Fé é o segundo filme da
trilogia Paraíso do realizador
austríaco Ulrich Seidl. No primeiro filme da trilogia (Amor), Teresa procura o amor numa viagem de turismo sexual ao
Quénia (ver aqui). O que encontra, porém, nada tem a ver com o amor. O segundo
filme continua a exploração do impacto – ou da ausência dele – das virtudes
teologais na vida das pessoas. A protagonista, Anna Maria, é irmã de
Teresa. Com isto estabelece-se uma relação genética entre os filmes, embora
Anna Maria, ao contrário da irmã, foge do sexo e entrega-se, com todo o ardor, a
uma vida de apostolado e de difusão do catolicismo que lembra as práticas de
certas seitas evangélicas.
Os momentos iniciais do filme são, mais uma vez, centrais. Quando se
assiste a Anna Maria a flagelar-se seminua diante de um crucifixo, temos uma visão do
tom geral do filme e do grau de compromisso da protagonista com a religião.
Depois, como acontece no primeiro filme, temos um vislumbre de Anna Maria nas
suas funções profissionais. Trabalha como técnica de radiologia. Mais uma vez a
profissão é utilizada para fornecer uma metáfora, discreta mas incisiva, sobre
a atitude da protagonista. Ela trabalha com a doença e descobrir-se-á que
toda a sua relação com a vida, o sexo e a religião é patológica.
Enquanto virtude teologal, a fé pressupõe a cegueira perante as
realidades divinas e a crença fundada na revelação. O que Ulrich Seidl faz é transferir
essa cegueira perante o absoluto para uma cegueira perante a relatividade da
vida e as solicitações desta. Ao jeito de um palimpsesto, inscrevem-se no filme
dois núcleos temáticos. No cerne do comportamento de Anna Maria está a
sexualidade, mas a questão que subjaz é a da relação do catolicismo com a
modernidade e a autonomia da pessoa.
Ulrich Seidl filma uma sexualidade recalcada e desviada do seu objecto
para a religião e a figura de Cristo na cruz. A sexualidade transbordante dos
outros horroriza a protagonista. O sexo é pressentido como uma forma de
errância que desvia e perde os seres humanos. Em contraponto, Anna Maria anda
de casa em casa tentando converter os perdidos, arrastando consigo uma imagem
da Virgem Maria. Face a face temos a realidade da vida mundana e o modelo virginal
da virtude cristã. Anna Maria é a mediadora entre ambas, mas uma mediadora que
não deixa de se flagelar seminua perante o Cristo na cruz ou de se entregar a
beijos e carícias demasiado humanas a esse mesmo Cristo crucificado, com o qual
o realizador insinua uma masturbação. Recalcamento sexual, transferência do
desejo erótico, negação, refúgio numa pureza idealizada.
A temática da sexualidade cruza-se com a da resistência de certos
sectores católicos à modernidade de forma surpreendente e bastante irónica. A
composição da personagem de Anna Maria não podia ser mais contrastada. Do ponto
de vista profissional, ela opera com os resultados últimos da modernidade, com
toda aquela aparelhagem que a ciência permitiu produzir para detectar as
patologias físicas da humanidade. Mas ao abandonar a bata branca, Anna Maria
parece uma mulher de uma outra época, de um mundo que já acabou,
mas que persiste nela e no grupo que se reúne na sua casa para orar pelo
retorno da Áustria aos velhos valores católicos. Mas o surpreendente e irónico
reside noutro aspecto. Como complemento desta cisão, Anna Maria é casada com um
egípcio muçulmano, paraplégico devido a um acidente. Estão separados, mas ele
retorna a casa para reivindicar a sua condição de marido. O choque entre esta presença
e o rigor militante do catolicismo de Anna Maria é o revelador da resistência à
modernidade. A ironia está no facto de ser um muçulmano egípcio a exigir uma
vida normal entre ambos e de ser a católica ocidental a figura do
fundamentalismo religioso. De um lado, é valorizado o amor. Do outro, o rigor
fanático e a obsessão anti-sexual. Observamos no filme esse choque entre
tradição e modernidade, mas com os protagonistas com papéis invertidos relativamente
ao que estamos habituados. A vida conjugal acaba por se tornar num conflito
contínuo. Anna Maria, despedaçada pela cisão imposta pela sua visão religiosa e
as exigências efectivas que o casamento traz, acaba a flagelar o próprio Cristo
crucificado.
O filme tem todos os ingredientes para uma cruzada dos sectores
católicos mais conservadores. Contudo, isso só acontece por deficiente capacidade
de leitura. Do ponto de vista do catolicismo, a fé que é proposta ao crente não
é nas regras e nos comportamentos neste mundo, mas nas verdades divinas
extra-mundanas. Contudo, essa fé quando é transferida do plano divino para o
plano social e humano não gera apenas o fanatismo fundamentalista, mas uma
espécie de heresia, na qual o amor ao outro é aniquilado. O que Ulrich Seidl –
com a sua fama de provocador e iconoclasta – faz é descontruir uma espécie de
catolicismo impotente, herético e libertar o espaço para uma interrogação mais
essencial sobre a relação do homem com o divino e com os outros homens.
Por norma, as religiões são perversamente inibidoras da sexualidade feminina.
ResponderEliminarA situação torna-se tanto mais patética e incompreensível, quando as mulheres, elas próprias, sublimam a renúncia à sexualidade como uma fatalidade.
Um abraço
A sexualidade, tanto quanto se sabe, sempre foi problemática para a espécie humana. Não sendo um comportamento puramente instintivo, pressupondo-se que tem uma dimensão cultural e que depende do livre-arbítrio, tornou-se o campo decisivo do jogo do poder. As religiões não podiam ficar de fora deste contexto. Mais, se exceptuarmos as sociedades modernas com o seu laicismo, o social e o religioso confundem-se, pois todos os actos essenciais dos homens caem no domínio do sagrado. Tenho dúvidas que seja uma questão de perversão, pois não temos qualquer experiência de uma sexualidade humana liberta da sombra religiosa. Mesmo nas nossas sociedades, mesmo entre ateus.
EliminarAbraço