sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Uma doença infecta o mundo


Hoje em dia parece que há um mal,
uma doença a infectar o mundo.
(Christopher Isherwood, Adeus a Berlim, p. 250)

Quando Isherwood, no romance Adeus a Berlim, põe a frase em epígrafe na boca de Herr Brink, estava-se nos anos trinta do século passado. A frágil república de Weimar declinava e a Alemanha, pelas mãos do marechal Paul Ludwig von Hidenburg, então Presidente da República, entregava-se no atoleiro sangrento e irracional do nazismo. Não é irrelevante saber que o velho marechal detestava Hitler. Aliás, tinha-se candidatado à Presidência da República com 82 anos para evitar a eleição desse mesmo Hitler. Essas idiossincrasias pessoais, contudo, não foram suficientes para evitar a entrega do poder aos nazis e a terrível desgraça que se abateu sobre o mundo. A doença infecciosa era já uma verdadeira pandemia e não houve forma de a evitar.

Quando em finais de Março de 2010, poucos meses antes de morrer, o historiador Tony Judt publica Ill Fares the Land (em português: Um Tratado Sobre os Nossos Actuais Descontentamentos), é, de novo, a ideia de que há uma doença a infectar o mundo que vem ao de cima. Não se trata do irracionalismo nazi, mas da quebra do equilíbrio político – quebra trazida pelas governações de Thatcher e Reagan – que permitiu três décadas de paz, prosperidade e justiça social no mundo ocidental. Passaram agora quatro anos da morte de Tony Judt e a doença de que falava não parou de crescer, numa multiplicação imparável de metástases que auguram o pior.

A situação caótica no Médio Oriente, o recrudescimento das actividades do islamismo radical, as conversões ao Islão de jovens europeus, o clima de profunda desconfiança dos cidadãos nas elites políticas e económicas, os escândalos financeiros, o crescimento dos partidos de extrema-direita, as crises das dívidas soberanas e o regresso da guerra à Europa, no conflito ucraniano, tudo isto são sintomas de uma doença que tem, de uma forma ou de outra, origem no triunfo do radicalismo liberal e no desfazer do chamado pacto social-democrata que governou o Ocidente por várias décadas.

O que distingue a nossa situação actual da situação vivida na Alemanha dos anos trinta do século passado? O irracionalismo nazi ainda se apresentava de forma sólida e trazia consigo uma configuração – embora trágica e criminosa – para o mundo. A doença actual é diferente. Ela é apenas dissolvente. Não traz consigo nenhuma alternativa, não apresenta aos homens um mundo possível. O que estamos a presenciar, nestes dias infectos, é a cada vez menos lenta dissolução de todas as instituições, modos de vida e maneiras de pensar. Tudo se desagrega como se uma terrível noite estivesse para chegar e nada mais houvesse para além dela.

4 comentários:

  1. Respostas
    1. As consequências poderão vir a ser bem mais abrangentes do que as de Hiroshima, bem mais radicais, embora Hiroshima possa marcar uma fase decisiva na degradação moral dos homens.

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  2. O radicalismo liberal -não esqueçamos- foi o vírus causador de todas estas maleitas infecciosas de que o mundo actual enferma.
    Não sei se há vacina e, pior, se há quem a descubra e a aplique.

    Bom fim-de-semana

    Abraço

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    1. Os gregos - na sua ética - pensaram uma resposta, a justa medida, o nada em excesso. Foi este equilíbrio sábio e sensato que o radicalismo fanático dos liberais destruiu, estando a doença a devorar o corpo social.

      Bom fim-de-semana.

      Abraço

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