Gordon W. Gahan - The Game, Nazaré, Portugal (1967)
A partir desta fotografia de Gordon W. Gahan poder-se-ia levantar a vexata quaestio relativa ao carácter alienante, ou não, do futebol. Dir-se-á, contudo que entre dois rapazes a correr, numa rua da Nazaré, atrás de um bola e a grande indústria do futebol contemporâneo não há comensurabilidade. Talvez não haja, mas o entusiasmo que ilumina estes rapazes é idêntico àquele que conduziu a que muitos rapazes com talento se tornassem profissionais de futebol. Esse entusiasmo é o mesmo que leva muitos milhões de pessoas aos Estádios ou as prende às televisões. Entreguemo-nos, porém, à leitura da fotografia. O que vemos nela?
Em primeiro plano, a bola e o entusiasmo com que dois rapazes se entregam à disputa dessa mesma bola. Olhamos para a cara deles e vemos o que se vê na cara de muitos profissionais de futebol. Entrega ao jogo, determinação, ardor, sentido de competição, ânsia de chegar em primeiro lugar. Se se perscrutar com atenção os rostos de ambos os jogadores vê-se, bem nítido, o carácter de cada um ali espelhado. Certamente, provirão de estirpes habituadas ao difícil, ao rigor que a exiguidade social traz consigo. O futebol - esta singela disputa de uma bola que ameaça perder-se - emerge aqui como um poderoso revelador de carácter, uma ilustração de uma antiga aula de psicologia. Também não seria difícil especular, a partir da fotografia, sobre questões éticas ou mesmo metafísicas. Mas há outra coisa essencial nesta fotografia.
O brilho proveniente do ardor da disputa da bola ilumina a fotografia e deixa ver mais que o mero jogo da bola. O que vemos ali? Vemos Portugal no ano de 1967. Um dos rapazes joga descalço sobre um campo de paralelepípedos, o outro com umas pobres sandálias, talvez de plástico. Extraordinária é a estética das suas roupas, nomeadamente das calças. As de um são já demasiado curtas e as de ambas têm prodigiosos remendos geométricos, remendos provenientes de peças de tecido que nada teriam que ver com o original. Esta é a estética da pobreza, fundada na mais pura carência. Numa carência que só a imaginação permite enfrentar.
Vemos ainda uma outra coisa extraordinária. Estamos em 1967. A Nazaré é já um local de turismo. Seria certamente menos popular do que hoje. Mas o que vemos ali é a pura resistência à cultura geral que tomou conta do Ocidente. A velha senhora - por certo, viúva - está vestida como a tradição impõe. As roupas dos rapazes também reflectem as estirpes a que pertencem. A boina basca que um dos rapazes ostenta era já, na altura, uma marca social bem característica, o penhor de uma herança, dessa herança em que há pouco ou nada de material a herdar. Só a bola - verdadeira metonímia do futebol - liga aquele mundo social retratado à vida contemporânea. O resto é a expressão de uma secular vida estreita, que nem o largo horizonte do mar conseguiu alargar.
E o futebol será ou não alienante? A vexata quaestio mantêm o seu estatuto, pois a própria fotografia acaba por ter, do ponto de vista social, uma clara ambiguidade. Os rapazes entregam-se de tal maneira ao jogo que tudo parece desvanecer-se. Desde que alcancem a bola, que diferença lhes fará o andar descalços, as roupas remendadas, os atavios paroquiais e fora de moda? Nenhuma. Eles são o puro jogo, onde tudo se esquece. Parece que a alienação - enquanto estranhamento à sua condição - vence. Mas o fotógrafo e o espectador vêem aquilo que os rapazes não vêem e assistem a uma lição de sociologia, escorada na estética do autor. O jogo da bola torna-se, desse modo, um poderoso revelador de identidades e condições sociais, isto é, um factor de desalienação e de devolução da consciência à sua realidade.
