Francis Picabia - La revolución española (1937)
Afinal aquela velha história de Kant, provavelmente um mito urbano da
Konigsberg do século XVIII, que contava que as donas de casa acertavam o
relógio pela passagem do filósofo, pois ele fazia sempre o mesmo passeio à
mesma hora, não é assim tão extraordinária. Pelo contrário. Um
estudo na revista Science prova que 93% das movimentações humanas no
espaço são previsíveis. Sejam pessoas que fazem centenas de quilómetros
diários, sejam aquelas que apenas percorrem algumas centenas de metros, todas
têm em comum o facto dos seus percursos serem previsíveis.
Este estudo, que pretende ter pertinência para a gestão dos fluxos do
tráfego nas cidades, deixa perceber uma coisa bem interessante que não é
comentada no jornal nem, provavelmente, foi tematizada pelos cientistas. Os
seres humanos são por essência conservadores. Uma parte muito substancial das
suas deslocações no espaço obedece a padrões normalizados (a nível pessoal,
entenda-se). As rotinas tornam-se hábitos, e estes, como ensinou há muito
Aristóteles, são uma segunda natureza. A repetição, a rotina, o hábito são a
casa onde os seres humanos se aconchegam para poder viver. A previsibilidade
mostra uma certa eficiência na gestão da relação com o mundo. Diminui a
angústia do próprio e a desconfiança dos outros. Foi devido à previsibilidade,
e concomitantemente à natureza conservadora dos hábitos, que a espécie humana
pôde resistir e permanecer no mundo. Foi ela que fundou a política, a economia,
a cultura.
A espontaneidade, a imprevisibilidade, a capacidade de inovação, etc.
sempre foram vistas como excepção, e como tal repelidas ou santificadas.
Por santificação da excepção quero dizer que o excepcional era reconhecido como
tal, atribuía-se-lhe mérito, premiava-se, mitificava-se, mas ninguém pensava
que a vida normal pudesse ser composta por estados e por actos excepcionais.
Por exemplo, ninguém acha que não ter o dom de Cristiano Ronaldo para jogar
futebol seja um problema. Ele é uma excepção, mas a vida deve decorrer segundo
um princípio da não excepção.
A derrota dos projectos revolucionários em política funda-se sempre no
conflito entre a natureza humana, previsível e rotineira, e o estado de
excepção que uma Revolução política implica. Por exemplo, a derrota do
comunismo não se deve tanto à excelência do mundo capitalista ocidental, mas ao
carácter inumano do próprio comunismo. Aqui inumano não se refere apenas ao
exercício continuado da violência, sempre necessária para assegurar o percurso
político da excepção, mas ao facto de que a revolução tem um carácter que choca
com a necessidade dos seres humanos se instalarem no previsível, na rotina, no
hábito. Quando há revoluções políticas, seja qual for a sua cor, os homens são
expulsos, pelos acontecimentos, da sua própria casa. É assim que se sentem.
Já que se falou no comunismo, poder-se-á salientar que o pensamento
revolucionário mais consequente se encontra no conceito de Revolução
permanente, criado por Léon Trotsky, um dos chefes da Revolução bolchevique de
1917, na Rússia. Uma revolução, enquanto tal, só o é se permanentemente estiver
a revolucionar o mundo, a modificar as instituições, a alterar métodos e
modelos de acção, a refazer os caminhos que o homem possui para viver em
sociedade.
Esta ideia de revolução permanente, porém, não é apenas central no
comunismo. Ela é a essência das sociedades capitalistas. O capitalismo, fundado
na natureza agónica do mercado, exige uma revolução permanente na sociedade e
no modo de vida dos indivíduos, bem como na forma como estes trabalham. O
capitalismo, bem como as ideologias totalitárias modernas (fascismo, comunismo,
nazismo, anarquismo), assenta na contínua destruição dos hábitos, das rotinas,
daquilo que há de previsível no ser humano. Mas a inumanidade do modo de vida
capitalista é mais fina e assenta numa contradição.
Por um lado e segundo a retórica em vigor, os indivíduos enquanto
produtores e consumidores devem ser espontâneos, abrirem-se para o inédito,
para a inovação, fazer formação ao longo da vida, etc. Devem ser
revolucionários, numa palavra. O mundo do trabalho e o mundo do consumo, parte
substancial da vida humana, estão submetidos a uma revolução permanente. Por
outro lado, porém, as mesmas pessoas, enquanto cidadãos, devem ser
absolutamente previsíveis, rotineiras, com vidas fundadas em hábitos sociais
que possam ser facilmente controlados.
Aquilo que diz respeito ao privado, à casa do homem (o trabalho, a
satisfação das necessidades, a própria família), deve estar em mutação contínua
(novas formas de trabalhar, novos objectos para consumir, novas formas, sempre moles,
de família), enquanto a vida pública deve ser perfeitamente conformista e
estereotipada. A inumanidade das sociedades capitalistas assenta neste
antagonismo esquizofrénico entre o público e o privado. Mas ainda não é tudo.
Esta esquizofrenia social está assente na expulsão do homem da sua casa, ao
nível da vida privada (vida familiar, de trabalho e de consumo em permanente
revolução), e a única casa que agora encontra é a da exposição no espaço
público (é isto que se chama sociedade do espectáculo) onde, de forma
conformada, se atém a rotinas e hábitos que permitem aos poderes dormir
tranquilos. Tudo está sob vigilância. Que os indivíduos, numa parte do seu dia,
tenham de ser revolucionários e inovadores e, na outra, gente cordata e
absolutamente previsível explica o crescimento exponencial das patologias
ligadas ao comportamento. Um inesgotável filão para psicanalistas, psicólogos,
psiquiatras e outros técnicos do género. [republicação de um texto de averomundo,
2010/02/25]
A história de Kant e das horas é extraordinária...O facto de haver outras ladainhas semelhantes não lhe retira valor!
ResponderEliminarMas parece que a história era mesmo verdade e não apenas uma metáfora para caracterizar o rigor de Kant.
EliminarA revolução permanente que poderia (?) ter transformado o homem -a humanidade- foi sacrificada, bem ou mal, a golpes de picareta.
ResponderEliminarNem sequer se chegou à revolução possível, porque até essa se ficou pela metade e quem faz meia revolução cava a sua própria sepultura (Proudhom dixit).
Facto que ainda está por provar, mas ao que tudo indica não faltará muito, até porque os revolucionários são uma espécie em vias de extinção.
Um abraço
A ideia de transformação do homem - a utopia do homem novo - tornou-se-me inverosímil. Não se trata sequer de uma questão política, mas algo muito mais fundamental. O mais a que se poderá aspirar é a uma lenta - e sempre precária - civilidade.
EliminarAbraço