-se, gaseificam-se.
Os clássicos da cultura são clássicos porque provêm da solidez do espírito,
mas nos nossos tempos os produtos culturais não possuem solidez, são matéria
gaseificada que se dissolve no ambiente, as mais das vezes poluindo-o, diga-se
de passagem (veja-se a indústria do entretenimento - vai desde a literatura ao
cinema, passando por um crescente número de novas modalidades ditas culturais
ou artísticas - ou o infinito trabalho académico, constituído, na sua imensa
globalidade, por lixo intelectual justificador de carreiras académicas ou puro
diletantismo). Esta gaseificação da cultura é um dos traços da modernidade
tardia, ou hipermodernidade. O que se oculta nesse processo de gaseificação? A
pura ruína. Enquanto as civilizações tradicionais produziam a vida segundo a
norma da eternidade e da permanência das suas construções, o nosso mundo
moderno, ou hipermoderno, constrói tudo para a sua própria ruína.
A ruína deixou de ser uma consequência natural, derivada da acção das
leis da natureza sobre as produções espirituais da humanidade, para ser o
elemento central da cultura actual, das produções do espírito moderno ou
hipermoderno. Quando se concebe um produto (e tudo se transformou num produto
para o mercado global), concebe-se pensando já na sua obsolescência, na sua
ruína, na sua gaseificação. Parece sólido, mas, como o gás, ele está pronto a
desaparecer na atmosfera. Não se trata sequer de falar numa civilização do
desperdício, do consumo ou mesmo do hiper-consumo.
Trata-se de uma civilização cujo núcleo central de desenvolvimento é o
querer da ruína. Note-se que isto não atinge apenas os bens de consumo como
automóveis, telemóveis, romances, filmes, jogos, etc. Isto atinge as próprias
teorias científicas, as quais são construídas para serem destruídas e
substituídas por outras consideradas melhores. As ciências, núcleo central da espiritualidade
actual, são constituídas por teorias que visam, em última análise, a sua
própria destruição, a sua gaseificação. Visam a ruína de si mesmas como
explicação dos fenómenos que estudam. O fim que habita as ciências, um fim que
visa a auto-destruição, impregna todo o ambiente em que se vive. A ruína nasce
do corte entre as ciências e aquilo que as fundamentava e as ligava à ideia de
eternidade, isto é, a filosofia e, num outro âmbito, a teologia. Curiosamente,
o que celebramos quando celebramos a autonomia das ciências nascida na
modernidade, com Galileu e Newton, é o culto da ruína como programa central da
nossa vida. (averomundo, 2010/02/01)
Sem pretender meter-me em espaços que não estão ao meu ao meu alcance atrevo-me a dizer que também a ética e a moral e tudo o que delas decorre estão cada vez mais voláteis.
ResponderEliminarUm abraço
Claro, a característica essencial de uma era manifesta-se em todos os aspectos. Também ética e moral se tornaram voláteis.
EliminarAbraço