segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Ulrich Seidl. Faith (Fé)


é o segundo filme da trilogia Paraíso do realizador austríaco Ulrich Seidl. No primeiro filme da trilogia (Amor), Teresa procura o amor numa viagem de turismo sexual ao Quénia (ver aqui). O que encontra, porém, nada tem a ver com o amor. O segundo filme continua a exploração do impacto – ou da ausência dele – das virtudes teologais na vida das pessoas. A protagonista, Anna Maria, é irmã de Teresa. Com isto estabelece-se uma relação genética entre os filmes, embora Anna Maria, ao contrário da irmã, foge do sexo e entrega-se, com todo o ardor, a uma vida de apostolado e de difusão do catolicismo que lembra as práticas de certas seitas evangélicas.

Os momentos iniciais do filme são, mais uma vez, centrais. Quando se assiste a Anna Maria a flagelar-se seminua diante de um crucifixo, temos uma visão do tom geral do filme e do grau de compromisso da protagonista com a religião. Depois, como acontece no primeiro filme, temos um vislumbre de Anna Maria nas suas funções profissionais. Trabalha como técnica de radiologia. Mais uma vez a profissão é utilizada para fornecer uma metáfora, discreta mas incisiva, sobre a atitude da protagonista. Ela trabalha com a doença e descobrir-se-á que toda a sua relação com a vida, o sexo e a religião é patológica.

Enquanto virtude teologal, a fé pressupõe a cegueira perante as realidades divinas e a crença fundada na revelação. O que Ulrich Seidl faz é transferir essa cegueira perante o absoluto para uma cegueira perante a relatividade da vida e as solicitações desta. Ao jeito de um palimpsesto, inscrevem-se no filme dois núcleos temáticos. No cerne do comportamento de Anna Maria está a sexualidade, mas a questão que subjaz é a da relação do catolicismo com a modernidade e a autonomia da pessoa.

Ulrich Seidl filma uma sexualidade recalcada e desviada do seu objecto para a religião e a figura de Cristo na cruz. A sexualidade transbordante dos outros horroriza a protagonista. O sexo é pressentido como uma forma de errância que desvia e perde os seres humanos. Em contraponto, Anna Maria anda de casa em casa tentando converter os perdidos, arrastando consigo uma imagem da Virgem Maria. Face a face temos a realidade da vida mundana e o modelo virginal da virtude cristã. Anna Maria é a mediadora entre ambas, mas uma mediadora que não deixa de se flagelar seminua perante o Cristo na cruz ou de se entregar a beijos e carícias demasiado humanas a esse mesmo Cristo crucificado, com o qual o realizador insinua uma masturbação. Recalcamento sexual, transferência do desejo erótico, negação, refúgio numa pureza idealizada.

A temática da sexualidade cruza-se com a da resistência de certos sectores católicos à modernidade de forma surpreendente e bastante irónica. A composição da personagem de Anna Maria não podia ser mais contrastada. Do ponto de vista profissional, ela opera com os resultados últimos da modernidade, com toda aquela aparelhagem que a ciência permitiu produzir para detectar as patologias físicas da humanidade. Mas ao abandonar a bata branca, Anna Maria parece uma mulher de uma outra época, de um mundo que já acabou, mas que persiste nela e no grupo que se reúne na sua casa para orar pelo retorno da Áustria aos velhos valores católicos. Mas o surpreendente e irónico reside noutro aspecto. Como complemento desta cisão, Anna Maria é casada com um egípcio muçulmano, paraplégico devido a um acidente. Estão separados, mas ele retorna a casa para reivindicar a sua condição de marido. O choque entre esta presença e o rigor militante do catolicismo de Anna Maria é o revelador da resistência à modernidade. A ironia está no facto de ser um muçulmano egípcio a exigir uma vida normal entre ambos e de ser a católica ocidental a figura do fundamentalismo religioso. De um lado, é valorizado o amor. Do outro, o rigor fanático e a obsessão anti-sexual. Observamos no filme esse choque entre tradição e modernidade, mas com os protagonistas com papéis invertidos relativamente ao que estamos habituados. A vida conjugal acaba por se tornar num conflito contínuo. Anna Maria, despedaçada pela cisão imposta pela sua visão religiosa e as exigências efectivas que o casamento traz, acaba a flagelar o próprio Cristo crucificado.


O filme tem todos os ingredientes para uma cruzada dos sectores católicos mais conservadores. Contudo, isso só acontece por deficiente capacidade de leitura. Do ponto de vista do catolicismo, a fé que é proposta ao crente não é nas regras e nos comportamentos neste mundo, mas nas verdades divinas extra-mundanas. Contudo, essa fé quando é transferida do plano divino para o plano social e humano não gera apenas o fanatismo fundamentalista, mas uma espécie de heresia, na qual o amor ao outro é aniquilado. O que Ulrich Seidl – com a sua fama de provocador e iconoclasta – faz é descontruir uma espécie de catolicismo impotente, herético e libertar o espaço para uma interrogação mais essencial sobre a relação do homem com o divino e com os outros homens. 

2 comentários:

  1. Por norma, as religiões são perversamente inibidoras da sexualidade feminina.
    A situação torna-se tanto mais patética e incompreensível, quando as mulheres, elas próprias, sublimam a renúncia à sexualidade como uma fatalidade.

    Um abraço

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    1. A sexualidade, tanto quanto se sabe, sempre foi problemática para a espécie humana. Não sendo um comportamento puramente instintivo, pressupondo-se que tem uma dimensão cultural e que depende do livre-arbítrio, tornou-se o campo decisivo do jogo do poder. As religiões não podiam ficar de fora deste contexto. Mais, se exceptuarmos as sociedades modernas com o seu laicismo, o social e o religioso confundem-se, pois todos os actos essenciais dos homens caem no domínio do sagrado. Tenho dúvidas que seja uma questão de perversão, pois não temos qualquer experiência de uma sexualidade humana liberta da sombra religiosa. Mesmo nas nossas sociedades, mesmo entre ateus.

      Abraço

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