Em primeiro plano, a bola e o entusiasmo com que dois rapazes se entregam à disputa dessa mesma bola. Olhamos para a cara deles e vemos o que se vê na cara de muitos profissionais de futebol. Entrega ao jogo, determinação, ardor, sentido de competição, ânsia de chegar em primeiro lugar. Se se perscrutar com atenção os rostos de ambos os jogadores vê-se, bem nítido, o carácter de cada um ali espelhado. Certamente, provirão de estirpes habituadas ao difícil, ao rigor que a exiguidade social traz consigo. O futebol - esta singela disputa de uma bola que ameaça perder-se - emerge aqui como um poderoso revelador de carácter, uma ilustração de uma antiga aula de psicologia. Também não seria difícil especular, a partir da fotografia, sobre questões éticas ou mesmo metafísicas. Mas há outra coisa essencial nesta fotografia.
O brilho proveniente do ardor da disputa da bola ilumina a fotografia e deixa ver mais que o mero jogo da bola. O que vemos ali? Vemos Portugal no ano de 1967. Um dos rapazes joga descalço sobre um campo de paralelepípedos, o outro com umas pobres sandálias, talvez de plástico. Extraordinária é a estética das suas roupas, nomeadamente das calças. As de um são já demasiado curtas e as de ambas têm prodigiosos remendos geométricos, remendos provenientes de peças de tecido que nada teriam que ver com o original. Esta é a estética da pobreza, fundada na mais pura carência. Numa carência que só a imaginação permite enfrentar.
Vemos ainda uma outra coisa extraordinária. Estamos em 1967. A Nazaré é já um local de turismo. Seria certamente menos popular do que hoje. Mas o que vemos ali é a pura resistência à cultura geral que tomou conta do Ocidente. A velha senhora - por certo, viúva - está vestida como a tradição impõe. As roupas dos rapazes também reflectem as estirpes a que pertencem. A boina basca que um dos rapazes ostenta era já, na altura, uma marca social bem característica, o penhor de uma herança, dessa herança em que há pouco ou nada de material a herdar. Só a bola - verdadeira metonímia do futebol - liga aquele mundo social retratado à vida contemporânea. O resto é a expressão de uma secular vida estreita, que nem o largo horizonte do mar conseguiu alargar.
E o futebol será ou não alienante? A vexata quaestio mantêm o seu estatuto, pois a própria fotografia acaba por ter, do ponto de vista social, uma clara ambiguidade. Os rapazes entregam-se de tal maneira ao jogo que tudo parece desvanecer-se. Desde que alcancem a bola, que diferença lhes fará o andar descalços, as roupas remendadas, os atavios paroquiais e fora de moda? Nenhuma. Eles são o puro jogo, onde tudo se esquece. Parece que a alienação - enquanto estranhamento à sua condição - vence. Mas o fotógrafo e o espectador vêem aquilo que os rapazes não vêem e assistem a uma lição de sociologia, escorada na estética do autor. O jogo da bola torna-se, desse modo, um poderoso revelador de identidades e condições sociais, isto é, um factor de desalienação e de devolução da consciência à sua realidade.
Excelente texto. Não consigo dizer muito mais. Apenas que da fotografia ressalta também Resistência. Uma resistência imutável e secular à adversidade, uma obstinação sã em vencer. Se o futebol pode ser alienante? Pode. Mas também serve um fim bom, o de canalizar instintos destrutivos. O de trazer alguma felicidade, mesmo que momentânea. Naquele momento, aqueles meninos foram felizes. Apesar de tudo.
ResponderEliminarSim, uma obstinação quase instintiva. É uma excepcional fotografia.
EliminarUm texto e a uma fotografia admiráveis que nos remetem para o imaginário das crianças, quando, ingenuamente, vivenciam de maneira intensa, o mundo e os comportamentos dos adultos.
ResponderEliminarOs registos são diferentes, mas vieram-me à memória dois filmes inesquecíveis: Aniki Bóbó e A Guerra dos Botões.
Bom fim-de-semana
Um abraço
Lembra, de facto, o Aniki Bóbó. Nunca li A Guerra dos Botões ou vi qualquer dos filmes inspirados no livro. Mas fiquei com curiosidade.
EliminarBom fim-de-semana.
Abraço