Love (Amor) inicia a trilogia Paradise
(completada com os filmes Fé e Esperança) do austríaco Ulrich Seidl.
Tanto quanto dei por isso, os filmes não passaram – ou ainda não passaram – em Portugal.
A relação com as virtudes teologais não deve ser tomada como mero expediente
para fornecer uma unidade temática às três obras. Neste primeiro filme, a
virtude teologal do amor (ou caridade) deve ser tida como o horizonte – um horizonte
negativo, entenda-se – da trama romanesca. Sendo assim, convém ter presente –
apesar do filme não conter qualquer referência à religião – que as virtude
teologais fundamentam e animam o agir moral cristão, e são o sinal da presença
e da acção do Espírito Santo no ser humano.
O amor (caridade), segundo Cristo, veio substituir, ou plenificar, a
lei judaica. Como se deve entender o amor enquanto virtude teologal? Duas notas
bastam. O amor é dádiva de si ao outro e o contrário da usura, a qual
transforma o outro num mero objecto. O que tem isto a ver com o filme de Ulrich
Seidl? Pelo conteúdo explícito, nada. Mas sem se saber isso não se percebe o
filme. Teresa – a protagonista – vai para o Quénia numa viagem de turismo, na
verdade numa viagem de turismo sexual. É uma mulher, na casa dos 50 anos, que vive com a filha, com um corpo longe, muito longe, do esplendor que todos os dias é
sublinhado pela comunicação social como imagem ideal da beleza feminina. Na
verdade, é uma mulher abandonada e, devido à configuração física e à idade, sem
valor de mercado no mundo de trocas amorosas/sexuais do ocidente.
Embarca na viagem turística, mas aspira que, nesse mundo pressentido
como mais autêntico e mais ingénuo, ainda alguém a possa tocar, a possa olhar
nos olhar e fazer tremer o coração. Cansada, porventura, da usura da
sexualidade ocidental, aspira ao amor. Vivemos, porém, num mundo globalizado e
os beach boys – jovens quenianos que
cercam literalmente os turistas – vêem nas matronas ocidentais uma oportunidade
de negócio, a possibilidade de ganhar dinheiro fácil. A experiência queniana de
Teresa – nesse paraíso africano imaginado (o filme mostra parte desse
imaginário) por ocidentais depressivos – é a de uma contínua decepção. Desde a
descoberta de que estava a ser vítima de exploração até, quando se deixa de
romantismos e se entrega à busca da satisfação carnal, à impotência de um jovem
africano alugado para a festa de anos ou à recusa de um cunnilingus por parte de um empregado do hotel. Decepção atrás de
decepção.
O paraíso que se descobre através do amor é o da desilusão. África não
é diferente da Europa, é apenas mais pobre. O dinheiro tomou conta de tudo. Não
há dádiva amorosa. Apenas a usura que o dinheiro impõe fala e dita as regras. O
que filma Ulrich Seidl em Love
(Amor)? Diria que é o mundo onde virtudes teologais deixaram de animar – se é
que alguma vez o animaram – o agir dos seres humanos. Seidl filma a inacção do
Espírito Santo nos homens ou, numa outra perspectiva, a incapacidade destes
para se deixarem tocar por aquela acção.
Em termos heideggerianos, o realizador mostra-nos a derrelicção do homem
– nesta caso, de uma mulher – por Deus. O paraíso de Teresa reduz-se à pura
banalidade da vida quotidiana num mundo marcado pela relação da oferta e da
procura. Diria Marx, num mundo marcado pelo fetichismo da mercadoria. É esta a
normalidade do mundo.
Ora a abertura do filme é uma verdadeira metáfora desse mundo. As
primeiras imagens da película mostram-nos Teresa no exercício da sua profissão.
Acompanhava (não se percebe bem em que papel) um enorme grupo de deficientes
mentais levado a uma pista de carros de choque. A combinação deste universo da
deficiência mental com o da arbitrariedade que sempre reina nesse tipo de
pistas é a metáfora impiedosa – no sentido em que a desgraça da deficiência é mobilizada –, mediada pela própria Teresa,
de um mundo cuja ordem é regulada pela usura dos corpos e o afastamento da
graça oferecida pelo Paráclito. A normalidade do mundo não passa de uma ab-normalidade, de um exercício de
deficientes num palco onde os comportamentos são caóticos e arbitrários.
Que melhor imagem para identificar a deriva anárquica em que nos movimentamos e nos relacionamos uns com os outros, do que uma pista de carrinhos de choque?
ResponderEliminarAs imagens de abertura do filme são, ao mesmo tempo, terríveis e de uma precisão milimétrica.
EliminarAbraço